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A Globo e sua fábrica de narrativas

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Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com ilustração de Al Margen

Venho utilizando o termo “fábrica de narrativas” para tratar da atuação da grande imprensa na crise brasileira contemporânea. Talvez este seja um dos aspectos mais importantes da crise: nunca antes na história do Brasil a imprensa foi player tão relevante no jogo político.

Isso não significa poder absoluto de manipulação. As pessoas não são gado. O público não é rebanho que simplesmente segue a toada da narrativa midiática. É certo que a imprensa hegemônica tenta pautar a opinião pública, conduzir a crise, mas sua eficiência é limitada. É essa tensão entre tentativas e limites o tema deste ensaio.

Acho mesmo que a imagem da “fábrica” nos ajuda a compreender a atuação dos conglomerados midiáticos na conjuntura da crise. Uma fábrica precisa ser gerenciada, organizada a partir de um centro administrativo comprometido com a realização de um determinado projeto.

O projeto da grande imprensa brasileira está claro, desde o início da crise: legitimar na opinião pública a agenda desenvolvimentista neoliberal, marcada pelo desmonte do Estado e pela entrega da tutela do desenvolvimento nacional ao controle das forças do mercado.

Quando falo em “grande imprensa brasileira” estou me referindo, naturalmente, à Rede Globo. Há outros veículos, com suas especificidades. Mas no geral é a Rede Globo quem dá o tom, quem gerencia a fábrica de narrativas.

Não quero dizer que a Rede Globo, em si, tenha compromisso moral com o neoliberalismo. A Globo não tem moral própria, não tem projeto próprio. A Globo tem clientes.

Hoje, no Brasil e no mundo, não existe cliente mais valioso que o neoliberalismo, representado pelos grupos que pretendem varrer o Estado de Bem-Estar Social do mapa ocidental.

Pois sim, leitor e leitora: a crise não é só brasileira.

O Brasil até pode ser o principal laboratório da ofensiva neoliberal contra o Estado, mas a crise tá longe de ser uma exclusividade nossa.

O investimento da Rede Globo na defesa da agenda neoliberal é tão intenso que está modificando uma antiga prática da empresa. Antes, o núcleo do entretenimento era relativamente independente do núcleo do jornalismo. As agendas eram diferentes.

As novelas da Globo, por exemplo, contribuíram bastante para a ampliação dos direitos civis no Brasil, especialmente no que se refere aos direitos de mulheres, de pretos e pretas e da comunidade LGBT. Ou seja, se o departamento de jornalismo da emissora é historicamente conservador e alinhado com as agendas econômicas e políticas do grande capital, o departamento de entretenimento sempre foi relativamente progressista.

Não que exista propriamente uma contradição entre os interesses políticos e econômicos do grande capital e os valores progressistas ligados ao plano do comportamento e comprometidos com o princípio da “liberdade do corpo”. Cada vez mais, o capitalismo busca a leveza e o distensionamento das relações sociais, o que sugere a superação de opressões que restringem mercados e atrapalham os negócios, como é o caso do machismo, da homofobia e do racismo. Mas não é desse capitalismo leve que quero falar, não aqui, não agora.

Quero mostrar como o núcleo do jornalismo vem, cada vez mais, utilizando o núcleo do entretenimento para defender as reformas neoliberais que estão desmontando o Estado brasileiro.

Acontece que o projeto defendido pela fábrica de narrativas tem um grande adversário: o imaginário da população brasileira, que é atravessado pela ideia de que cabe ao Estado prover direitos sociais e tutelar o desenvolvimento nacional.

Temos, então, a seguinte situação: de um lado está o projeto neoliberal, que apesar de ter tomado de assalto o Poder Executivo e partes consideráveis do Poder Legislativo e do Sistema de Justiça, não conta com o apoio da maioria da população. Do outro lado, o imaginário popular, que depositando suas expectativas de direitos sociais no Estado, resiste à ofensiva neoliberal.

O Partido dos Trabalhadores ainda é predileto dos brasileiros. Se for candidato, Lula será eleito, talvez no primeiro turno. Chamo isso de resistência.

A defesa da Rede Globo das reformas neoliberais propostas pelo governo de Michel Temer é um bom termômetro para medirmos a real capacidade da mídia hegemônica em pautar a opinião pública. Muitas vezes, essa capacidade é superestimada.

Até aqui, foram três as principais reformas: A PEC 241, (também conhecida como a “PEC dos gastos”), a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência.

Nos três casos, a Rede Globo mobilizou toda a sua estrutura, incluindo o núcleo do entretenimento, para manipular a opinião pública e garantir apoio popular à agenda reformista. Os programas da grade matutina mostram claramente esse esforço.

Por partes, um passo de cada vez:

  • A PEC 241

Entre agosto e dezembro de 2016, nos dias e meses seguintes ao golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff, o governo de Michel Temer vivia o apogeu de sua vitalidade política. Temer não foi eleito pela opinião pública. Temer foi eleito pelo Congresso Nacional. Por isso, seu governo nasce marcado pela combinação entre a rejeição popular e o apoio parlamentar. Michel Temer entendeu perfeitamente que o Congresso era tudo que tinha.

A PEC dos gastos foi a primeira grande agenda política de Michel Temer e representa uma mudança nos fundamentos conceituais do Estado brasileiro. Trata-se da restrição do poder de investimento do Estado, ou seja, o Estado deixa de ser soberano para planejar políticas públicas e cumprir seu papel civilizatório. Com a aprovação da PEC, a ação do Estado passa a estar subordinada ao crescimento econômico, ao mercado.

Na prática, a PEC criminaliza os movimentos anticíclicos do Estado. Ou em outras palavras: em momentos de recessão, de crise, o Estado não tem mais instrumentos legais para contrariar a crise, para fomentar desenvolvimento. O poder, portanto, está no mercado e não no Estado.

A PEC 241 significa uma ofensiva contra o principal fundamento do imaginário político do Brasil moderno, que desde os anos 1930 define o Estado como o centro de planejamento do desenvolvimento nacional. Até aqui, esse imaginário não tinha sido contrariado, nem pelos militares, nem pelos tucanos.

Nem os militares, nem os governos de Fernando Henrique Cardoso, chegaram tão longe quanto Michel Temer.

Uma mudança desse tamanho precisa cortejar a opinião pública. Não que o apoio popular seja imprescindível para a aprovação do projeto, já que a PEC foi aprovada no Congresso e sancionada pelo Palácio do Planalto sem nenhum tipo de consulta.

Mas todos sabemos que não existe golpe que dure pra sempre. Em algum momento, teremos eleições no Brasil e a manutenção da obra do golpe depende do apoio popular. Não se faz política apenas no palácio. Em algum momento, as ruas serão chamadas, serão ouvidas.

Nas semanas que envolveram a tramitação da PEC 241, o programa de “Bem Estar” apresentou uma série de matérias que tematizaram a “saúde financeira das famílias”. A mensagem era clara: se uma família não pode gastar mais do que ganha, o Estado também não pode.

A narrativa midiática implodiu as diferenças que distinguem a família do Estado. A família, núcleo social privado sem nenhum compromisso com o bem comum, se tornou equivalente ao Estado, organização institucional responsável pela manutenção do marco civilizatório.

É como se ao limitar a capacidade de investimento do Estado, o golpe neoliberal estivesse agindo como um pai zeloso que cuida das finanças da família.

 

  • A Reforma Trabalhista

A reforma trabalhista também violentou outro fundamento do imaginário político brasileiro: a vinculação entre cidadania e o trabalho formal.

Durante décadas, o trabalhador formal, com carteira assinada, foi definido como o modelo ideal de cidadão. Esse princípio alimentou práticas de violência contra grupos que por estarem excluídos do trabalho formal eram tratados como “vadios” pelas forças policiais do Estado.

Teve perseguição ao samba, às religiões de matriz africana. Perseguição aos pobres em geral. Mas a ideia do trabalho formal como exercício de cidadania se consolidou no imaginário político brasileiro.

A reforma trabalhista, ao “flexibilizar” as leis trabalhistas, atacou o trabalho formal, violentou a cidadania, tal como ela é pensada no Brasil há mais de 70 anos. Temos aqui assunto muito sério e o golpe neoliberal sabe disso. A fábrica de narrativas sabe disso.

A Reforma Trabalhista tramitou entre maio e julho de 2017. Nesse período, o programa “Encontro com Fátima Bernardes” investiu no culto ao empreendedorismo, trazendo à cena, prioritariamente, empreendedoras mulheres, periféricas e negras. A fábrica sabe o que faz.

A direção da fábrica sabe que o empoderamento de mulheres, negras e periféricas é uma agenda social relevante. O empreendedorismo dessas mulheres foi tratado como uma estratégia de empoderamento, de libertação.

Libertação de quem? De qual algoz?

O patrão, personificando o trabalho formal, foi pintado como o algoz.

“Quando trabalhava de carteira assinada, eu não tinha tempo nem pra levar minha filha ao médico”, disse a empreendedora em reportagem exibida no horário nobre da programação matutina da principal emissora de TV do Brasil.

O trabalho formal, nesse sentido, deixa de ser representado como fundamento da cidadania para se tornar uma experiência de opressão.

E a libertação? Se daria pela rebelião dos trabalhadores? Pela divisão dos lucros? Por relações de trabalho mais humanas?

É claro que não!

A libertação é individual, no melhor estilo liberal, e se dá pela abolição do trabalho formal.

Cada um que seja livre para resolver seus problemas. Livre para levar a filha ao médico na hora que bem entender. Livre para ficar sem assistência social em situação de doença. Livre para não receber 13° salário. Livre para ser demitido sem nenhum tipo de garantia;

Liberdade é uma palavrinha safada e perigosa. Inspira cuidados.

  • A Reforma da Previdência

É aqui que podemos observar claramente os limites da manipulação. A Reforma da Previdência é a menina dos olhos do golpe neoliberal. É a única reforma que não foi aprovada.

Por que?

Porque a opinião pública está resistindo, não está se deixando manipular. Aposentadoria, INSS, é coisa sagrada para os brasileiros e brasileiras. No ano de eleição, nenhum deputado quis colocar sua assinatura em projeto tão polêmico.

De fato, a Reforma da Previdência subiu no telhado, foi derrotada. Mas não dá pra dizer que faltou empenho da fábrica de narrativas. A Rede Globo tentou, em todos os lugares, em todos os programas da sua grade, convencer os brasileiras e brasileiras de que é bom trabalhar na terceira idade.

O Programa da Ana Maria Braga, o programa da Fátima Bernardes, o “Bem Estar”, todos eles passaram os últimos meses de 2017 e os primeiros meses de 2018 defendendo a Reforma da Previdência. Eram velhos e velhas por toda parte. Atrizes e atores idosos cozinhando com a Ana Maria Braga, fazendo exercícios físicos no “Bem Estar”, contando para a Fátima Bernardes como suas vidas sexuais são ativas.

Não basta o esforço do núcleo de jornalismo. Para passar a Reforma da Previdência não dá pra contar apenas com a Miriam Leitão. Só o economês não é suficiente. Carece de usar toda a estrutura da fábrica.

A fábrica tentou fazer sua parte.

A fábrica tentou convencer os brasileiros e brasileiros que acordam às 6 de manhã, que enfrentam duas horas de transporte público, que trabalham até às 17 e voltam pra casa, depois de mais duas horas sacolejando nos trens, ônibus e metrôs, que na velhice eles serão tão saudáveis e ativos como Lima Duarte, Fernanda Montenegro e Natália Grimberg.

O povo não é burro. De burro, o povo não tem nada.

Os esforços foram intensos. A fábrica trabalhou bastante. Mas não teve êxito. Todas as pesquisas mostravam que a opinião pública não apoiava a reforma da previdência. Aí, o governo golpista tentou uma saída honrosa, inventando uma intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro.

Enfim, o que quis dizer neste ensaio é algo relativamente simples, que pode ser facilmente observador por qualquer um com olhar mais atento para a realidade da crise: a grande imprensa brasileira, a fábrica de narrativa do golpe neoliberal, tenta manipular a opinião pública.

Tenta, mas não consegue, ou pelo menos não consegue como gostaria. Mas a fábrica é insistente e continua tentando em cada um dos seus produtos, até mesmo naqueles programas bonitinhos, aparentemente despretensiosos e inocentes. Não existe inocência na fábrica.

A fábrica apostou todas as suas fichas no golpe. Não dá pra voltar atrás.

Os motores da fábrica estão girando até mesmo quando uma petista, mulher, negra e periférica é laureada campeã de reality show. Pra ser eficiente, a manipulação precisa estar camuflada. A fábrica precisa ser vista como uma empresa de comunicação democrática e aberta a todas as opiniões políticas.

Tão achando que é paranoia, né? Tão achando que é viagem? Que é teoria da conspiração?

Ah leitor, ah leitora.. não sejam ingênuos.

Não existe golpe de Estado sem conspiração. E para que aconteça uma conspiração, para que aconteça um golpe, basta apenas que pessoas muito poderosas estejam dispostas a conspirar.

 

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1 Comment

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  1. Soul Psicologia

    25/04/18 at 15:46

    As novelas da rede globo sempre foram machistas, homofóbicas, racistas, classistas etc, só agora que resolveram posar de ”progressistas”, tem muitos noveleiros que admitem isso.

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LUTA ANTIRRACISTA PRECISA ACERTAR A ‘CABECINHA’ DE WILSON WITZEL

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Há anos a tática sobre segurança pública no Rio se concentra em operações espetaculares que resultam, de tempos em tempos, em um derramamento de sangue, com direito a traficantes, moradores de comunidades e policiais mortos.

O roteiro todos já conhecem. Unem-se policiais de diversos batalhões, eles invadem determinada localidade com poder de fogo muito superior, e terminam matando principalmente a ponta da cadeia do tráfico, a base da estrutura das facções, enquanto seus líderes comandam tudo de longe ou de dentro dos presídios, e no dia seguinte um novo comando paralelo se instala no mesmo lugar.

É uma máquina de moer gente. Mata-se loucamente, e no dia seguinte é como se nada tivesse mudado.

A situação é esta porque em certos locais do Rio a única chance de um jovem criado em situação de miséria comprar um tênis da moda é segurando uma arma que ele não sabe atirar direito. A parcela da população favelada que sobra do espaço da cidadania, por motivos que vão desde abandono familiar, déficit educacional ou imposição de terceiros, é seduzida por uma rede comércio ilegal que promete dignidade no contexto da extrema exclusão e sacrifica a vida destas pessoas como copos descartáveis.

São quase sempre jovens negros, no tráfico, na polícia ou nas casas vizinhas ao confronto entre eles. E suas mortes não comovem nem de perto tanto quanto o cãozinho morto na porta do Carrefour.

É assim desde que a abolição foi seguida pela recusa em absorver os negros no mercado formal de trabalho e a imigração de estrangeiros brancos para substituí-los. A pobreza se perpetuou a partir da negligência em gerar oportunidades e condições de vida saudável, e nela a criminalidade floresceu desde sempre.

Se soubesse da história do Rio, Wilson Witzel, o novo governador eleito no estado, que repete a palavra matar o tempo todo para agradar os ouvidos de uma classe média tanto preocupada com roubos quanto é racista, adepta de praias segregadas, odienta do funk, do samba e de pagode, faria algo para interromper a espiral macabra que corrói sua sociedade por dentro.

Alteraria o atraso social com políticas públicas inteligentes de ensino integral, cooperativas de trabalho, reforma do sistema penitenciário, investimento em tecnologia da informação e preparo de suas polícias. Enfrentaria o racismo com mais educação e cultura, e não faria coro com privilegiados que gostam de se remeter aos negros com termos tipicamente usados para animais, como “abate”.

Em 2010, o Rio viu Sérgio Cabral vencer Fernando Gabeira aproveitando-se, em parte, da crença de que o adversário era veado e maconheiro. Dali seguiu-se uma bandalheira que resultou, nos últimos anos, no colapso total das contas públicas. Já não há mais espaço de tempo para novos demagogos. E nem a população suporta mais mentiras no lugar de competência. Algo melhor que matar precisa vir à cabeça do novo governador. E eu sugiro que superar o seu racismo entranhado seja o melhor começo.

Por: Rodrigo Veloso – Colaborador dos Jornalistas Livres morador do Rio do Janeiro formado em Relações Internações

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OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

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Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke

 

O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.

Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.

Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.

Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.

Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?

A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.

Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.

Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.

Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.

Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.

 

Rodrigo Janot

Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.

Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.

26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.

A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.

Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.

Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.

Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.

Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.

Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?

Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.

 

Rogério Favreto

Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.

“Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.

Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.

Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.

Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.

Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.

Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

 

Marco Aurélio Mello

Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.

1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.

É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.

Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.

Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.

Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.

2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.

Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.

A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.

Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.

 

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Armai-vos uns aos outros

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Por José Barbosa Junior
O presidente da República Fundamentalista de Vera Cruz (antigo Brasil – porque agora nada pode ser vermelho), decretou nesta terça-feira algumas flexibilizações na Lei que regulamentava a posse de armas, o que, na prática, significa que ele liberou geral. A proposta anterior, de no máximo duas armas por cidadão, passou para quatro armas, sendo liberadas outras mais, conforme a necessidade apresentada pelo futuro portador.
Em resumo, a barbárie está liberada oficialmente em nosso país. “Cidadãos de bem” agora vão poder, finalmente, matar os bandidos que lhe atormentam a vida. Por bandidos leia-se pobres, pretos, pardos e párias, que de já tão coisificados, tornaram-se sem valor e pessoalidade em sua existência.
O que mais me choca, porém, é que Bolsonaro foi eleito e é apoiado, inclusive e principalmente nesta questão, por gente que se afirma cristã. Isso mesmo! Gente que diz seguir aquele nazareno marginal que afirmou que “bem-aventurados são os pacificadores, pois eles serão chamados filhos de Deus”, aliás o mesmo que afirmou que “quem vive pela espada, morrerá pela espada”.
Parece estranho. E é.
Mais estranho ainda porque em toda a campanha do atual presidente, ele fez questão de repetir o versículo que diz “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
A verdade é que a liberação de armas só gerará mais violência num país que respira violência.
A verdade é que mais mulheres serão vítimas de feminicídio, já que seus maridos machões agora poderão ter suas armas para suprirem seus outros fracassos.
A verdade é que mais LGBT’s morrerão nas mãos de homofóbicos que disfarçam seus preconceitos em discursos machistas e religiosos.
A verdade é que agora fica mais fácil planejar o suicídio, endêmico numa sociedade cada vez mais doente e adoecedora, refém de um sistema que empurra pessoas à depressão (sem contar as depressões que independem de fatores externos) e num país onde adolescentes cada vez mais se matam por conta de bullying e outras coisas mais. Ah! E sem falar no alto índice de suicídio entre pastores, tema cada vez mais recorrente nos últimos anos.
A verdade é que as brigas de trânsito, de bares, de baladas agora serão resolvidas na base do “quem saca primeiro”, porque com essa liberação a ideia de que o outro possa estar armado será sempre evidente e, entre ele e eu, é melhor que eu saque antes dele.
A verdade é que temos um governo violento, que ampara e incita à violência, que não esconde o prazer na tortura e na morte dos inimigos. Isso legitima e legitimará a barbárie!
Em nome da verdade… no governo mais mentiroso que já temos! E eu aguardo o dia da liberdade! Ela virá… mais cedo ou mais tarde!

*Teólogo e Pastor da Comunidade Batista do Caminho em Belo Horizonte.

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