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Governo Federal financia entidades para dependentes químicos denunciadas por maus-tratos e irregularidades

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Da BBC Brasil.Reproduzida pelo coletivo Transforma MP.

O governo federal financia cinco comunidades terapêuticas denunciadas por praticar uma série de irregularidades, como maus-tratos a dependentes químicos, violação de correspondências e alta mediante conversão religiosa.

Os problemas nessas cinco instituições religiosas sem fins lucrativos foram identificados em 2018 por membros do Ministério Público Federal, dos Conselhos Federal e Regional de Psicologia e do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão federal dissolvido pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) na semana passada.

Por meio de depoimentos de pacientes e funcionários, os membros da comissão também constataram problemas como tratamento baseado majoritariamente em espiritualidade, isolamento da família, prisões de internos em quartos, trabalhos forçados e punições por faltas a cultos religiosos.

As irregularidades foram constatadas nas comunidades Jovem Maanaim, Esquadrão da Vida, Jovem Ebenezer, Caverna de Adulão, Salve a Si.

Procuradas pela BBC News Brasil, as comunidades terapêuticas negaram os problemas apontados, e parte afirmou ter havido uma “análise ideológica” por parte dos órgãos fiscalizadores.

Já o governo federal não explicou os motivos da manutenção dos contratos, mas disse que exige das comunidades a contratação de profissionais graduados em ciências humanas e saúde, além de liberdade religiosa para os internos – também diz que estão previstas vistorias a cada 12 meses de contrato.

Os contratos foram assinados sem licitação, meses após a divulgação do documento que apontava os problemas. Ao todo, as cinco instituições devem receber aproximadamente R$ 2 milhões dos cofres federais neste ano.

A participação das comunidades terapêuticas (CTs) na Política Nacional sobre Drogas vem se tornando o principal mecanismo de combate à dependência química da gestão Bolsonaro. Mas a política foi iniciada por Dilma Rousseff, do PT. Segundo dados do governo federal, foram repassados cerca de R$ 234 milhões para 384 entidades deste tipo de 2015 a 2018, em valores nominais.

Em março, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, aumentou em 78% o número de entidades do tipo contratadas (de 280 para 497), também sem licitação. Neste ano, serão repassados R$ 149 milhões para custear 10,8 mil vagas.

Esse movimento vem na esteira da nova Política Nacional de Drogas, projeto de lei aprovado pelo Senado em maio. O texto facilita internações involuntárias em unidades de saúde e fortalece as comunidades terapêuticas.

Essas entidades agora podem receber dinheiro de isenção fiscal – pessoas e empresas podem deduzir no Imposto de Renda doações feitas às comunidades.

Existem três tipos de internações previstas na lei: a voluntária, a involuntária (quando o dependente é levado pela família ou por um agente de saúde) e a compulsória – quando há determinação da Justiça.

Liberdade religiosa

As comunidades terapêuticas são um dos vários modelos de atenção a dependentes oferecidos pela saúde pública. Em geral, são residências coletivas que promovem o modo de vida em abstinência.

Os leitos, oferecidos gratuitamente, são financiados pelo governo e cada um custa R$ 1.172 por mês. Os internos têm o direito de abandonar o tratamento a qualquer momento, mas nem sempre é o que ocorre na prática.

Uma das principais críticas feitas por especialistas e procuradores ao modelo passa pela relação entre o tratamento de dependentes químicos e proselitismo religioso.

Das quase 2.000 comunidades terapêuticas no país, segundo estudo do Ipea (instituto de pesquisa vinculado ao Ministério da Economia), 82% disseram ter ligação com igrejas e organizações religiosas – 40% pentecostais e 27% católicas.

A leitura da Bíblia é uma atividade diária em 89% delas, e a participação em cultos e cerimônias religiosas é obrigatória em 55%.

Segundo as vistorias feitas pelo CFP e o MPF, grande parte das 28 instituições não oferecia liberdade religiosa – ou seja, internos eram punidos ou expulsos caso não participassem dos cultos.

Uma das denunciadas foi a Jovem Maanaim, ligada a uma igreja evangélica da cidade mineira de Itamonte, a 385 km de Belo Horizonte. A instituição firmou um novo contrato com o governo federal em dezembro passado, durante a gestão Michel Temer, dois meses após a divulgação da vistoria.

Neste ano, a entidade já recebeu R$ 146,5 mil dos R$ 281 mil previstos no contrato. Desde 2014, a comunidade obteve R$ 911 mil do erário.

De acordo com o relatório, a Jovem Maanaim só concede alta terapêutica aos dependentes químicos se eles se converterem ao Evangelho.

“Como não há acompanhamento da evolução de cada caso, o único critério de alta é a conversão e adoção dos preceitos religiosos cuja demonstração pública e convencimento dos obreiros constituem a ideia de tratamento concluído. Há certo obscurantismo”, afirma o documento.

Uma travesti relatou ter sido proibida de vestir roupas femininas, pois o pastor teria lhe dito que “aquele comportamento era possessão do espírito maligno ou ‘pombagira’” – segundo o mapeamento do Ipea, os acolhidos não têm permissão para escolher a própria roupa em 38% das comunidades terapêuticas.

A unidade negou todas as irregularidades apontadas, afirmando que o relatório é enviesado. “A vistoria foi realizada por uma pessoa que não é qualificada para o trabalho, nada ali é fidedigno”, disse Marcos Vinicius Vitorino, gestor administrativo da casa.

Ele também refuta acusações de maus-tratos e de falta de liberdade religiosa. “Há pessoas que inventam que foram abusadas para sair da comunidade. E aqui temos pessoas ateias e católicas”, disse.

‘Momentos devocionais’

A Esquadrão da Vida, de Montes Claros (MG), também foi acusada de proselitismo religioso – ela vai receber R$ 253 mil do governo.

“Não há liberdade religiosa, na medida em que todos são obrigados a participar dos momentos denominados ‘devocionais’. A cada dia, um interno é responsável pelo devocional, que significa escolher uma parte da Bíblia para ser lida. O interno que não se apresentar para o momento da reza será disciplinado (punido)”, diz o relatório.

A BBC News Brasil não conseguiu contato com os responsáveis pelo local.

Na comunidade Jovem Ebenezer, em Seropédica (RJ), os fiscais também relataram que cultos evangélicos diários são o ponto mais importante do tratamento. “Quando uns se mostram mais isolados, ou quando destoam do comportamento tido como desejável, eles são imediatamente interpelados por um dos monitores, que os chamam ao convívio, à fé, à crença, às normas desejáveis. A não adesão implica no afastamento.”

A unidade vai receber R$ 422 mil dos cofres federais neste ano.

Responsável pela entidade, o pastor Aldemir Gomes de Paiva afirmou que “ninguém é obrigado a se converter ali, já que a presença de todos dos acolhidos é voluntária, e o trabalho espiritual serve mais como um alento para quem está nessa situação (de vício)”.

Afirmou ainda que a instituição atua dentro da legislação e que os acolhidos são acompanhados individualmente por psicólogos e profissionais da rede pública de saúde.

Para Jardel Fischer Loeck, pós-doutorando em Saúde Coletiva na Unisinos, integrante da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas e autor de um dos estudos do volume do Ipea “Comunidade Terapêuticas – Temas para Reflexão”, nem todas as entidades buscam necessariamente (ou unicamente) a conversão religiosa dos acolhidos, mas esse método se repete em muitos centros.

“Ao mesmo tempo, a busca pela transformação moral pode passar pela conversão religiosa. O mais importante é que se tratam, sim, de projetos de conversão (lida dessa maneira mais ampla) e que tendem a não comportar especificidades individuais. Pelo contrário, buscam homogeneizar as experiências individuais para que a retórica terapêutica sirva a todos, apesar das diferenças entre as pessoas”, afirma Loeck.

Pablo Kurlander, gestor-geral da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, critica generalizações sobre o segmento. Segundo sua entidade, uma comunidade terapêutica precisa oferecer, entre outras coisas, acolhimento apenas voluntário, garantia de direitos básicos como liberdade religiosa e acesso ao mundo externo, acompanhamento individual, atendimento multidisciplinar, ligação com a rede pública de saúde e fiscalização frequente.

Isolamento e abstinência dos internos

Outra controvérsia se refere à abstinência mediante isolamento dos dependentes químicos, meta da nova política sobre drogas. Os pacientes chegam a ficar internados por meses e até anos, muitas vezes sem qualquer contato com o exterior.

Essa lógica, segundo o Conselho Federal de Psicologia, pode se assemelhar à dos manicômios, que perderam força no país desde a reforma psiquiátrica em 2001.

Quem é a favor dessa linha afirma que é preciso retirar o usuário do ambiente de consumo da droga e que só a interrupção do uso pode acabar com o vício.

Em geral, entidades de classe de psicólogos e de médicos costumam apoiar a chamada política de redução de danos – conjunto de práticas de saúde adotadas em diversos países com o objetivo de diminuir os efeitos causados pelo uso de drogas em pessoas que não conseguem ou não querem parar – e a abstinência pode ser uma das abordagens.

“A generalização do ideal de abstinência total como desejável para todos leva, em muitos casos, pessoas a alternarem entre estados de intoxicação total e abstinência total. Ou seja, é uma leitura totalizante do indivíduo que usa drogas, que não abre margem para arranjos diferentes, particulares, relacionados ao uso de drogas e ao cuidado em saúde”, afirma Jardel Loeck.

Por outro lado, em sua tese de doutorado sobre comunidades terapêuticas, Pablo Kurlander aponta para “a abstinência como fator que aumenta a chance de melhores indicadores de qualidade de vida, podendo ser tanto causa quanto efeito, mas isso não significa que ninguém possa ter qualidade de vida boa se fizer uso não problemático de substâncias psicoativas”.

O psicólogo Paulo Maldos, membro do Conselho Federal de Psicologia, participou das visitas às comunidades Salve a Si e Caverna de Adulão, ambas no Distrito Federal. As duas também foram contratadas pelo governo por R$ 844 mil e R$ 168 mil, respectivamente. No relatório, elas receberam diversas críticas.

“Ambas repetem o isolamento das pessoas, o corte de relações com os familiares até por meio de controle das correspondências, que são lidas por funcionários antes de chegarem aos internos”, diz Maldos. “No nosso ponto de vista, essa não é a melhor forma de enfrentar o problema. Não há trabalho individualizado para cada paciente e não há qualquer projeto de vida para ele fora dali”, diz.

Na comunidade Caverna de Adulão, os acolhidos chegam a ficar três meses sem qualquer contato com o exterior – a reportagem não conseguiu contato com os responsáveis. Já na Salve a Si, o tempo mínimo de internação é de seis meses.

Fundador da casa, Henrique França nega todas acusações contra a unidade, como violação de correspondências. “Esse relatório é alimentado por uma ideologia tendenciosa. Quem fez essa vistoria é anti-religião e anti-família”, disse. Também afirmou que a unidade passa por vistorias mensais feitas pelo governo do Distrito Federal.

Entidades contratadas pelo governo são obrigadas a oferecer um Plano de Atendimento Singular (PAS), em que são registrados o histórico, os dados e o planejamento da saída do acolhido com a anuência voluntária do próprio ou de familiares. O acolhimento pode se estender por até 12 meses consecutivos ou intercalados, no intervalo de 24 meses.

Para Kurlander, da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, um dos principais trunfos do modelo é, ante a escassez de equipamentos públicos, ter uma capilaridade muito maior que a rede pública de saúde, principalmente em municípios menores e zonas rurais.

Já Rogério Giannini, presidente do Conselho Federal de Psicologia, afirma que as comunidades terapêuticas trabalham de forma intuitiva – ou seja, não há métodos científicos ou médicos. “A religiosidade é imposta às pessoas. Raramente existe tratamento individualizado ou projeto terapêutico para cada paciente”, diz.

Ele também critica a falta de fiscalização e estudos sobre a efetividade dos tratamentos oferecidos. “Não há qualquer estudo do governo para medir o impacto e efetividade desses tratamentos. Não há nada que aponte quais comunidades produziram resultados. É uma política baseada em preceitos religiosos, intuição e ideologia.”

Questionado, o Ministério da Cidadania não soube informar qual é a taxa média de recaída dos dependentes químicos em comunidades terapêuticas financiadas pelo governo federal.

Terapia do trabalho

Pesquisa do Ipea mostrou que 92,9% das comunidades terapêuticas do país usam a laborterapia como método do tratamento. O documento do MPF e do CFP também aponta que várias casas utilizam ex-internos na monitoria dos dependentes químicos – e parte delas não remunera esses funcionários.

Na comunidade Salve a Si, por exemplo, “houve relatos de uma carga de trabalho por um período de duas horas e meia diárias, no entanto, muitos trabalhavam além desse horário”, segundo o relatório dos inspetores.

“Uma pessoa estava lá há dois anos com a justificativa de ter se tornado um voluntário trabalhador da casa, porém, sem receber salário e com direito somente a uma ajuda de custo”. A entidade nega a acusação, dizendo que houve um engano por parte dos fiscais.

Já na Esquadrão da Vida, dois monitores sem formação em saúde são os responsáveis pelo local. “Eles trabalham por turnos de sete dias, alternando-se durante o mês. Cuidam de todos os detalhes do cotidiano: tocar o sino para demarcar os horários de despertar, rezar, trabalhar. Também decidem sobre a utilização dos espaços de oficina e acompanham as ligações realizadas pelos internos para seus familiares. Os monitores são os principais agentes de ‘cuidado’ da CT.”

Mas a carga de trabalho chega a ser mais problemática e afetar a saúde dos internos em outros locais.

O relatório cita o caso da Casa de Resgate Emanuel, de Bandeira do Sul (MG). “Não são distribuídos equipamentos de proteção individual para os internos executarem tarefas. A equipe de visita recebeu sérios relatos de pessoas que tiveram sua visão afetada (‘queimada’) por trabalharem com solda sem a devida proteção.”

Embora não faça parte dos novos contratos da gestão Bolsonaro, a Casa de Resgate Emanuel recebeu R$ 656 mil do governo federal de 2014 a dezembro do ano passado – mesmo após ter sido acusada maus-tratos, ela ainda foi beneficiada por três repasses de verbas.

Para Rogério Giannini, do Conselho Federal de Psicologia, esse tipo de terapia é “escandalosa”. “Na prática, o que acontece é que as pessoas fazem trabalhos domésticos sem remuneração, como limpeza, manutenção, pintura e até segurança das unidades. São tarefas forçadas que não acrescentam em nada”, diz.

Disciplina e punições

A disciplina passa por diversos aspectos da rotina, segundo pesquisa do Ipea. Metade proíbe faltas a cultos e cerimônias religiosas e um terço veta que essas pessoas escolham o próprio corte de cabelo. Mesmo a prática mais permitida, assistir à TV, não é indiscriminada – parte só exibe programas religiosos ou noticiários em determinados horários.

“O baixo percentual de CTs que permitem que os acolhidos mantenham relações sexuais com seus parceiros (6,3%) e com os demais residentes (0,8%) também é digno de destaque, revelando a quase unanimidade com que a sexualidade dos acolhidos é vista também como problemática e, de alguma forma, associada ao consumo de drogas”, afirma o Ipea.

Conselheiro do CFP, o psicólogo Paulo Maldos presenciou esses aspectos em suas vistorias. “Relações afetivas e sexuais eram vistas como prejudiciais ao tratamento”, relata.

“O trabalho terapêutico é focado na culpa e no remorso. Ou seja, a pessoa é constantemente lembrada dos males que causou à família, às pessoas, aos amigos. Não se fala sobre os pontos positivos da pessoa, mascarando as questões que as fazem mal”, diz.

Na comunidade Jovem Maanaim, havia internos presos em quartos por até uma semana como punição por desvios disciplinares, segundo o documento.

“Dependendo do grau da infração, o adolescente, ou a moça interna, permanece dentro do quarto por uma semana, apenas em companhia da Bíblia”, escreveram os fiscais com base em depoimentos de pacientes da casa. Outros dependentes, menores de idade, sequer eram liberados para frequentar a escola, aponta o documento.

“Também foi relatado por diversos internos que a disciplina é rígida, sendo aplicadas penas como lavar panelas e retirar o colchão do interno que, por exemplo, se recusa a participar de cultos. Um paciente psiquiátrico, de 62 anos, confirmou já ter sido punido com a retirada do colchão, o que o obrigava ficar deitado na cama de alvenaria – pelo fato de nem sempre conseguir participar dos cultos porque sentia muito sono, devido ao uso de remédios.”

A unidade nega as denúncias.

Já na Casa de Resgate Emanuel, os fiscais ouviram relatos de que os internos precisam ficar nus durantes as revistas pessoais.

Em entrevista à BBC News Brasil, Sebastião Silveira, responsável pela comunidade, atribuiu os maus-tratos e desrespeitos à privacidade dos acolhidos, como retenção de documentos e violação de correspondência a uma psicóloga que atuava no local à época da vistoria. Segundo ele, a profissional defendia essas práticas para evitar recaídas e venda de drogas dentro da entidade.

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Geral

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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