Por Ernesto Marques, especial para os Jornalistas Livres.
A marca da influência dos irmãos Vieira Lima sobre Salvador começou a se configurar no final do primeiro mandato de João Henrique Carneiro (2005-2008), quando Geddel abduziu o tíbio e populista prefeito, anexando-o ao seu PMDB. Já no segundo turno de 2008, o hoje homem forte de Temer consorciou-se com ACM Neto para reeleger João e assim partilharem o poder. A logomarca do primeiro governo, influenciado pelo PT, trazia figuras humanas estilizadas com as mãos levantadas, como se votassem numa assembleia, e o slogan “Prefeitura de participação popular”. A identidade visual do segundo governo JH traz o nome da cidade sobreposto a uma sequência de barras verticais coloridas, como se fossem arranha-céus e, abaixo, a tradução do fetiche pretensamente futurista: “Prefeitura de um novo tempo”.
Ironicamente, a promessa do “novo tempo” ficou limitada ao fetiche dos espigões que fizeram a alegria do baronato da especulação imobiliária e tanto fascinavam João Henrique. À mudança estética correspondeu uma transformação ética, incorporando as cores do PMDB e o estilo dos Vieira Lima. O que aconteceu em seu segundo mandato, pelo menos em sentido figurado, pode ser definido como esbulho, considerando a apropriação violenta da cidade por uns poucos. Com outro estilo e a velha autoproclamada eficiência do “carlismo”, o prefeito ACM Neto deu continuidade ao processo, mas antes mandou seu antecessor e cabo eleitoral às favas, excluindo-o da partilha do butim.
Como na Bahia de Octávio Mangabeira todo absurdo tem um precedente, o ACM original, quando prefeito biônico “eleito” pelos generais, operou o milagre da transmutação das terras públicas em propriedade privada. A pretexto de financiar a modernização da primeira capital do Brasil, ACM fez os vereadores aprovarem uma reforma urbana que transferiu terras do Município para empreiteiras. Naquela altura, o pai de Geddel, Afrísio Vieira Lima, era procurador da Prefeitura e, anos mais tarde, viria a se tornar um dos mais dedicados vassalos de ACM quando este foi “eleito” governador duas vezes pelos generais.
A sucessão de gerações no patronato político baiano mudou personagens e atualizou procedimentos, mas o método sobreviveu ao tempo. A crise instalada com a demissão ruidosa do ex-ministro da Cultura, Marcelo Calero, gerou um escândalo de grandes proporções pela suposta prática de advocacia administrativa, crime que teria sido praticado pelo ministro Geddel a ser investigado pela Comissão de Ética da Presidência da República. Mas o Brasil precisa saber que o espigão de 30 andares e 106 metros de altura, motivo das pressões sobre Calero, é apenas a ponta do iceberg do alvo da cobiça gentrificadora da especulação imobiliária sobre o trecho mais deslumbrante da orla de Salvador.
A obra embargada do La Vue, no início da Ladeira da Barra, está a poucos metros do marco de fundação da cidade por Thomé de Souza, assentado na praia do Porto. A ladeira leva à Cidade Alta, pouco mais de 70 metros acima do nível do mar, começando pelo Corredor da Vitória, uma das áreas mais nobres da capital baiana. Mas contemplar a vista (la vue) da Baía de Todos os Santos, naquele trecho, é privilégio para poucos, porque o Corredor da Vitória, antes ocupado apenas por mansões, há décadas foi sendo tomado por prédios altos e quase colados uns aos outros. O deus mercado passou por cima de leis e órgãos de fiscalização, suprimiu vegetação nativa, ergueu piers particulares e teleféricos para os seus escolhidos descerem de bondinho de seus apartamentos-mansões até suas lanchas. Com o Corredor da Vitória já saturado, a especulação cresceu os olhos para os quilômetros seguintes da falha geológica que faz de Salvador uma cidade singular, única do lado de cá do Atlântico onde o sol se põe no mar, nas águas calmas e mornas da Baía de Todos os Santos.
“As pessoas também gostam da discricionariedade do Iphan para servir a um ou outro interesse”, disse a então presidenta do Iphan, Jurema Machado, em um evento na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. O contexto da declaração: Jurema tinha ao seu lado o então superintendente do Iphan na Bahia, Carlos Amorim, a presidenta do Instituto dos Arquitetos, Solange Araújo, o presidente da OAB-BA e antecessor de Amorim no comando regional do Iphan, Luiz Viana Queiroz, o secretário de Urbanismo de Salvador, Silvio Pinheiro, entre outros. Diante dela, algumas centenas de arquitetos, estudantes, ativistas de movimentos sociais e moradores do Centro Antigo.
Além do tema geral, aquele encontro tinha em comum com a polêmica de agora, pelo menos três personagens: o secretário Silvio Pinheiro, Carlos Amorim e o então coordenador técnico do Iphan-Ba e atual superintendente, Bruno Tavares. A interação entre os três e mais outras figuras importantes daria um bom livro-reportagem, por não caberem num artigo. Pela primeira vez debatiam abertamente as licenças assinadas por Tavares e convalidadas por Amorim para demolição de 31 imóveis no Centro Antigo – dois dos quais, tombados. Ao colocarem os casarões abaixo da forma como o fizeram, levaram o Conselho Regional de Arquitetura e Urbanismo a promover aquele evento.
Pairando acima de governos e querelas partidárias, o patrão de Carlos Amorim é o mercado imobiliário, associado a setores da área pública capturados pelo que o economista Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, chama de “sagrada aliança”. Cabe a CEOs desses consórcios de grandes interesses, como Geddel, colocar operadores leais em postos-chave, como a superintendência do Iphan. Lealdade a ser provada através de atos oficiais, ironicamente baixados em nome do interesse público. Nas explicações sobre o “Calerogate”, por exemplo, Geddel expõe sua preocupação com os empregos não gerados pela paralisação da obra do La Vue. Para justificar as demolições, Amorim e Tavares argumentam em defesa da vida dos pretos e pobres que neles moravam e/ou trabalhavam e por isso estariam sob risco iminente.
Para arrancar a fórceps as licenças do La Vue, do Cloc Marina Residence (entre o bairro 2 de Julho e a Avenida Contorno), assim como para demolir imóveis entre o Cloc e o Elevador Lacerda, os leais à sagrada aliança operaram em alta. Ao assumir a superintendência regional do Iphan, Amorim extinguiu o conselho consultivo criado por Luiz Viana, do qual participavam arquitetos, urbanistas e representantes de entidades da sociedade. Mais recentemente, extinguiu o Escritório Técnico de Licenciamento e Fiscalização (Etelf) com base num parecer assinado pelo engenheiro Bruno Tavares. Sem meias palavras, o documento desqualifica arquitetos e técnicos do Etelf.
Com a deposição da presidenta Dilma e a ascenção de Temer e Geddel, Bruno Tavares vira superintendente do Iphan e Carlos Amorim é presenteado com a invenção de uma tal Secretaria do Patrimônio, junto com a recriação do Ministério da Cultura. A grita geral de profissionais e entidades da área, denunciando a nova estrutura como manobra para esvaziar uma instituição de 80 anos, repercutiu internacionalmente e o governo recuou.
São da lavra de Tavares as licenças para os dois mega-empreendimentos, assim como as demolições nas históricas ladeiras da Preguiça, da Conceição e da Montanha. A coincidência entre todos esses imóveis é “la vue” para a Baía de Todos os Santos. Todos os alvarás passam pela mesa de Silvio Pinheiro, secretário municipal de Urbanismo e um dos rapazes de ouro do prefeito ACM Neto.
É alvissareiro ver um CEO da sagrada aliança na berlinda, ainda mais quando a denúncia parte de um golpista, como ele. Mas é preciso que peixes menores comecem a pagar pelos pecados que cometem contra o interesse público, quando estão investidos em funções de comando em governos. Têm menos poder, mas, sem a participação deles, reduz-se a margem do poder discricionário do Iphan, ora destruidor, ora salvador. Não existe corrupto na área pública sem o seu correspondente corruptor. E esse “mercado” paga à vista.
Ernesto Marques é jornalistas e vice-presidente da Associação Bahiana de Imprensa.