A corrupção do desejo

Detalhe da pintura de George Grosz em que o Sol é eclipsado por um cifrão

A leitura do ensaio A nova modalidade de golpe de Estado: um seriado em três temporadas, da psicanalista, professora universitária, ensaísta e tradutora Suely Rolnik, me impeliu a organizar as ideias que seguem de modo a ressaltar i. que o golpe não é exclusividade do Brasil, ii. que o capitalismo financeiro neoliberal obtém apoio a seus golpes pela corrupção do desejo e iii. que do mesmo modo que o capitalismo nos captura na esfera micropolítica, temos que aprimorar nossos instrumentos de resistência para incidir na mesma esfera.

Como água que busca incessantemente escoar para lugares mais baixos, o capital financeiro, dono do poder central no mundo de hoje, busca oportunidades de lucro em todos os cantos do globo. O Brasil aparece com destaque no radar com muitas oportunidades de fartos ganhos para o capital financeiro internacional e seus parceiros locais.

Imaginemos as vantagens que serão repassadas aos donos do capital se reduzirmos ou acabarmos com o Sistema Único de Saúde, com as escolas e as universidades públicas, com a previdência pública. Imaginemos, ainda, os lucros potenciais daqueles que comprarem o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, a Petrobras ou a Eletrobras. Imaginemos as possibilidades, para empresas estrangeiras, se elas puderem entrar na disputa por obras do governo, se puderem disputar livremente um mercado de 209 milhões de pessoas, consumidoras por um lado e força de trabalho com baixos salários e poucos direitos por outro. Imaginemos as possibilidades de ganho pela posse ilimitada de nossas terras, de nossas florestas, de nosso subsolo, de nossas águas.

Os governos Collor e FHC aderiram plenamente ao regime capitalista financeiro neoliberal ao escancarar o país com as privatizações, com a desregulamentação para fluxos de capitais financeiros e de investimento, com a abertura para importação e redução drástica de impostos sobre produtos importados. No entanto, nosso país teve sua completa conversão ao modelo neoliberal, dominante no mundo desde o último quarto do século XX, bloqueada pelos governos de Lula e Dilma.

Como realizar e embolsar esse imenso lucro potencial com os negócios no Brasil?

Suely Rolnik nos ensina que, para atingir seu fim último, o capitalismo contemporâneo mundial precisa “eliminar todo e qualquer tipo de estorvo que interrompa ou diminua a velocidade da circulação de capitais, de informação e de subjetividades por vários lugares e funções. Os obstáculos podem ser encontrados em qualquer rota do capital e são de ordens variadas e variáveis – pessoas, grupos, instituições, serviços, postos de trabalho, fronteiras, países, leis, imaginários, hábitos, modos de existência, etc.”

“O Estado de direito e o regime democrático estão entre os principais obstáculos macropolíticos ao capitalismo financeirizado globalitário”, aponta ela e adverte que o seriado se passa no Brasil, porém, com pequenas adaptações, é semelhante à versão paraguaia, espanhola, polonesa, austríaca, húngara ou russa: “Com variações de nuances para adaptar-se aos diferentes contextos, a estratégia do novo tipo de golpe de Estado tende a ser a mesma.”

Primeira temporada

Por toda parte é evidente que o poder repousa nas mãos do capitalismo financeiro neoliberal e, simultaneamente, verifica-se a tomada do poder por forças conservadoras. Suely Rolnik mostra como isso se deu no Brasil:

Na primeira temporada (que no Brasil tem início em 2005 com o ‘Mensalão’), se estabelece uma aliança entre, de um lado, os poderes Legislativo, Judiciário e Policial e, de outro, o empresariado nacional – mais direta a ativamente os grupos que detém o poder da mídia. A política e o direito encontram-se plenamente integrados (o que, aliás, não é novo no Brasil). Os juízes envolvidos na operação do golpe manipulam despudoradamente as regras constitucionais existentes – ou até as mudam se necessário –, em favor dos interesses políticos no poder, os quais eles não só compartilham, mas tem em sua defesa um papel central. São condenados à prisão acusados sem prova concreta (como é o caso de Lula), enquanto são considerados inocentes ou punidos com penas bem mais leves, acusados com base em provas escandalosas…

Sustentados por esta aliança e ocupando a maioria no Congresso Nacional, os capangas do capitalismo financeirizado dão o golpe que expulsa do governo seus líderes mais à esquerda. Usa-se para demonizá-los não só denúncias de corrupção não comprovada (é o caso de Lula), mas também sua suposta responsabilidade pela crise econômica do país, que na verdade é apenas um sintoma local da crise mundial (é o caso de Dilma). Mas o seriado do golpe não se encerra com a condenação de vários líderes do PT e do processo de destruição do imaginário democrático, culminando no episódio do impeachment de Dilma (agosto de 2106).

Segunda temporada

As mudanças constitucionais, como o congelamento de gastos, o desmonte dos direitos trabalhistas e a reforma da previdência fazem parte da segunda temporada do seriado do golpe, em que “o foco será o indispensável desmonte da Constituição. Para prepará-lo micropoliticamente o script se concentrará em tornar bem mais aterrorizador o fantasma da crise econômica, assim como intensificar a desqualificação do imaginário progressista, já parcialmente conquistada na primeira temporada.”

Os efeitos da “destruição do imaginário democrático” e da “desqualificação do imaginário progressista”, apontadas por Rolnik, são evidentes entre aqueles que hoje não se incomodam em defender a democracia, que julgam que todos os políticos são, sem exceção, “farinha do mesmo saco” e que flertam com candidatos autoritários. Há nesse grupo até ditos “ex-petistas” ou “ex-progressistas”.

Reforçar o temor de um colapso econômico, bem como denunciar políticos e empresários coadjuvantes no golpe, fazem parte da segunda temporada. Continua Rolnik:

Paralelamente, ainda nesta segunda temporada, enquanto se introduz na narrativa oficial as denúncias de corrupção contra os políticos capangas, o mesmo se faz com o empresariado nacional, incluindo os altos executivos. Poupa-se nesta operação os bancos, parcela do empresariado ligada ao capital financeirizado e que inclusive, neste mesmo momento, tem perdoada parcela significativa de suas dívidas com o governo. Visa-se sobretudo as grandes empreiteiras … A permanência em cena desta parcela do empresariado apenas interessa aos líderes do capitalismo globalitário enquanto precisem de sua cumplicidade não só para a destruição do imaginário de esquerda – e da defesa das leis democráticas que este sustenta –, mas também para trazer dados que, selecionados, respaldem e reforcem a ideia de que estamos diante de um eminente colapso econômico.

O “verdadeiro show de psicopatia” nas telas de TV, segundo Rolnik, trazem dados da realidade cuja “função é preparar o terreno para o golpe, eles têm o poder de gerar graves efeitos micropolíticos nas subjetividades: a propagação da insegurança e do medo de colapso.” Diferentemente dos anos 1950 e 1960 quando se propagandeava a ameça comunista: “elege-se a corrupção como foco para a demonização das esquerdas na narrativa a ser construída e midiatizada”.

Complementa Rolnik que “no caso específico de Lula, associá-lo à corrupção visa destruir igualmente a imagem de que sua origem de classe garantiria sua cumplicidade com as causas sociais. A ideia de que são todos ‘farinha do mesmo saco’ faz com que à insegurança e ao medo, acrescente-se a decepção, gerando uma espécie de apatia por exaustão”.

Terceira temporada

O encerramento da segunda temporada do golpe se dá com o acirramento das estratégias macropolíticas e micropolíticas. Diz Rolnik que:

… enquanto intensifica-se a operação macropolítica de desmonte da constituição e da economia nacional, intensifica-se igualmente a operação micropolítica de produção de subjetividades entregues à cafetinagem do desejo. Com esta dupla operação indissociável, prepara-se a sociedade para a terceira e última temporada: a tomada do poder político e econômico pelo capitalismo globalitário. Ela estará enfim pronta para recebê-lo de braços abertos como o salvador “civilizado” que saneará a economia de sua falência e reestabelecerá a dignidade da vida pública, devolvendo ao país seu prestígio perdido e a serenidade a seus cidadãos. Fim do seriado. Golpe concluído.

Algo não saiu como o esperado

A primeira temporada foi amplamente bem-sucedida ao disseminar a ideia de que não houve um golpe no Brasil. O retrocesso, porém, nos direitos sociais e a criminalização de produções artísticas e da política como um todo não convenceram tanta gente. Rolnik acrescenta:

Cada vez mais gente, em mais setores sociais e regiões do país, passa a se dar conta do sério risco que o poder globalitário do capitalismo traz não só para a continuidade da vida da espécie humana, mas do planeta como um todo. O sinal de alerta faz com que tenda a cair o véu de sua ilusão, tecido pelo abuso. Instaura-se nas subjetividades um estado de urgência que as faz batalhar para abrir o acesso à experiência subjetiva de nossa condição de viventes e retomar em suas mãos as rédeas da pulsão. Isto leva o desejo a deslocar-se de sua entrega ao abuso e a agir no sentido de transfigurar o presente, impedindo que a carnificina prossiga.

Uma nova modalidade de resistência

Rolnik aponta o surgimento de resistência que incide também na esfera microplítica:

O fato de que, em sua nova dobra, fique mais escancarado que o capitalismo incide na esfera micropolítica dá origem a uma nova modalidade de resistência: surge a consciência de que a resistência tem que incidir igualmente nesta esfera. Isto aparece nos novos tipos de movimento social que vêm desestabilizando aqui e acolá o poder mundial do capitalismo financeirizado na determinação dos modos de existência que lhe são necessários. A propagação deste tipo de resistência, que se intensificou após o tsunami dos ditos golpes de Estado provocados pelo novo regime por toda parte, tem surgido principalmente entre as gerações mais jovens e, mais contundentemente, nas periferias dos grandes centros urbanos.

E exemplifica:

Nestes contextos, destacam-se especialmente os citados movimentos das mulheres (numa nova dobra do feminismo), dos LGBTQI (numa nova dobra das lutas no campo da homossexualidade, transexualidade, etc, na qual estas se juntam em torno de alguns objetivos e refinam suas estratégias) e, também, dos negros (numa nova dobra de suas lutas anti-raciais). A estes movimentos somam-se as lutas por moradia e o combate dos indígenas, cada vez mais amplo e articulado – em ambos, uma forte atuação na esfera micropolítica agrega-se à sua tradicional atuação na macropolítica. Neste novo campo de batalha, cada um destes movimentos ganha novas forças.

Ela aponta dois véus que encobrem nossa pulsão:

O primeiro véu-equívoco é o de que um dia a vida se estabilizará definitivamente (seja – e não por acaso – após a morte ou seja nesta existência, com os substitutos do par paraíso-inferno propostos na modernidade). Um véu que encobre suas inevitáveis turbulências face à quais atuaria sua (em nós) vontade de perseveração. O segundo véu-equívoco é de que só terão o privilégio deste suposto destino da vida aqueles que entregarem as rédeas da pulsão a Deus (ou seus substitutos na modernidade), os quais para merecê-lo terão que submeter-se às ordens da Igreja (ou de seus substitutos na modernidade).

Conclui Suely Rolnik:

Não há mais tempo a perder com nossa nefasta submissão a tais ideias, próprias da redução do pensamento à esfera macropolítica. Impõe-se a nós a exigência de nos livrarmos deste reducionismo na condução de nossas estratégias de resistência, expandindo-as de modo a englobarem a esfera micropolítica. Esta é a condição para ativarmos a imaginação criadora a fim de que oriente o desejo na direção de ações efetivamente transfiguradoras.

Nota:
Todas as citações desse texto foram extraídas de A nova modalidade de golpe de Estado: um seriado em três temporadas, da psicanalista, professora universitária, ensaísta e tradutora Suely Rolnik. O ensaio completo, que recomendo enfaticamente, está em https://outraspalavras.net/brasil/666381/

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Eu ,um simples leitor, acho que isso é apenas uma sinopse do que está acontecendo no Brasil e não uma realidade pois são apenas acontecimentos nada prova que é um plano arquitetado.Minha opiniao.

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