Por: Márcio Anastácio para os Jornalistas Livres
A Câmara de Municipal do Rio de Janeiro lançou relatório, em 4 de dezembro, onde tenta abrir a “caixa preta” do Carnaval carioca. Pesquisadores, realizadores culturais e jornalistas participaram da construção de um documento com 62 páginas que denuncia o monopólio de espaços públicos por empresas, trata sobre a segurança da festa e faz recomendações ao prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PR).
O relatório é fruto da comissão especial instituída na Câmara dos Vereadores em 23 de março de 2017, para analisar a relação e as responsabilidades do poder público municipal com o carnaval. A comissão é composta pelos vereadores Tarcísio Motta (PSOL), presidente, Fernando William (PDT), relator, Marcelo Siciliano (PHS), membro.
Introduzindo o relatório, o pesquisador Luiz Antônio Simas, vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura em 2016 com a obra “Dicionário da História Social do Samba”, faz um mergulho na história social do Carnaval carioca. Confira o artigo “A cidade disputada na folia”:
Ao longo da História do Rio de Janeiro, a sobrevivência potente da rua como espaço de sociabilidades deparou-se com pelo menos três instâncias que tentaram domar e esvaziar as culturas das ruas cariocas.
Elas hoje estão mais vivas que nunca: 1. A repressiva, representada pelo poder público e seu aparelho de segurança pública. 2. A moral, representada pelo imaginário da festa como espaço alienante e da depravação dos costumes; 3. A financeira, representada por instâncias (grandes empresas, mídia, indústria do turismo, contravenção, etc.) que encaram a festa como um espaço legitimado pela circulação de capitais, difusão de padrões de consumo, propaganda de marcas e similares.
Objetivamente há nos dias atuais uma disputa sobre o “negócio do carnaval” – envolvendo cifras, subvenções, rentabilidades, acordos com a indústria do turismo e que tais – no imbróglio entre a prefeitura do Rio de Janeiro, as escolas de samba e o carnaval de rua. Isso é claro, deve ser dimensionado, mas me parece insuficiente. Há uma disputa no campo das subjetividades sobre a cidade que não pode passar despercebida. Boa parte da vitalidade da cultura do Rio de Janeiro veio da rua.
Entre pernadas, batuques, improvisos, corpos dançando na síncope, gols marcados na várzea, 8 gudes carambolando e pipas cortando os céus, a tessitura da cidade foi se desenhando nas artes de inventar na precariedade. Foi assim que certo carioca – sobretudo aquele que é filho da diáspora – zuelou tambor, jogou capoeira, fez a sua fé no bicho, botou a escola na avenida, a cadeira na calçada, o despacho na esquina, a oferenda na mata, a bola na rede e o mel na cachoeira.
É o complexo de saberes e sociabilidades da rua que me parece estar também em jogo no debate sobre o carnaval; a mais politizada das festas brasileiras. A festa é espaço de subversão de cidadanias negadas. Inventou-se na rua a aldeia roubada nos gabinetes. Disciplinar a rua, ordenar o bloco, domesticar os corpos e enquadrar a festa, por sua vez, foi a estratégia dos senhores do poder na maior parte do tempo.
Do embate entre a tensão criadora e as intenções castradoras, a cidade é um território em disputa que pulsa na flagrante oposição entre um conceito civilizatório elaborado exclusivamente a partir do cânone ocidental, temperado hoje pela lógica empresarial e evangelizadora, e um caldo vigoroso de cultura das ruas forjado na experiência inventiva de superação da escassez e do desencanto.
É este embate no terreno escorregadio das subjetividades, da elaboração de símbolos e das construções do imaginário, que está anunciado em um campo cognitivo feito de entrelinhas, rumores, silêncios, estratégias de controle dos corpos e discursos indiretos. A nossa dificuldade de perceber isso – e o que pode representar para a cidade em médio prazo – é assustadora.
O ataque ao Carnaval faz parte deste processo e é seu marco simbólico. Tirar de uma escola de samba seu potencial disparador de pluralidades culturais é estratégico para o processo de domesticação dos corpos e mentes cariocas. A ideia – é o que especulo – não é acabar com as escolas de samba. É terminar a obra do enquadramento das agremiações (e apenas as do grupo especial; as outras tendem ao desaparecimento) à condição de empresas turísticas de entretenimento ligeiro, destituídas de suas referências fundamentais como instituições de ponta da cultura popular.
É o mesmo recorte disciplinador, higienizador e aniquilador que pretende, simplesmente, liquidar as pulsões festeiras e potencialmente subversivas da rua; seja pela repressão, seja pelo enquadramento como negócio.
O velho embate colonial pelo controle dos corpos – fundamentado na ideia do corpo em pecado que só pode encontrar a redenção na evangelização, e no corpo festeiro que deve ser disciplinado enquanto ferramenta produtiva do trabalho, inclusive pela própria indústria da festa e aproveitado por ela – continua firme e mais evidente. O carnaval, em síntese, é hoje o campo em que ele está sendo travado.
*Esta reportagem faz parte da série especial “Carnaval Carioca Sob Ataque” baseado no relatório “Carnaval é Direito” da Comissão Especial de Carnaval da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.