Acordei cedo, banhei, caminhei ao trabalho. Tudo tão reto nos trilhos. Liguei o computador. Lá estava Clarice de cara na tela, 98 anos de Lispector.
Detenho-me em breves segundos, uma eternidade. O que esperar no dia de hoje, o aniversário de enigmática escritora comemorado no Google? Aguardo.
Esquento a água para o café, coo o devido pó, saboreio e fumo.
Enfim, começo o dia, logo me cai manchetes na rede. São os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o meio ambiente que dominam as notícias, devido ao ministro nomeado. Ai, mais um ministro. Vou lendo, buscando Clarice nos fatos, e a encontro no Rio da Dúvida.
O Rio da Dúvida, na distante Rondônia e seus diamantes rosas em terra indígena dos índios Cinta Larga, bem entendo agora, me recordo que ao final de certo dia entrava Apoena Meireles num caixa eletrônico em Porto Velho. Era 2004, e triste chacina pôs os indígenas nas manchetes mundiais anunciando o assassinato de 29 garimpeiros. Não foi assim, um chegar e rachar cabeças, mas uma trama de perdição na cobiça e avareza.
O sertanista Apoena Meireles estava em uma missão para comunicar aos índios Cinta Larga a decisão do governo federal de fechar o garimpo em suas terras e de buscar uma nova legislação sobre a mineração na região. A área ocupada pelos índios Cinta Larga em Rondônia é rica em minerais como cassiterita, ouro e diamante.
Cito Betty Mindlin:
Assassinado em 9/10/2004, em Porto Velho, em circunstâncias ainda pouco claras, seu enterro foi acompanhado por cantos fúnebres de numerosos povos, como os Xavante (Mato Grosso). Os Suruí (Rondônia) reservaram-lhe, ao final deste ano, o seu mais belo ritual, o Mapimaí, o das duas metades unidas no Apoena, aposentado muito jovem, voltou à FUNAI, que presidira em 85/86, para tentar redefinir, com os Cinta Larga e o governo, uma solução aceitável para as valorizadas jazidas de diamante em suas terras, a serem exploradas agora pelos próprios índios, pretendendo-se menores custos de intermediação e de impactos sócio-ambientais. Trata-se do Parque Indígena do Aripuanã, criado em 1969, um dos maiores do país, na Terra Indígena do rio Roosevelt, antes chamado rio da Dúvida, rebatizado após perderem-se aventurosamente o Marechal Candido Rondon e o ex-presidente Theodore Roosevelt em 1913, numa excursão legendária: o início do século XX. Meses antes da última missão de Apoena em Rondônia, 29 garimpeiros foram assassinados nas terras indígenas, em circunstâncias pouco claras quanto ao envolvimento dos índios, seguramente fartos dos abusos decorrentes da cobiça por suas imensas riquezas, madeira, recursos hídricos e metais nobres, que envolvem interesses milionários. Estes diamantes, altamente cotados, remontam ao mito do Eldorado amazônico. Em 1963, garimpeiros e seringalistas exterminaram uma aldeia inteira, tragédia conhecida como “o massacre do paralelo 11”. Apoena, com sua coragem habitual, afrontou, em 2004, a versão contemporânea deste poderio econômico mal conhecido, escuso e de vastas dimensões, com ramificações internacionais e lobby eficaz no país: os diamantes da Terra Cinta Larga do Roosevelt estariam entre os melhores do mundo, dentre outros minérios, envolvendo somas astronômicas de dinheiro.
Triste fato relembro, mas me animo em saber que direitos humanos ainda empolgam os homens. De repente invade os ânimos um árido relatório em destaque nas manchetes, também nessa segunda-feira :
Brasil tem 453 garimpos ilegais na Amazônia, de acordo com mapa inédito apresentado nesta segunda-feira (10) pela Raisg (Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada). Em todo o bioma —que se espraia por nove países, em quase 7 milhões de km²—são mais de 2.500.
Seres humanos e seus animais não são supérfluos, nem suas plantas, música e danças. Meio ambiente e cultura são o antídoto aos males do mundo. Os que negam os direitos e veem renda em toda atitude, turvam as águas, contaminam o solo, tornam os ventos mortíferos.
Há uma epidemia a se alastrar no país, entendo agora ao final do dia, em busca de ouro e outros dividendos. Pelas riquezas sob as terras, novos ministros não pouparão esforços. A ministra que dará cuidados à Funai já anunciou que quer tocar os homens que se ausentam na imensidão, aqueles que renegam o ocidente, isolados se abrigam de nós brasileiros em suas florestas. Diz que é em nome de deus, e não reconhece que Deus antecede seu tempo de pregação, e usa diferentes trajes, e muitas vezes Deus está nu mesmo, em pêlo.
Por que o inferno invadirá os corações das florestas do Brasil nesse momento? Sim, é questão de cobiça e avareza, não de pães, fé e direitos.
“A incidência de garimpo ilegal na Amazônia, especialmente em territórios indígenas e áreas naturais protegidas, tem crescido exponencialmente nos últimos anos com o aumento do preço do ouro. No entanto, é uma das pressões menos pesquisada, em relação ao desmatamento para expansão da pecuária, por exemplo, devido também aos riscos associados ao seu mapeamento. Por isso, a Raisg decidiu incluí-la como uma das questões que necessitam de monitoramento contínuo, especialmente por seus impactos sociais e ambientais “, diz o coordenador geral da Rede, Beto Ricardo, do Instituto Socioambiental (ISA).
Não Verás Pais Nenhum é título de romance, onde Ignácio de Loyola Brandão relatava que uma distopia política é também uma distopia ecológica. Bem lembrado:
… não apenas um Estado dispõe de forma autoritária e truculenta sobre os recursos da natureza, como a própria sociedade, além de não ter controle sobre as ações do governo, parece ter pouco apreço pelo meio-ambiente em si – destrói um museu sobre a natureza e uma reserva ecológica clandestina, por exemplo –, embora seja quem realmente sofra suas consequências danosas, já que os agentes estatais se protegem por meio de cúpulas climatizadas e refrigeradas.
E todo o dia acaba, é como Clarice Lispector finalizando sua apresentação na Hora da Estrela dizendo:
E – e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova de existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar: acreditar chorando.