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Dom Pedro Casaldáliga e o Quilombo Campo Grande do MST em Minas

“Que tenhamos a graça, a coragem e a sabedoria para honrarmos o imenso legado espiritual e profético que Dom Pedro nos deixou”

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Diante de Dom Pedro Casaldáliga, precisamos “tirar as sandálias”, pois estamos diante de alguém sagrado, místico no verdadeiro sentido, porque se tornou profeta, bom pastor, além de poeta. Marcou-me muito as 12 vezes que tive a alegria e a responsabilidade de estar com “o bispo vermelho”.

Por Gilvander Moreira[1]

Conheci Dom Pedro Casaldáliga em 1985, enquanto ele dava uma palestra no Studium Teológico, em Curitiba, PR. Fiquei impressionado com aquele homem franzino, mas que com língua afiada, dedo em riste, olhar vibrante, utopia da terra sem males no coração, profetizava dizendo: “Se eu tiver que escolher entre o amor e a justiça, ficarei com a luta pela justiça, pois em uma sociedade estruturalmente injusta não basta amar no sentido de solidariedade”.

Marcou-me muito a segunda vez que estive com Dom Pedro Casaldáliga, no Memorial da América Latina, em São Paulo, SP. Dom Pedro, com amor infinito por todos os povos latino-americanos, bradava: “Temos que construir a Pátria Mãe, a América AfroLatÍndia, pois nossa América não é apenas latina, é principalmente indígena e afrodescendente. Somos povos irmãos. Não podemos ficar olhando para Europa e Estados Unidos e de costas para os povos da Pátria Grande, nossa América AfroLatÍndia. Somos povos irmãos, porque fomos vítimas de genocídio indígena e de escravização pelos opressores europeus. Que maravilha o esplendor cultural existente na nossa Pátria Grande e Mãe.”

Em 1992, Dom Pedro, de surpresa, chegou a São Paulo, na celebração dos 60 anos de Frei Carlos Mesters. Chegou carregando um grande pote e, retirando de dentro do pote uma Bíblia da edição Pastoral, dizia: “Frei Carlos Mesters é presença do Deus da vida no nosso meio que retira do baú, do pote, coisas velhas que são coisas da vida e da caminhada. Carlos Mesters democratiza o acesso aos textos bíblicos ao nos ensinar a fazer leitura bíblica de forma comunitária, ecumênica, transformadora e militante. Quem não leu ainda deve ler todos os livrinhos do frei Carlos Mesters. Seus textos, frei Carlos, nos ajudam na caminhada de enfrentamento ao latifúndio, na Opção pelos Pobres, na luta pela terra e pelos direitos dos povos indígenas.”

Inesquecível também o protagonismo de Dom Pedro Casaldáliga no 10º Intereclesial das CEBs, em Ilhéus, na Bahia, em julho de 2000. Irradiando espiritualidade, ecumênica e macroecumênica, Dom Pedro bradava profeticamente: “Nosso sonho, nossa utopia, é a terra sem males. Esse é o sonho de Deus, pois a terra é de Deus, pertence a Deus. Malditas todas as cercas …”

Em 2015, a convite do bispo Dom Adriano Ciocca, tive a alegria de passar uma semana na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT, assessorando um retiro da equipe de pastoral da prelazia, equipe composta por Dom Adriano, padres, freis, freiras e leigos/as da caminhada. Vi que a Prelazia de São Félix, sob a guia de Dom Pedro Casaldáliga, se tornou uma das locomotivas da profecia na Igreja dos Pobres não apenas no Brasil, mas na América AfroLatÍndia e em muitas regiões do mundo. Na Prelazia de São Félix, meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não fosse a presença e o apoio firme de dom Pedro Casaldáliga, das irmãzinhas de Jesus, e de todos/as os/as agentes de pastoral da Prelazia de São Félix, os povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá e outros não teriam reconquistado parte dos seus territórios.” Foi na Prelazia de São Félix que iniciou a Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo, uma das atividades da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Um missionário me informou: “Após as primeiras chuvas e enchentes, todo ano aqui na região do rio Araguaia, acontece uma grande mortandade de peixes, porque a enorme quantidade de agrotóxicos pulverizados nas lavouras vai para os cursos d’água. Morre muito peixe e o número de pessoas doentes cresce assustadoramente.”

Em Ribeirão Cascalheira, na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT, visitei o Santuário dos Mártires da Caminhada. Emocionante caminhar onde o padre João Bosco Burnier, missionário jesuíta, foi martirizado de 11 para 12 de outubro de 1976. Ouvi que Dom Pedro Casaldáliga, ameaçado de morte na Prelazia, e o padre João Bosco Burnier, após celebrarem com o povo os festejos de N. Sra. Aparecida, incomodados pelos gritos de duas mulheres presas – Margarida e Santana – foram interceder por elas na delegacia-cadeia de Ribeirão Cascalheira. As mulheres estavam “impotentes e sob torturas: um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, sob as unhas; essa repressão desumana”, relata dom Pedro no livrinho “Martírio do Padre João Bosco Penido Burnier”, da Ed. Loyola.

Aos 92 anos, com 52 anos sendo missionário profeta no Brasil, Dom Pedro Casaldáliga fez sua páscoa no dia 8 de agosto de 2020 e agora vive em plenitude e em nós na luta sempre, pela construção do reino de Deus a partir do aqui e do agora. Na Missa das Exéquias, celebrada em São Félix do Araguaia, no dia 12 de agosto, Dom Adriano Ciocca, atual bispo de São Felix do Araguaia, afirmou que “o sonho de Deus foi o sonho de Pedro também, o sonho do Reino”, porque “ele queria justiça, queria fartura, queria alegria, vida plena para todas e para todos.” E continuou Dom Adriano: “Ele sonhou, e sonhou com os pés no chão, porque não ficou só no sonho, mas ele procurou viver e lutar para que este sonho se realizasse.” E Dom Adriano lembrou a opção radical de Dom Pedro Casaldáliga pelo seguimento a Jesus de Nazaré, colocando-se ao lado dos oprimidos, injustiçados, marginalizados: “´Se fez peão com os peões, se fez índio com os índios, se fez solidário com quem Deus se solidarizou, os abandonados, os excluídos, os escravos.”

O corpo de Dom Pedro Casaldáliga descansa no cemitério dos Carajás, onde eram sepultados os sem nome. Seu corpo lá está, debaixo da cruz, entre um peão e de uma mulher prostituída. Com os pobres, os preferidos de Deus, na beira do rio Araguaia, com paz inquieta, foi plantado o corpo de Pedro, semente de vida nova, de ressurreição! Que tenhamos a graça, a coragem e a sabedoria para honrarmos o imenso legado espiritual e profético que Dom Pedro nos deixou.

Dom Pedro Casaldáliga, com paz inquieta, esteve vivo misticamente com todas as pessoas do Quilombo Campo Grande, do MST, no sul de Minas Gerais, e com todos/as que se somaram na resistência durante três dias e três noites. Certamente, Dom Pedro, com ira santa e profética, assina embaixo da denúncia que se segue, abaixo.

Aconteceu uma tremenda injustiça, barbárie no Estado de MG dias 12, 13 e 14 de agosto de 2020. No Quilombo Campo Grande, do MST, em Campo do Meio, no sul de MG, há 22 anos, 453 famílias Sem Terra vivem dignamente dando função social para mega-latifúndio das terras da ex-Usina Ariadnópolis, de 4.900 hectares, que estava totalmente abandonado e ocioso, após a Usina falir deixando mais de 400 milhões de reais de dívida trabalhista.

Quilombo bombardeado

Enquanto o irmão sol voltava a brilhar dia 12 de agosto de 2020, vimos na cidade de Campo do Meio um cortejo de morte com dezenas e dezenas de viaturas, ambulâncias, caminhões do Corpo de Bombeiro, um aparato de guerra, a PM de MG, a mando do governador Romeu Zema (do Novo), com decisão liminar de reintegração de posse do TJMG, com mais de 200 policiais de vários batalhões, com caveirões, cachorros, helicóptero e pesado arsenal de armas, com tropa de choque, fazer despejo de várias famílias no Quilombo Campo Grande, do MST. Os Sem Terra do MST, com a militância de uma vasta rede de apoio, resistiram três dias e três noites, de 12 a 14/8/2020. Policiais atearam fogo em várias partes do Quilombo e no final bombardearam o Quilombo com chuva de bombas de gás lacrimogêneo, com voos rasantes do helicóptero da PM, com policiais apontando metralhadoras para o povo que resistia bravamente. Asfixiando os Sem Terra com gás lacrimogêneo e terror, a PM expulsou crianças e professoras e destruiu a Escola Popular Eduardo Galeano, destruiu setes casas e não ofereceu alternativa digna de moradia previamente.

Uma das primeiras barreiras de resistência que a tropa de choque encontrou foi um grupo de crianças Sem Terrinha, do MST, que, de cabeça erguida e muita coragem, segurando cartazes, bloqueavam a estrada por onde a tropa de choque deveria passar para fazer o infame despejo. Uma das cenas mais emocionantes e eloquentes: crianças Sem Terrinha, na luta, resistindo à investida de um imenso aparato bélico. Diziam: “Não derrubem nossa escola!” “Não derrubem nossas casas!”

Em meio à pandemia, esse despejo é genocida. A Liminar de reintegração de posse cumprida com repressão e violência policial é injusta, inconstitucional, cruel e uma ação genocida do Governador Romeu Zema. A decisão do TJMG, que expediu a liminar de reintegração e se negou a cassá-la, mesmo diante de “mil” argumentos da Defensoria Pública, do Ministério Público e de Advogados Populares, é inconstitucional, porque viola e pisoteia no principal princípio e básico da Constituição de 1988: RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Além do terror espalhado, da Escola Popular Eduardo Galeano, de várias casas, sonhos e direitos destruídos, quantas pessoas terão contraído ou disseminado o coronavírus durante os três dias de megaoperação de despejo durante a pandemia, violando todas as regras sanitárias recomendadas pela OMS e por médicos infectologistas?

A Ocupação do mega-latifúndio das terras da ex-usina Ariadnópolis, em Campo do Meio, aconteceu em 1998, 22 anos atrás, como fruto do combate ao trabalho escravo no sul de MG e como fruto dos mártires de Eldorado dos Carajás. Todos os presidentes do Brasil, de 1998 até hoje, poderiam e deveriam ter desapropriado o latifúndio que estava abandonado sem cumprir a função social, mas nenhum presidente nos últimos 22 anos assentou as 450 famílias Sem Terra do MST que já sofreram seis cruéis despejos, mas não arredam o pé da terra. “Essa terra é nossa”, bradam heroicamente os Sem Terra do MST.

O Poder Judiciário também, em 22 anos, se julgasse conforme os princípios da Constituição do respeito à dignidade humana, função social da propriedade e direito à terra poderia e deveria ter decidido, justamente, a favor dos Sem Terra do Quilombo Campo Grande, mas até hoje tem decidido para beneficiar empresários especuladores. Indignados com mais essa imensa sexta-feira da paixão promovida pelo Estado em MG, reafirmamos que não há despejo apropriado e nem oportuno. Todo despejo é maldito, cruel, desumano, execrável e desintegrador de sonhos e de direitos. Mas a história demonstra que a força mística e espiritual dos injustiçados é invencível. O mais profundo da história é construído pelos/as injustiçados/as.

Os opressores e os violentos, mandantes e executores, serão jogados na lata de lixo da história. Vivem e viverão sempre em nós na luta por tudo o que é JUSTO e BEM COMUM: as profetizas e os profetas, Jesus Cristo, Che Guevara, Rosa Luxemburgo, Chico Mendes, Padre Ezequiel Ramin, Padre Josimo, os fiscais massacrados em Unaí, Irmã Dorothy, Margarida Alves, os Sem-Terra assassinados, Dandara, Zumbi, Antônio Conselheiro, Dom Pedro Casaldáliga … Enfim, uma multidão de mártires que nos impulsionam na luta obstinada pela construção de uma terra sem males.

Exigimos que o Governador de MG, Romeu Zema, e/ou o presidente do TJMG, desembargador Gilson Gomes Lemes, suspendam esse despejo absurdo em tempo de pandemia e proíbam outros despejos durante a pandemia. Despejar não é atividade essencial. Exigimos Despejo Zero! E exigimos com urgência a DESAPROPRIAÇÃO DEFINITIVA do latifúndio das terras da ex-Usina Ariadnópolis. O MST iniciou o despejo do Zema.

Pedimos em nome de Deus, das crianças e por respeito à dignidade da pessoa humana: Parem todos despejos no Brasil para salvar vidas!

18/8/2020.

 Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Exigimos “Despejo Zero” para salvar vidas – Por frei Gilvander – 1ª Parte – 17/8/2020

2 – “A luta não vai parar!” MST e Quilombo Campo Grande, em MG: Despejo é crime; na pandemia, genocídio

3 – Lições da luta/resistência no Quilombo Campo Grande, do MST, sul de MG, após despejo genocida/cruel

4 – Cenário de guerra no Quilombo Campo Grande, do MST, Campo do Meio/MG: Gov. Zema, TJMG, PM/MG/14/8/20

5 – PM de MG bombardeando o Quilombo Campo Grande, do MST, em campo do Meio, MG: barbárie – 14/8/2020

6 – Quilombo Campo Grande, do MST, resiste há 48 horas ao despejo, em Campo do Meio/MG. Caveirão na área

7 – PEDRO, PROFETA DA ESPERANÇA – Documentário da Verbo Filmes sobre Dom Pedro Casaldáliga – 08/8/2020

8 – Homenagens a Dom Pedro Casaldáliga: místico = Profeta, Pastor e Poeta -missa, Batatais/SP, 09/8/2020


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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Mariana Ferrer chora durante julgamento em que foi humilhada o ofendida

A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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