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Golpe

A corrupção do desejo

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A leitura do ensaio A nova modalidade de golpe de Estado: um seriado em três temporadas, da psicanalista, professora universitária, ensaísta e tradutora Suely Rolnik, me impeliu a organizar as ideias que seguem de modo a ressaltar i. que o golpe não é exclusividade do Brasil, ii. que o capitalismo financeiro neoliberal obtém apoio a seus golpes pela corrupção do desejo e iii. que do mesmo modo que o capitalismo nos captura na esfera micropolítica, temos que aprimorar nossos instrumentos de resistência para incidir na mesma esfera.

Como água que busca incessantemente escoar para lugares mais baixos, o capital financeiro, dono do poder central no mundo de hoje, busca oportunidades de lucro em todos os cantos do globo. O Brasil aparece com destaque no radar com muitas oportunidades de fartos ganhos para o capital financeiro internacional e seus parceiros locais.

Imaginemos as vantagens que serão repassadas aos donos do capital se reduzirmos ou acabarmos com o Sistema Único de Saúde, com as escolas e as universidades públicas, com a previdência pública. Imaginemos, ainda, os lucros potenciais daqueles que comprarem o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, a Petrobras ou a Eletrobras. Imaginemos as possibilidades, para empresas estrangeiras, se elas puderem entrar na disputa por obras do governo, se puderem disputar livremente um mercado de 209 milhões de pessoas, consumidoras por um lado e força de trabalho com baixos salários e poucos direitos por outro. Imaginemos as possibilidades de ganho pela posse ilimitada de nossas terras, de nossas florestas, de nosso subsolo, de nossas águas.

Os governos Collor e FHC aderiram plenamente ao regime capitalista financeiro neoliberal ao escancarar o país com as privatizações, com a desregulamentação para fluxos de capitais financeiros e de investimento, com a abertura para importação e redução drástica de impostos sobre produtos importados. No entanto, nosso país teve sua completa conversão ao modelo neoliberal, dominante no mundo desde o último quarto do século XX, bloqueada pelos governos de Lula e Dilma.

Como realizar e embolsar esse imenso lucro potencial com os negócios no Brasil?

Suely Rolnik nos ensina que, para atingir seu fim último, o capitalismo contemporâneo mundial precisa “eliminar todo e qualquer tipo de estorvo que interrompa ou diminua a velocidade da circulação de capitais, de informação e de subjetividades por vários lugares e funções. Os obstáculos podem ser encontrados em qualquer rota do capital e são de ordens variadas e variáveis – pessoas, grupos, instituições, serviços, postos de trabalho, fronteiras, países, leis, imaginários, hábitos, modos de existência, etc.”

“O Estado de direito e o regime democrático estão entre os principais obstáculos macropolíticos ao capitalismo financeirizado globalitário”, aponta ela e adverte que o seriado se passa no Brasil, porém, com pequenas adaptações, é semelhante à versão paraguaia, espanhola, polonesa, austríaca, húngara ou russa: “Com variações de nuances para adaptar-se aos diferentes contextos, a estratégia do novo tipo de golpe de Estado tende a ser a mesma.”

Primeira temporada

Por toda parte é evidente que o poder repousa nas mãos do capitalismo financeiro neoliberal e, simultaneamente, verifica-se a tomada do poder por forças conservadoras. Suely Rolnik mostra como isso se deu no Brasil:

Na primeira temporada (que no Brasil tem início em 2005 com o ‘Mensalão’), se estabelece uma aliança entre, de um lado, os poderes Legislativo, Judiciário e Policial e, de outro, o empresariado nacional – mais direta a ativamente os grupos que detém o poder da mídia. A política e o direito encontram-se plenamente integrados (o que, aliás, não é novo no Brasil). Os juízes envolvidos na operação do golpe manipulam despudoradamente as regras constitucionais existentes – ou até as mudam se necessário –, em favor dos interesses políticos no poder, os quais eles não só compartilham, mas tem em sua defesa um papel central. São condenados à prisão acusados sem prova concreta (como é o caso de Lula), enquanto são considerados inocentes ou punidos com penas bem mais leves, acusados com base em provas escandalosas…

Sustentados por esta aliança e ocupando a maioria no Congresso Nacional, os capangas do capitalismo financeirizado dão o golpe que expulsa do governo seus líderes mais à esquerda. Usa-se para demonizá-los não só denúncias de corrupção não comprovada (é o caso de Lula), mas também sua suposta responsabilidade pela crise econômica do país, que na verdade é apenas um sintoma local da crise mundial (é o caso de Dilma). Mas o seriado do golpe não se encerra com a condenação de vários líderes do PT e do processo de destruição do imaginário democrático, culminando no episódio do impeachment de Dilma (agosto de 2106).

Segunda temporada

As mudanças constitucionais, como o congelamento de gastos, o desmonte dos direitos trabalhistas e a reforma da previdência fazem parte da segunda temporada do seriado do golpe, em que “o foco será o indispensável desmonte da Constituição. Para prepará-lo micropoliticamente o script se concentrará em tornar bem mais aterrorizador o fantasma da crise econômica, assim como intensificar a desqualificação do imaginário progressista, já parcialmente conquistada na primeira temporada.”

Os efeitos da “destruição do imaginário democrático” e da “desqualificação do imaginário progressista”, apontadas por Rolnik, são evidentes entre aqueles que hoje não se incomodam em defender a democracia, que julgam que todos os políticos são, sem exceção, “farinha do mesmo saco” e que flertam com candidatos autoritários. Há nesse grupo até ditos “ex-petistas” ou “ex-progressistas”.

Reforçar o temor de um colapso econômico, bem como denunciar políticos e empresários coadjuvantes no golpe, fazem parte da segunda temporada. Continua Rolnik:

Paralelamente, ainda nesta segunda temporada, enquanto se introduz na narrativa oficial as denúncias de corrupção contra os políticos capangas, o mesmo se faz com o empresariado nacional, incluindo os altos executivos. Poupa-se nesta operação os bancos, parcela do empresariado ligada ao capital financeirizado e que inclusive, neste mesmo momento, tem perdoada parcela significativa de suas dívidas com o governo. Visa-se sobretudo as grandes empreiteiras … A permanência em cena desta parcela do empresariado apenas interessa aos líderes do capitalismo globalitário enquanto precisem de sua cumplicidade não só para a destruição do imaginário de esquerda – e da defesa das leis democráticas que este sustenta –, mas também para trazer dados que, selecionados, respaldem e reforcem a ideia de que estamos diante de um eminente colapso econômico.

O “verdadeiro show de psicopatia” nas telas de TV, segundo Rolnik, trazem dados da realidade cuja “função é preparar o terreno para o golpe, eles têm o poder de gerar graves efeitos micropolíticos nas subjetividades: a propagação da insegurança e do medo de colapso.” Diferentemente dos anos 1950 e 1960 quando se propagandeava a ameça comunista: “elege-se a corrupção como foco para a demonização das esquerdas na narrativa a ser construída e midiatizada”.

Complementa Rolnik que “no caso específico de Lula, associá-lo à corrupção visa destruir igualmente a imagem de que sua origem de classe garantiria sua cumplicidade com as causas sociais. A ideia de que são todos ‘farinha do mesmo saco’ faz com que à insegurança e ao medo, acrescente-se a decepção, gerando uma espécie de apatia por exaustão”.

Terceira temporada

O encerramento da segunda temporada do golpe se dá com o acirramento das estratégias macropolíticas e micropolíticas. Diz Rolnik que:

… enquanto intensifica-se a operação macropolítica de desmonte da constituição e da economia nacional, intensifica-se igualmente a operação micropolítica de produção de subjetividades entregues à cafetinagem do desejo. Com esta dupla operação indissociável, prepara-se a sociedade para a terceira e última temporada: a tomada do poder político e econômico pelo capitalismo globalitário. Ela estará enfim pronta para recebê-lo de braços abertos como o salvador “civilizado” que saneará a economia de sua falência e reestabelecerá a dignidade da vida pública, devolvendo ao país seu prestígio perdido e a serenidade a seus cidadãos. Fim do seriado. Golpe concluído.

Algo não saiu como o esperado

A primeira temporada foi amplamente bem-sucedida ao disseminar a ideia de que não houve um golpe no Brasil. O retrocesso, porém, nos direitos sociais e a criminalização de produções artísticas e da política como um todo não convenceram tanta gente. Rolnik acrescenta:

Cada vez mais gente, em mais setores sociais e regiões do país, passa a se dar conta do sério risco que o poder globalitário do capitalismo traz não só para a continuidade da vida da espécie humana, mas do planeta como um todo. O sinal de alerta faz com que tenda a cair o véu de sua ilusão, tecido pelo abuso. Instaura-se nas subjetividades um estado de urgência que as faz batalhar para abrir o acesso à experiência subjetiva de nossa condição de viventes e retomar em suas mãos as rédeas da pulsão. Isto leva o desejo a deslocar-se de sua entrega ao abuso e a agir no sentido de transfigurar o presente, impedindo que a carnificina prossiga.

Uma nova modalidade de resistência

Rolnik aponta o surgimento de resistência que incide também na esfera microplítica:

O fato de que, em sua nova dobra, fique mais escancarado que o capitalismo incide na esfera micropolítica dá origem a uma nova modalidade de resistência: surge a consciência de que a resistência tem que incidir igualmente nesta esfera. Isto aparece nos novos tipos de movimento social que vêm desestabilizando aqui e acolá o poder mundial do capitalismo financeirizado na determinação dos modos de existência que lhe são necessários. A propagação deste tipo de resistência, que se intensificou após o tsunami dos ditos golpes de Estado provocados pelo novo regime por toda parte, tem surgido principalmente entre as gerações mais jovens e, mais contundentemente, nas periferias dos grandes centros urbanos.

E exemplifica:

Nestes contextos, destacam-se especialmente os citados movimentos das mulheres (numa nova dobra do feminismo), dos LGBTQI (numa nova dobra das lutas no campo da homossexualidade, transexualidade, etc, na qual estas se juntam em torno de alguns objetivos e refinam suas estratégias) e, também, dos negros (numa nova dobra de suas lutas anti-raciais). A estes movimentos somam-se as lutas por moradia e o combate dos indígenas, cada vez mais amplo e articulado – em ambos, uma forte atuação na esfera micropolítica agrega-se à sua tradicional atuação na macropolítica. Neste novo campo de batalha, cada um destes movimentos ganha novas forças.

Ela aponta dois véus que encobrem nossa pulsão:

O primeiro véu-equívoco é o de que um dia a vida se estabilizará definitivamente (seja – e não por acaso – após a morte ou seja nesta existência, com os substitutos do par paraíso-inferno propostos na modernidade). Um véu que encobre suas inevitáveis turbulências face à quais atuaria sua (em nós) vontade de perseveração. O segundo véu-equívoco é de que só terão o privilégio deste suposto destino da vida aqueles que entregarem as rédeas da pulsão a Deus (ou seus substitutos na modernidade), os quais para merecê-lo terão que submeter-se às ordens da Igreja (ou de seus substitutos na modernidade).

Conclui Suely Rolnik:

Não há mais tempo a perder com nossa nefasta submissão a tais ideias, próprias da redução do pensamento à esfera macropolítica. Impõe-se a nós a exigência de nos livrarmos deste reducionismo na condução de nossas estratégias de resistência, expandindo-as de modo a englobarem a esfera micropolítica. Esta é a condição para ativarmos a imaginação criadora a fim de que oriente o desejo na direção de ações efetivamente transfiguradoras.

Nota:
Todas as citações desse texto foram extraídas de A nova modalidade de golpe de Estado: um seriado em três temporadas, da psicanalista, professora universitária, ensaísta e tradutora Suely Rolnik. O ensaio completo, que recomendo enfaticamente, está em https://outraspalavras.net/brasil/666381/

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1 Comment

1 Comments

  1. Ronaldo

    13/04/18 at 0:57

    Eu ,um simples leitor, acho que isso é apenas uma sinopse do que está acontecendo no Brasil e não uma realidade pois são apenas acontecimentos nada prova que é um plano arquitetado.Minha opiniao.

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Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

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Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

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#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

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Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

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Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

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Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

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