Conecte-se conosco

desemprego

DANIEL HÖFLING: Lições do COVID-19 — outro mundo é possível

Publicadoo

em

À esq., a favela de Paraisópolis, a segunda maior de São Paulo, com 100 mil habitantes; do lado direito, um dos condomínios de luxo da região do Morumbi

O medo e a desolação no Brasil e no mundo aumentam com a intensidade do espraiamento viral. Ainda que, infelizmente, muitos brasileiros não tenham se apercebido da dimensão do problema, parte considerável da população encontra-se temerosa. Ontem (7/4), pela primeira vez, morreram mais de cem pessoas em um único dia no país e as perspectivas são de incremento neste número. Entretanto, em meio ao desespero, abrem-se possibilidades concretas na direção de um futuro certamente melhor do que o presente, mas também superior ao passado. Pode não parecer, mas há o que comemorar!

John Maynard Keynes, um dos maiores pensadores do século XX escreveu, em 1930, no auge da depressão mundial decorrente da Crise de 1929, um ensaio brilhante denominado “Possibilidades econômicas dos nossos netos”. Nele afirmava que, apesar do pessimismo generalizado de então aniquilar qualquer esperança, as perspectivas em relação ao futuro eram alvissareiras. Dali a 100 anos (portanto em 2030), a vida da humanidade mudaria por completo. O problema econômico fundamental, a escassez material, desapareceria.

Em virtude do avanço tecnológico, as pessoas não precisariam trabalhar 8 horas diárias para sobreviver. O corolário dessas mudanças seria uma humanidade livre das privações básicas concernentes ao acesso à saúde, educação, moradia e cultura e com tempo abundante para se dedicar aos sentimentos e atividades realmente enriquecedoras: o amor, a arte, o momento.

A maioria dos críticos afirma que Keynes estava errado. Acredito que não; os fatos comprovam isso. Segundo a FAO (2018), o mundo produz 2,5 bilhões de toneladas de grãos por ano, suficiente para atender a demanda mundial, ainda que quase um bilhão de pessoas passem fome; a estrutura produtiva do planeta é capaz de construir hospitais, moradias e rede de esgotos para o conjunto da população, apesar de o WRI (World Resource Institute, 2019) afirmar que 1,2 bilhão de citadinos “não têm acesso a habitação segura e de qualidade”; de acordo com o relatório do FMI (Fundo Monetário Internacional
– World Economic Outlook, 2019), o PIB mundial per capita é de US$ 11.860, ou seja, praticamente US$ 1.000,00 por mês, o que permitiria uma vida razoável para todos os terráqueos. Keynes, portanto, não estava errado. Existem hoje condições materiais para atender às necessidades básicas da humanidade; o problema reside na iniquidade de sua distribuição. Entretanto, neste e outros quesitos, a crise atual demostrou que outro mundo é possível. E não precisamos esperar décadas para sua concretização.

O avanço da base material profetizado por Keynes foi acompanhado por uma expansão brutal das políticas públicas de proteção social ligadas à saúde, educação, moradia e infraestrutura urbana em virtude da elevação da participação do Estado na economia. Como afirma John Kenneth Galbraith, um dos maiores economistas estadunidenses do século XX, “os serviços federais, estaduais e municipais representam (em 1970) 1/4 de toda a atividade econômica. Em 1929, perfaziam apenas 8%”. Tais números eram ainda maiores na Europa.

A combinação entre crescimento do investimento produtivo (estatal e privado) e ampliação das políticas públicas conferiu aos cidadãos dos países desenvolvidos um bem-estar generalizado. Tamanho incremento na qualidade de vida não ocorreu por acaso. Ele foi fruto da desolação tanto da Crise de 1929 quanto das I e II Guerra Mundiais, que revelaram ao mundo a incapacidade do liberalismo econômico em proporcionar condições dignas de vida ao conjunto da população.  A desgraça desses eventos levou ao reconhecimento de que a ordem liberal vigente até então era inadequada ao bem-estar coletivo. A partir daí embates sociais e políticos profundos acarretaram o desenvolvimento dos denominados “Estados de Bem-Estar Social” —provavelmente o que houve de mais sofisticado nas democracias ocidentais desenvolvidas. O caos econômico e social que prevaleceu até 1945 propiciou o advento de uma sociedade solidária que alçou o bem-estar coletivo como objetivo supremo a ser alcançado. Reconheceu-se que a liberdade individual só poderia existir em meio à abundância coletiva e que a prosperidade de poucos levava à exclusão de muitos. As sociedades arrasadas de então tomaram decisões políticas em prol da solidariedade econômica e social, mudando por completo seu destino. Foi, portanto, uma oportunidade histórica aproveitada. Nos defrontamos hoje, novamente, com tal oportunidade. E não podemos desperdiçá-la.

Infelizmente, à exceção dos Anos Dourados (os Trinta Gloriosos, entre 1945-75), os pilares ideológicos da economia capitalista sempre sustentaram o imaginário ocidental. A busca incessante pelo lucro, a primazia do setor privado sobre o Estado, do particular sobre o coletivo, do livre-mercado, da concorrência e da meritocracia constituem valores defendidos com unhas e dentes pelos indivíduos supostamente livres que se digladiam ordinariamente nas sociedades capitalistas desreguladas em busca da sobrevivência. Na
crise atual, tais valores vêm sendo peremptoriamente negados, demonstrando sua insignificância no combate às mazelas que ora nos assolam. A farsa desses conceitos foi desmascarada pela atual crise econômica —desenhada muito antes do advento do Covid-19, mas sem dúvida nenhuma aprofundada pelo mesmo.

Novamente, ficou evidente que os mercados não se auto-regulam e que a primazia do Setor Público sobre o setor privado é incontestável, principalmente (mas não só) em períodos emergenciais.

Sem a ajuda econômica estatal, sem o sistema de seguridade social e sem os hospitais públicos, o caos imperaria. Os países que no passado avançaram nas privatizações estão pagando um alto preço agora. Aqueles que não possuem um sistema de saúde universal, mesmo que ricos, sofrem arduamente; os Estados Unidos são um exemplo claro de que a prosperidade privada de poucos não garante o bem-estar da maioria. O país mais rico do mundo comprova que não há a mínima possibilidade dessa subjetividade denominada mercado ou a filantropia dos bilionários, bastante comedida atualmente, resolverem os problemas econômicos e sociais em curso. No caso do Brasil, os hotéis-hospitais destinados à diminuta parcela da população jamais substituirão a capilaridade e solidariedade do Sistema Único de Saúde. Parafraseando aquele médico daquela emissora: “Ainda bem que temos o SUS”.

A atual crise evidenciou que o mercado só sabe jogar quando a economia vai bem; mesmo assim, contribui à piora gradativa da partida durante o jogo e, cedo ou tarde, demanda a mão visível do Estado.

Os interesses econômicos parecem ter perdido seu protagonismo em meio ao combate ao Covid-19. A quase totalidade dos governos optou por desacelerar a economia para salvar vidas. Isso tem um significado profundo: a busca incessante pelo lucro perdeu seu reinado e deixou de comandar a sociabilidade nas economias capitalistas, abrindo espaço para a preocupação com o próximo —seja ele quem for. A vida do outro, a vida de todos, é o balizador da racionalidade que ora impera. O amor ao dinheiro foi substituído pelo amor ao próximo. A crise demonstrou que os Estados podem sim socorrer os necessitados através das transferências diretas de recursos. Ficou provado que há dinheiro para todos! Basta distribuí-lo melhor! As pessoas, e não somente os bancos como de costume, podem e devem receber recursos monetários caso precisem. E essa “ajuda” não levará nenhum país à bancarrota tampouco quebrará alguma economia, senão o contrário: a ausência dessas transferências varreria nações inteiras do mapa. “De repente” explicitou-se que caso as pessoas percam seus empregos e/ou suas rendas o mundo colapsará; evidenciou-se que as reformas trabalhistas direcionadas à precarização das relações de trabalho e ao achatamento dos salários ou as reformas previdenciárias que buscam a retirada de direitos, conclamadas pelos neoliberais como a panaceia ao desenvolvimento econômico, na verdade são contraproducentes e caminham na direção contrária à estabilidade social e prosperidade econômica das nações. Ficou claro que quanto mais nos aprofundarmos nessas reformas, menores serão nossos mecanismos de defesa contra as intempéries inerentes ao livre-mercado.

Precisamos admitir que trilhamos nos últimos 40 anos um caminho errado. Necessitamos reconhecer que os problemas ora enfrentados não são apenas oriundos do Covid-19, mas sim intrínsecos ao sistema capitalista desregulado.

Independentemente da pandemia, o desemprego, a desigualdade e a exclusão vinham aumentando na maioria dos países. A concentração brutal da renda é um dado; a marginalização crescente das pessoas, um fato. Um mundo no qual as 8 pessoas mais ricas do planeta detêm a mesma quantidade de recursos que a metade mais pobre da população (3,6 bilhões de pessoas, segundo a Oxfam – 2018) não pode parar em pé por muito tempo. Cedo ou tarde teremos, como sociedade, como humanidade, que enfrentar esse dilema: ou transferimos recursos aos mais necessitados ou a economia e a sociedade se dilacerarão. Sem políticas públicas de distribuição de renda, consubstanciadas tanto na forma monetária quanto nos serviços essenciais, a barbárie reinará em algum momento.

A pandemia nos deu a oportunidade de repensarmos os valores e comportamentos que regem nossas sociedades. O individualismo, a concorrência exacerbada, a correria cotidiana comandada pelo dinheiro e o consumo desenfreado perderam sentido. Nos demos conta de que tais valores são antagônicos ao bem-estar coletivo e, portanto, devemos e podemos nos livrar deles. A queda acentuada da poluição nas grandes metrópoles nas últimas semanas nos obriga a perguntar até que ponto aguentaríamos a emissão transloucada de CO2 na atmosfera. Qual o sentido de insistirmos numa produção assentada na queima de combustíveis fósseis e na produção de carros particulares e bens de consumo supérfluos, se podemos investir em energia limpa, transporte público e baixar nosso ímpeto consumista? A recuperação econômica pode e deve originar-se desses novos questionamentos e paradigmas, a exemplo do que propõe as iniciativas de renda mínima ou o “New Green Deal”. Abriu-se novamente, como no pós-guerra, uma “janela de oportunidade” para enfrentarmos os problemas da desigualdade, da exclusão, da pobreza e do meio-ambiente que são, insistindo, estruturais do sistema capitalista. Não decorreram do Covid-19; foram por ele explicitados. A pandemia nos mostrou que podemos enfrentá-los. Isso é motivo para comemorarmos! Outro mundo, melhor, é possível! No entanto, caso não incorporemos as lições que a pandemia nos ensinou, o futuro, ainda mais que o presente, poderá ser catastrófico.

 

Daniel de Mattos Höfling

é doutor em Economia

pela Unicamp

(Universidade Estadual de Campinas)

 

 

 

LEIA MAIS TEXTOS DE DANIEL HÖFLING:

DANIEL HÖFLING: Manifesto anti-barbárie (remédios contra a crise)

 

DANIEL HÖFLING: A Casa-Grande propaga o coronavírus Covid-19

 

 

Continue Lendo
2 Comments

2 Comments

  1. Raimundo Henrique

    10/04/20 at 15:05

    Quais as janelas de oportunidades?

  2. Pingback: Sara Winter e rojões: mas surge uma luz no fim do túnel

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

Publicadoo

em

Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

Continue Lendo

#EleNão

Sem papas na língua. Juliano Medeiros no Dialogando de hoje

Quais interesses políticos estão por detrás da próxima disputa eleitoral? Tudo isso e um pouco mais, sem papas na língua, como diz o Pastor Fábio. Vem!

Publicadoo

em

Quais interesses políticos estão por detrás da próxima disputa eleitoral? No Programa Dialogando desse domingo (26/07), 18h, o Pastor Fábio recebe Juliano Medeiros, presidente do PSOL para um papo sobre eleições e aprendizados da pandemia que passa por uma das fases mais críticas do momento, onde prefeituras e governos de vários Estados do país programam reabertura de mais uma parcela considerável de setores, enquanto isso, a mídia normaliza as curvas ascendentes do número de infectados pelo Coronavírus.

Outra pergunta que precisa ser respondida é qual é o sentido das eleições serem realizadas ainda neste ano? Quais interesses políticos estão por detrás da próxima disputa eleitoral? Tudo isso e um pouco mais, sem papas na língua, como diz o Pastor Fábio. Vem!

Assista, compartilhe. comente e mande perguntas no Facebook.

Juliano Medeiros é um jovem dirigente político da esquerda brasileira e desde janeiro de 2018 ocupa a presidência do Partido Socialismo e Liberdade. Historiador e Mestre em História pela Universidade de Brasília, é Doutor em Ciências Políticas pela mesma instituição.

Co-autor e organizador de Um Mundo a Ganhar e Outros Ensaios (Multifoco, 2013), Um Partido Necessário – 10 anos do PSOL (Fundação Lauro Campos, 2015) e Cinco Mil Dias: o Brasil na era do lulismo (Boitempo, 2017), colabora com sites, jornais e revistas no Brasil e exterior.[2]

Em 2018 coordenou a campanha de Guilherme Boulos à Presidência da República pelo PSOL[3] e, no segundo turno, após decisão do partido, passou a integrar a coordenação da campanha de Fernando Haddad[4]. Desde a vitória de Jair Bolsonaro, participa do Fórum dos Presidentes de Partidos de Oposição[5].

Durante mais de uma década Juliano Medeiros foi dirigente da corrente interna Ação Popular Socialista – Corrente Comunista do PSOL. Em Junho de 2019, a APS-CC se fundiu com o Coletivo Rosa Zumbi e mais oito coletivos regionais para fundar a Primavera Socialista, atualmente maior tendência do PSOL, da qual Juliano também é dirigente.[6]

Fábio Bezerril Cardoso é Pastor, cientista social, ativista social e Cofundador & Coordenador da Escola Comum e atualmente apresenta o Programa Dialogando, todos os domingos, às 18h. É um dos pastores progressistas que têm lutado pela defesa dos povos periféricos e costuma não ter papas na língua para falar sobre a realidade desses lugares. A produção é de Katia Passos, com arte de Sato do Brasil.

Conheça mais sobre a atuação do Pastor Fábio https://www.facebook.com/fabio.bezerrilhttps://www.facebook.com/fabio.bezerril

Continue Lendo

#EleNão

A quem interessa ser profeta do caos?

Publicadoo

em

Por Jacqueline Muniz, Ana Paula Miranda e Rosiane Rodrigues
Imagens de autoria dos Jornalistas Livres, capturadas em protestos, no último final de semana, em São Paulo e na França
A advertência de não realização de manifestações políticas, fundada no medo e na promoção do pânico social, é um atentado à democracia, uma forma de extorsão de poderes, de dirigismo monopolista das pautas plurais e das reivindicações divergentes de sujeitos que são diversos em cor, classe, renda, gênero, orientação sexual, instrução, etc. A advertência sob a forma de ameaça produz paralisia decisória de lideranças, imobilismo social e lugares resignados de fala, que seguem aprisionados nas redes sociais, na política emoticon do “estamos juntos” até o próximo bloqueio, diante da comunhão de princípios com diferença de opiniões: “você deve ir ao shopping, mas não a passeata”.
A fabricação de conjecturas apocalípticas e suposições catastróficas com roupagem analítica é um recurso de persuasão de via única, impositiva, que aponta para um sentido hierárquico e, até mesmo autoritário, de quem se acha portador de uma verdade ‘revelada’ sobre os atos políticos e de uma razão superior sobre os fatos da política. A fala profética é uma fala moralista, ilusionista, que, por meio do uso da fé e do afeto, inocula nas pessoas uma culpa antecipada por suas escolhas para desqualificar seus arbítrios e fazê-las rebanho dependente de um guia despachante do juízo final. Este projeto de poder necessita fazer crer que o pessimismo visionário e proselitista é mais real que a própria realidade vivida e que deve fazer parte do cálculo das ovelhas boas e más, dos aliados e opositores de ocasião. A fala profética serve aos senhores da paz, da guerra e do mercado, sem distinção. É um jogo ardiloso do ganha ou ganha em qualquer circunstância ou resultado obtido.
A quem interessa ser o profeta do caos? Ao próprio profeta que, inventor do jogo do quanto pior melhor, sacrifica seus seguidores feito gado, gasta a tinta das representações com seu próprio manifesto e promove a tensão entre espadas para se manter como o grande  conselheiro conciliador.  
Os profetas do caos são como uma fênix que ressurgem da crise que criam. Eles se apresentam como proprietários das representações políticas, à direita ou à esquerda, em cima e embaixo. Eles se oferecem como mediadores dos conflitos que provocaram, como tradutores intérpretes na Torre de Babel que criaram entre nós.  A ameaça (do caos, da morte e do cerceamento da liberdade) não serve como advertência. Os profetas do caos produzem o medo, moeda de troca fundamental para a construção de milícias, para vender os seus remédios (previsíveis, amargos e inócuos). Para eles, não importa se os doentes morrem ou vivem, o que importa é que, doentes ou não, consumam suas previsões do passado.
É notório que as polícias no Brasil têm tradição em policiar eficazmente o entretenimento lucrativo dos blocos de carnaval, shows e aglomerações em campeonatos de futebol. Nesses casos, sua atuação se dá na manutenção do status quo dos públicos, constituída a partir das atividades de contenção e dispersão das multidões. Já para o controle de pessoas que ocupam o espaço público sob a forma de protestos de todos os matizes políticos, apesar de ser um fenômeno relativamente recente e não haver protocolos policiais escritos e validados, sabemos que esses eventos se tornam encenações, nas quais janelas são abertas para oportunistas de todas as ordens, para acertos de contas da polícia dos bens com a polícia do bem, incluindo os ‘caroneiros’ de manifestação que comparecem por motivos completamente alheios às pautas dos protestos.
Nesses espetáculos públicos que encenam os jogos da política aprendemos coisas muito básicas, sejamos nós manifestantes ou espectadores: sempre haverá a presença de agentes infiltrados (que ajudam na contenção) e de provocadores, para providenciar a dispersão. A infiltração de agentes de inteligência por dentro dos movimentos sociais remonta uma antiga estratégia estadunidense da década de 1960. Ou seja, muito antes do surgimento dos Black Bloc. Nos últimos 60 anos, acumulou-se um aprendizado sobre o uso do espaço
público relativo ao círculo do protesto (aglomeração, deslocamento,  ato de encerramento e dispersão) que permite que os movimentos saibam lidar com esses elementos internos. 
Neste mesmo período aprendemos, também, que o que torna legítimo um protesto não é a quantidade de indivíduos reunidos em um território específico por um período de tempo determinado, mas os modos de ocupação do espaço público e a construção coletiva de uma agenda política que os mobilize e tenha impacto na sociedade. A produção de dossiês intimidatórios, com a participação de agentes públicos, também não é novidade. Os constrangimentos da exposição de dados acabam por jogar na lama do “tribunal digital” os adversários, fortalecendo a promoção de linchamentos virtuais, de direita ou de esquerda.
O governo Bolsonaro não é o único que tem disseminado o medo para sabotar os mecanismos de cooperação e mobilização sociais, substituindo práticas de coesão por coerções e cruzadas moralistas vindas de cima, de baixo e ao redor. Discursos do medo contra ou a favor de Bolsonaro são péssimos conselheiros porque dão a #Elenão um tamanho e uma agilidade política irreal, retirando-o do isolamento político em que se encontra para nos fazer acreditar que, quando chegarmos às ruas, imediatamente um cabo e um soldado fecharão o Congresso, o STF e tirarão as emissoras e os portais de internet do ar. O medo transforma Bolsonaro num bicho papão, num monstro mítico incontrolável que atira hordas de zumbis (com cabelos tingidos de acaju) contra todos nós.
O medo disseminado faz com que as pessoas vejam gigantes onde há sombras e abram mão de seus direitos e garantias em favor de um ‘libertário do agora’ que prometa proteção. Mas o profeta-liberador de hoje será o seu tirano de amanhã!
O rigor científico não permite que nós, pesquisadores, determinemos como os movimentos sociais devem se comportar, nem que sejam pautados por oráculos que anunciam profecias que se autorrealizam. A contemporaneidade produziu os ativismos acadêmicos, mas eles não devem substituir jamais a liberdade dos sujeitos de decidir suas agendas, nem servir de chofer dos movimentos sociais em direção à “Terra sem Males”, um mundo idílico sem conflitos e, por sua vez, sem a política. A ciência pode contribuir com diagnósticos da realidade e oferecer alternativas que considerem, inclusive, que a negação dos conflitos monopoliza o debate e as representações, obscurecendo as negociações dos interesses em disputa. Quando a decisão científica está acima da pactuação social ela deixa de ser ciência e passa a ser doutrina, retira da sociedade a responsabilidade pelas escolhas que faz, para o bem e para o mal.
Ao  olharmos a história vemos que os discursos de “lei e ordem” são utilizados sempre a serviço dos interesses do Estado e seus grupos de poder. Viver sob o jugo da espada não é novidade para as pessoas para quem o isolamento social é uma prisão histórica dos direitos de cidadania, e não um privilégio de classes. A juventude, principalmente a negra, conhece de perto a violência policial, e sabe que nem em casa está protegida.
Sobre as autoras do texto: 
JACQUELINE MUNIZ,antropóloga, professora da UFF.
ANA PAULA MIRANDA, antropóloga, professora da UFF
ROSIANE RODRIGUES, antropóloga, pesquisadora do INEAC/UFF.

Continue Lendo

Trending