Existe crime depois da prisão?

Imagens do primeiro presidio construido e administrado no regime de PPP (Parceria Publico Privada) no estado.

Por Natália Martino e Leo Drumond | Projeto Voz para os Jornalistas Livres

Nos primórdios, ela era um mero lugar de espera para o cumprimento da pena, que podia ser de enforcamento, fogueira ou suplício em praça pública, por exemplo. Evoluímos como sociedade e hoje a prisão é a pena em si – o suplício saiu das praças e passou a ser escondido por muros altos. No caminho trilhado pelas sociedades ocidentais, o discurso oficial amenizou o caráter repressivo do encarceramento e criou para ele objetivos educacionais. Está lá, na Lei de Execução Penal brasileira em seu primeiro artigo: “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Não se trata de vingança, e sim do que é chamado de ressocialização – conceito esse bem mais controverso do que parece, mas essa discussão vai ficar para outro momento. A pergunta é: funciona? “É ruim, mas é bem melhor do que acreditamos” é a resposta da socióloga Roberta Fernandes, que recentemente concluiu sua dissertação de mestrado sobre reincidência criminal em Minas Gerais.

Itauna_MG, 30 de janeiro de 2014. Modelos alternativos de presidios Na foto, a APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policias e armas Foto: LEO DRUMOND / NITRO
APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policias e armas

Essa é, em geral, a medida mais usada para avaliar o funcionamento de uma pena privativa de liberdade. Se alguém ficou preso e voltou a cometer crimes é porque a prisão não teria funcionado. Em sua dissertação, apresentada na PUC/MG em 2015, ela não deixa de relativizar esse indicador ao destacar que outras questões socioeconômicas são importantes e que acompanhar o egresso depois da saída da cadeia é essencial para aumentar as chances de reinserção social. “Você coloca o indivíduo em uma instituição total, que mortifica o ego e padroniza os comportamentos. Assim, você mata quem ele era antes da prisão e cria para ele uma nova identidade. Só que essa identidade não serve mais quando ele sai de novo da prisão”, explica. Distância da família, ausência de assistência do estado e estigma de ex-presidiário podem formar uma tríade que, em alguns casos, é capaz de inviabilizar o retorno à legalidade daquele indivíduo independentemente da sua experiência na penitenciária.

Dito isso, vamos ao resultado da pesquisa. Depois de acompanhar por cinco anos inquéritos policiais em busca de 800 dos 2.116 condenados que saíram de penitenciárias mineiras no ano de 2008, Roberta concluiu que o índice de reincidência no crime em Minas Gerais é de 51,4%. O número é alto, sem dúvida, mas é bem menor do que se especula normalmente. “Há uma fala que ficou enraizada no discurso brasileiro de que esse índice chega a 85%, mas não existe nenhum trabalho que comprove isso empiricamente”, diz. Em sua dissertação, ela destaca que a prisão teve um efeito positivo em quase metade dos casos estudados. “Não consideramos uma taxa baixa e satisfatória, mas em relação à especulação midiática, do senso comum e da militância do abolicionismo penal, que se estima de 75% a 85%, a prisão demonstra um indicador ruim, mas não tão ruim quanto se fala”, avaliou em seu trabalho.

APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policiais e armas
APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policiais e armas

Um dado, porém, chama atenção. No universo pesquisado estavam aqueles que ganharam as ruas por cumprimento total da pena e aqueles que conseguiram livramento condicional. De acordo com os resultados de Roberta, aqueles que cumpriram toda a pena estão 97,5% mais propensos a voltar a cometer crimes em relação aos outros. “A sociedade sempre quer que a pena seja o mais longa e o mais cruel possível, mas talvez esse excesso de prisão não funcione”, avalia. A socióloga explica que existem duas hipóteses principais para explicar a diferença. A primeira é a de que os condenados que cumpriram pena até o fim seriam aqueles de mau comportamento, o que teria impedido a progressão do seu regime. Portanto, seriam pessoas com menor predisposição para seguir regras. A segunda explicação possível é a de que o livramento condicional impõe uma série de regras, como não sair de casa depois das 22h, o que poderia reduzir as oportunidades de ação criminosa.

Discurso ressocializador ainda está longe da realidade

Na conclusão do seu trabalho, a socióloga diz que a “função ressocializadora” foi incorporada no discurso da prisão ao longo da história, mas não tem um efeito expressivo nas nossas prisões. Para ela, entre tantas necessidades de melhorias, uma é fundamental: valorizar o agente penitenciário. É precisar formar a identidade dos agentes penitenciários como educadores. O código que deve dirigir o trabalho dos membros dessa corporação, como explica Roberta Fernandes, é a Lei de Execução Penal, que tem caráter educativo. Ao contrário do Código Penal, uma lei altamente punitiva e que dirige o trabalho de outros órgãos da Justiça Criminal, a legislação que trata do funcionamento das penas visa o ensino e não a repressão. “Os agentes, portanto, teriam que ser educadores, essa teria que ser a identidade deles”, afirma.

Ribeirao das Neves_MG, 10 de Janeiro de 2013. Revista Veja_PPP Presidio MG Na foto, imagens do presidio que sera inaugurado como modelo de gestao de PPP (Parceria publico Privada). Foto: LEO DRUMOND / NITRO
Treinamento de agentes penitenciários no presidio PPP (Parceria publico Privada) em Ribeirão das Neves (MG).

Vários outros são os problemas enfrentados pelas penitenciárias, como a dificuldade de individualizar a pena. “O indivíduo que cometeu um pequeno delito acaba cumprindo pena ao lado de um ‘criminoso de carreira’”, afirma Roberta, que atua em várias instituições que trabalham com o sistema prisional. Um dos indicativos de que estamos longe de resolvermos qualquer umas das questões é a quase ausência de dados e pesquisas na área. Não sabemos o tamanho do problema, suas causas e suas dinâmicas. E assim fica impossível achar uma solução.

Mais conteúdo sobre sistema prisional você pode ver aquiaqui.

Sobre modelos alternativos ao sistema carcerário tradicional temos este artigo. Para as críticas sobre os modelos veja aqui.

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