Luta pela terra, luta pela água. A região noroeste de Minas Gerais, marcada pela mobilização em torno da reforma agrária e da luta pelos direitos básicos no campo, se volta para o acesso aos rios que abastecem as cidades e banham as produções da agricultura familiar e da subsistência dos moradores locais.
Diante da multiplicação dos agentes do agronegócio, a água, tão abundante, se tornou escassa. Barragens construídas em nascentes de córregos, voltadas para a irrigação das terras dos grandes empresários, têm secado correntes de água que serviam aos moradores locais, o que provocou a mobilização na região.
Nesta entrevista, Débora Firmino, presidente do Comitê de Defesa da Bacia do Rio Urucuia (COMDHRU) e que coordena a vigília que está sendo feita na nascente do Córrego Barriguda (a cerca de 45km do município de Buritis-MG), explicou a situação vivida na região, falou sobre a dificuldade dos moradores locais e pequenos produtores e alertou para a importância de se atentar à questão da água desde a sua raiz — neste caso, o Rio Urucuia, um dos principais afluentes do Rio São Francisco.
“Antigamente, esperava-se vir a chuva para plantar, mas agora querem plantar o ano todo. E para fazer isso precisam captar água. Só que a captação está beneficiando um só proprietário e deixando centenas de pessoas na dificuldade. Assim, a miséria começa a se alastrar no meio rural”, afirmou Debora, sobre mais este caso de pura e simples privatização da água.
Leia a íntegra da entrevista a seguir.
Central Autônoma: O Comitê tem tratado da queda expressiva do nível de água em razão da construção de barragens na região. Você pode explicar a situação, e também localizar a importância do rio Urucuia para a região?
Débora Firmino: O que acontece na região de Buritis, no noroeste mineiro, é que os grandes fazendeiros praticantes da agricultura empresarial têm avançado na consolidação de seus projetos de irrigação, de forma abusiva. Ocorre que se tornou rotina na região a construção de barragens nas cabeceiras dos principais córregos, com o objetivo de captar água para movimentar a irrigação. Isso funciona com uma quantidade enorme de água sem que eles sejam autorizados ou licenciados por órgãos ambientais. E esses córregos são responsáveis pelo abastecimento do rio Urucuia, um dos principais afluentes do rio São Francisco.
CA: Como se dá a construção dessas barragens? O poder público é conivente, tem alguma relação com os empresários de modo a facilitar a apropriação das águas da região?
Débora: Infelizmente, o poder público local faz vista grossa em relação aos barramentos. Eles são feitos nas nascentes dos córregos, nas veredas, nos próprios rios, e ocasionam a seca dos córregos que banham as propriedades do pessoal da agricultura familiar, da reforma agrária e dos pequenos fazendeiros.
Não existe licenciamento para construção das barragens, é o dinheiro que está mandando em Buritis. Existe uma conversa, que ainda não nos foi mostrada, de uma licença que vem da 5a Vara da Fazenda Pública de Minas Gerais, mas apenas de uma fazenda. As demais não têm apresentado. Até porque desde 2002 a lei proíbe construção de barragens.
CA: Como tem se dado a relação dos construtores de barragens com a população local? Tem diálogo, consulta ou está em conflito, enfim, como tem sido o convívio entre as partes?
Débora: Olha, está sendo uma guerra. Antigamente, existia a guerra por terra, agora a guerra é pela água. Eles fazem o barramento sem consulta e o poder público não investiga para coibir. Assim, a própria cidade está sendo afetada pela falta de água. Algumas barragens atingem até outras propriedades, mas os grandes fazendeiros proíbem o livre acesso à água aos demais produtores. E os rios estão secando, a exemplo dos córregos Barriguda, Confins, Taquaril, Bebedouro, Palmeira, Veredinha, entre outros.
Algumas barragens são construídas, como a do Bebedouro, elas “sangram”, e eles constroem mais. E vão construindo até secar o córrego. As pessoas que tinham propriedades banhadas por essas águas estão tendo de mudar suas terras, abandoná-las por falta de água. E não tem conversa entre fazendeiros e a população. Houve uma audiência pública em 12 de novembro de 2014, mas com a transição de governo, apesar dos encaminhamentos, não houve solução.
Por isso, houve uma caminhada no dia 26 de setembro até a nascente do córrego Barriguda e lá permanecem acampadas as famílias, reivindicando o direito pelo uso da água e também da terra, que quando usada de forma ilegal pode sofrer a desapropriação.
CA: Como tem sido a rotina dessa militância, com as pessoas também precisando manter sua agricultura de subsistência e seu plantio, apesar da dificuldade?
Débora: Está uma calamidade. O rio Urucuia nasce em Formosa-GO, passa por Cabeceira-GO e vem para Minas Gerais. Ele banha Arinos, Formoso, Chapada Gaúcha, Pintópolis, Uruana de Minas, Urucuia, Riachinho, Bonfinópolis de Minas, São Romão. Porém, todos os ribeirinhos estão comprando água até para beber e vendo os animais morrendo em razão da seca. E eles não têm água para nada. Buritis era uma cidade com muita água, mas a monocultura e a agroindústria estão acabando com ela.
Fizemos a caminhada, o fazendeiro entrou com um interdito proibitório, mas conseguimos entrar. Ele não queria deixar a gente ver a grandeza da barragem que, para se ter uma ideia, tem mais água que o próprio rio Urucuia. Colocaram capangas e policiamento para que a gente não tivesse acesso à nascente do Córrego Barriguda. E isso tem feito as pessoas levarem os animais para a nascente, já que o município está na seca total pelo egoísmo e ganância dos fazendeiros.
CA: Aconteceu agora em outubro, na Vila de Sagarana, o Encontro dos Parceiros do Rio Urucuia. Como você acha que está a mobilização da região em torno dessa pauta?
Débora: Olha, o COMDHRU é o Comitê de Defesa da Bacia Hidrográfica do Rio Urucuia, um movimento social diferente do CDH, o Comitê da Bacia do Rio Urucuia. O CDH é parte da sociedade civil e isso inclui os fazendeiros. E eles não têm buscado solução para tais problemas. Assim, para nós é importantíssimo a sociedade se organizar, porque o próprio desrespeito ao meio ambiente ocasiona a falta de chuva.
Precisamos ir à luta e reivindicar nossos direitos. Já marcamos uma nova audiência, em 6 de novembro, na Câmara Municipal de Buritis, para tentar buscar soluções. Portanto, pedimos que os órgãos públicos competentes e a população de todo o país abracem a causa, porque essa situação não acontece só aqui.
Antigamente, esperava-se vir a chuva para plantar, mas agora querem plantar o ano todo. E para fazer isso precisam captar água. Só que a captação está beneficiando um só proprietário e deixando centenas de pessoas na dificuldade. Assim, a miséria começa a se alastrar no meio rural.
CA: Como você mencionou, a região sempre teve um histórico de luta pela terra, inclusive com a famosa ocupação da fazenda do então presidente Fernando Henrique Cardoso, e agora puxa a luta pela água. Para você, o que falta para a sociedade ligar o alerta de que a questão pertence a todos, independentemente de vir de uma região que pouco aparece na discussão nacional?
Débora: O poder aquisitivo desvia a visão das pessoas, fazendo acreditar que a seca vem somente da falta de chuva. Mas se a sociedade começar a olhar para o lado e ver o que está acontecendo nas grandes lavouras, com os grandes fazendeiros… A indignação é que desde o descobrimento do Brasil levaram nossas riquezas para fora, e agora é a vez da água. Exportam a soja, o milho, e nossa água está indo embora também, trazendo a pobreza para o nosso país.
Existe uma conversa de que os barramentos estão guardando água, mas para quem? Infelizmente, houve uma entrevista de um representante do meio ambiente que disse que essa água tem de ser represada ou então vai para o mar. E a água que precisa banhar as regiões? O São Francisco banha cinco estados brasileiros e o Urucuia é dos grandes afluentes do São Francisco! Aí não adianta ficar reclamando que o governo não fez isso e aquilo com o São Francisco se a gente não olhar para a raiz do problema, isto é, as nascentes, os córregos, as veredas.