Madeireiros são como ratos. Saem debaixo da terra, sob as raízes das árvores, das poças e barreiros das antas. Carrapatos nas matas, vão invadindo e abrindo caminho nas terras virgens que a todos brasileiros pertencem, violam córregos, queimam caminhos antigos de índios, expulsam a bicharada toda da mata. Vem grileiro, vem garimpeiro, vem fazendeiro, vem o boi, vem a soja.
Vem a peste. Tudo vira domínio dos desertos que silenciam em nós a gana do Ocidente. Cultivamos genocídios.Qual é o processo político do desflorestamento? Minha alma vagueia doida, tal Édipo condena a lascívia. É a alma que pena na queima do mato.
Edna Castro, professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do Pará, e pesquisadora do CNPq, esclarece que “o vazio demográfico e recursos inesgotáveis são mitos presentes no imaginário das elites políticas, militares e de segmentos médios da sociedade brasileira em pleno século XXI, que persistem apesar dos dados relativos às taxas de desmatamento, fornecidos, em tempo real, por instituições de pesquisa.
Diz ela que a interpretação dos princípios de racionalidade econômica, conjugada à análise das estratégias de caráter político dos agentes econômicos presentes em espaços diferenciados da Amazônia, são importantes para compreender a dinâmica do desmatamento. Na perspectiva adotada, é necessário levar em conta quatro pontos fundamentais:
– não há uma causa do desmatamento, pois se trata de causas múltiplas que dizem respeito à diferença de racionalidade de atores e de suas estratégias.
– essa alteração espacial está organicamente relacionada à estrutura social do País, desigual em renda e oportunidades, e à capacidade de acumulação dada pelas condições da fronteira.
– há uma relação entre essas causas e a modalidade de inserção da Amazônia e do País na economia mundial globalizada.
-finalmente, o quarto ponto diz respeito aos arranjos políticos e à disponibilidade de recursos naturais no território.
No entanto, embora todos os atores contribuam para o desmatamento, a pecuária é a atividade responsável, por excelência, pela maior parte do desflorestamento, em função das crescentes extensões de terra por ela ocupadas, da padronização do uso do solo e da decorrente concentração fundiária. Porém, a chave para o entendimento do papel da pecuária no desmatamento está na percepção do conjunto de atividades a que ela está relacionada . A maior parte dos autores não se detém na explicação de que a capitalização de terras e de rendas pela pecuária é resultado de uma equação combinatória de atividades. Entram como fatores complementares, a exploração de madeireira, garimpos, outras formas de extrativismo, comércio e agricultura. Mas o fator determinante na capacidade de capitalização da pecuária tem sido a grilagem de terras. Por isso, para compreender a dinâmica do desflorestamento, é preciso examinar as ações e estratégias dos diversos atores presentes em dada fronteira de recursos. Só assim é possível explicar por que a pecuária foi reconhecida como a atividade mais rentável e segura do ponto de vista econômico, o que acabou por justificar e obscurecer os custos sociais e ambientais.
A visão que as elites brasileiras tinham da região amazônica, nos anos 1950 e 1960, harmonizava-se com o projeto nacional de desenvolvimento, projeto que se fortaleceu nos governos posteriores. Das políticas formuladas com base nessa visão, duas materializar-se-iam em grandes obras que definiriam, a partir daí, e de forma irreversível, o futuro dessa região e de sua integração à economia nacional: a construção de Brasília e a abertura da rodovia Belém-Brasília. Essas obras constituem um marco, pois, a partir daí, a política que nortearia o avanço da fronteira econômica na Amazônia permitiu, de um lado, a incorporação de novos territórios à economia e à sociedade e, de outro, o aprofundamento da integração ao mercado nacional e às estruturas produtivas de acumulação do capital globalizado. A Amazônia brasileira foi concebida, pelas elites nacionais, como uma fronteira de recursos, na qual o capital poderia refazer seu ciclo de acumulação com base nos novos estoques disponíveis.
Os planejadores do aparelho estatal e os economistas do desenvolvimento interessavam-se pela região menos pelo desejo de desvendar suas peculiaridades e mais pela vontade de que o Estado interviesse em um espaço que poderia ser mudado. E por ser móvel, a fronteira refaz-se. Nesse movimento, atores sociais e processos econômicos hoje estão integralmente ligados ao restante do país, através de inúmeras redes de interdependência.“
As décadas passam, passaram-se os séculos, e não estamos em paz com a Amazônia nem com os povos tradicionais. Tudo ameaça a todos e o deserto em nós avança, corrói. Hoje, terça-feira de janeiro, já estão entre os Uru-eu-wau-wau, Awa Guajá e os Arara, os grileiros. Serão tantos os invadidos e seus domínios. Dói minha cabeça, arranco meus olhos.
Algo azeda no reino os planos do golpe. Por que são as florestas e os indígenas os primeiros a serem expurgados?
*Edna Castro – Professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do Pará, e pesquisadora do CNPq.
Após feridos e mortos, e em dia de eleição do presidente americano, estamos próximos ao final do ano de 2020. Adquiri novos livros, reviro outros antigos, sei que de tudo fica um pouco, tudo vira história.
Na pandemia encontrei desenhos belíssimos de Noemia Mourão, artista plástica e esposa de Di Cavalcanti. Mistura-se, enlaça papéis, pensamentos atuais sobre desenhos antigos.
Recorte no texto de Ailton Krenak e desenho de Noemia Mourão*
“Outro dia fiz um comentário público de que a ideia de sustentabilidade era uma vaidade pessoal, e isso irritou muitas pessoas. Disseram que eu estava fazendo uma afirmação que desorganiza uma série de iniciativas que tinham como propósito educar as pessoas sobre o gasto excessivo de tudo. Eu concordo que precisamos nos educar sobre isso, mas não é inventando o mito da sustentabilidade que nós vamos avançar. Vamos apenas enganar, mais uma vez, quando quando inventamos as religiões. Tem gente que se sente muito confortável se contorcendo no ioga, ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia, achando que com isso está se elevando. Na verdade, isso é só uma fricção com a paisagem, não tira ninguém do ponto morto.
Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma compreensão sobre a vida na Terra. Se você ainda vive a cultura de um povo que não perdeu a memória de fazer parte da natureza, você é herdeiro disso, não precisa resgatá-la, mas se você passou por essa experiência urbana intensa, de virar um consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de volta deve ser muito maior. Por isso acho que seria irresponsável ficar dizendo para as pessoas que, se nós economizarmos água, ou só comermos orgânico e andarmos de bicicleta, vamos diminuir a velocidade com que estamos comendo o mundo – isso é uma mentira bem embalada.
A própria ideia de certificação, dos teste que são feitos com materiais que consumimos, desde a embalagem até o conteúdo, deveria ser posta em questão antes de a gente abrir a boca para dizer que existe qualquer coisa sustentável neste mundo de mercadoria e consumo. Estamos transformando oceanos em depósitos de lixo impossíveis de tratar, mas vocês, certamente, vão escutar um bioquímico ou um engenheiro espertalhão dizendo que tem uma startup que que vai jogar um negócio na água, derreter o plástico e resolver tudo. Essa pilantragem orienta, inclusive, a escolha de jovens que vão fazer especialização na Alemanha, na Inglaterra, ou em qualquer lugar,e voltam ainda mais convencidos do erro. Voltam, assim, transbordantes de competência para persuadir os outros de que comer o mundo é uma ótima ideia.
Enquanto as bases materiais da nossa vida cotidiana estão funcionando, operantes, a gente não se pergunta de onde vem as coisas que consumimos. Na maioria de tempo, as pessoas mal respiram ou têm consciência do que põem na boca para comer. Apenas quando há um desastre, os indivíduos, desplugados das fontes de suprimentos, começam a sofrer e a se questionar. Quem sobrevive a uma grande catástrofe costuma pensar em mudar de vida porque teve uma breve experiência do que é, de fato, estar vivo. Existem muitos povos vivendo situação de perdas, de catástrofe, de guerra. Ouvir sobre como essas pessoas agem para sair de um trauma profundo, olhar ao redor de si e recomeçar sua jornada nisso que chamamos “seguir vivendo”, pode ser instrutivo, mas não substitui a experiência.
Estou há dois anos vivendo na margem esquerda de um rio junto com outras famílias do meu povo que, do ponto de vista prático, tinham que ter sido removidas daqui, como o que aconteceu com o pessoal de Brumadinho, de Bento Rodrigues e outros lugares. Os Krenak não aceitaram ser retirados, quisemos ficar no local do flagelo. “Ah, mas vocês não tem água!” E daí? “Ah, mas vocês podem morrer aí!” E daí? Sabemos que esse lugar foi profundamente afetado, virou um abismo, mas estamos dentro dele e não vamo sair. É uma questão que incomoda, mas é preciso estar nessa condição para poder produzir uma resposta em plena consciência. Consciência do corpo, da mente, consciência de ser o que se é e escolher ir além da experiência da sobrevivência.”
in A vida não é útil – Companhia das Letras
* Ailton Krenak, líder indígena, pensador, ambientalista e escritor,66 anos, escolhido intelectual do ano, ganhador do prêmio Juca Pato, premiação realizada pela União Brasileira de Escritores, que reconhece autores que contribuem para o desenvolvimento da democracia brasileira.
*Noemia Mourão(1912/1992), pintora, cenógrafa e desenhista. Estudou e casou-se com Di Cavalcanti.
Cantou o poeta Gilberto Gil, certa feita, que sentir é questão de pele e amor é movimento. Sempre, aqui e agora, estanca-se amor.
coração e pele de uma gente de origem
A pele da terra é sua floresta, sua caatinga ou cerrado, mangue, restinga. Nada disso sabem no ringue, imbecis apostadores. Como tu és ou não, eu já não santo ou saberei. Sei de mim, filho da terra, Terra, como ti.
Querem fazer do boi um ser que combate o fogo. Tadinho do boi, na Índia ser tão respeitado, as vacas da maternidade, tolerância, mansidão, sustento do humano.
Aqui, profana vaca muge heresias. Novos ventos, leitos banais na ocupação de nossa equação? Estranha aritmética no fogo da razão.
Crianças Kawaiweté, em feliz pedagógica canoa e exercício de equilíbrio, prumo e rumo.
Resta-nos apenas a terceira margem do rio, penso como Guimarães Rosa, mandar fazer uma canoa. Aprendi que coisa séria em canoa é o remo, seu rumo.
Sem fim seguem absurdas afirmações da função dos animais. Atribuem qualidades ao gado de corte. De fato é o boi nosso churrasco, mas fogo não é seu apreço.
Preço da carne são outros 500. Índio pensa no desequilíbrio da água e seu brilho.
À margem do Xingu, na pesca diária da vida e educação indígena.
Fico pensando na paz, ausência de excitação, estado de calma. Não o Buda e seu prêmio de afastamento do mal e a eliminação dos demônios, mas o largar as armas, entender a palavra. É prêmio da paz a serenidade? Creio que sim, tal lavar a roupa da noite à beira de rio, tão puro, na alvorada de cada dia.
Alvorada entre os povos tradicionais e seus asseios e gratidão, ciência de quem sabe.
Quando nasci havia um pedido de paz, recordo bem nas igrejas da época. Vivi dia assim de paz apenas entre indígenas, homens fortes de luta, luto e senha. Há uma paz entre grandes guerreiros, por mais que ameacem. Descobrimos quando velhos que as armas apenas entristecem, vingam, atiçam a sanha.
Ropni, o cacique Raoni, o mestre das palavras e seus calibres no alvo de nosso peito, representa 5 séculos do brado dos povos nativos daqui, de um planeta Terra. Raoni sempre disse aos kuben, nós mesmos, os homens brancos, que os espíritos lhe dizem sobre a destruição das florestas e suas consequências.
A paz do cacique é a saúde da Terra. Sempre voltamos ao começo na esperança da paz.