ARTIGO
Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes, professor de História na Universidade Federal Fluminense
Em entrevista recente, a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL/RS) declarou, em meio à defesa do impeachment de Jair Bolsonaro, que “quem deve governar o Brasil é a Ciência”. Essa afirmação me provocou enorme desconforto. Pareceu-me a invocação de alguma entidade metafísica, uma potência sobrenatural, uma abstração perigosa que foi feita em nome da política, mas que pode colaborar ainda mais para a despolitização de um debate público já terrivelmente despolitizado.
Sou capaz de compreender a afirmação da deputada. O negacionismo científico se tornou uma praga. Nos últimos anos, com a epidemia do pensamento conservador, algumas ilusões e conspirações absolutamente alucinadas passaram a ser tratadas como verdade. As consequências tem sido desastrosas. O retorno do sarampo, uma doença que há tempos estava erradicada em nosso país, não pode ser dissociado dos discursos anti-vacinação. Muitos desses também acreditam que a Terra seja plana. O aumento dos fundamentalismos religiosos dão alicerce a tudo isso. A Ciência foi alçada a uma forma de discurso que concorre em condição de igualmente com outros tantos discursos possíveis. A própria História é vítima desse embate narrativo: “Nazismo é de esquerda”, “a ditadura militar foi boa para o país”, “em 2016 não houve golpe”. Somos escravos da tirania da opinião.
Os efeitos são terríveis. É imperativo que recuperemos a credibilidade da Ciência. O país – e parte do mundo, é bom que se diga – precisa admitir com urgência que ignorância não é uma benção, mas que o reconhecimento da própria ignorância é uma atitude sábia e prudente. A disseminação da estupidez é que o leva, por exemplo, um presidente da República (que advoga ser especialista em matar!) a prescrever um medicamento que provoca graves efeitos colaterais e que, note-se, ainda não teve tempo de ter seus resultados positivos confirmados. Torço, com Bolsonaro, para que a cloroquina tenha efeitos curativos para o COVID-19, mas não é ele, do fundo de sua burrice, que irá dizê-lo.
Que a Ciência tenha seu lugar reconhecido é urgente, mas é preciso lembrar também seus limites. Não é ela, com letra maiúscula, que pode ou deve governar um país. É bem possível que Fernanda Melchionna tenha feito essa declaração como metáfora para se contrapor à postura anticientífica daqueles que hoje governam, e nisso ela tem razão, mas o efeito de sentido pode ser desastroso, inclusive porque o poder da própria Ciência é limitado pela política. Afinal, foi exatamente a política que nos conduziu a esse cenário patético de desvalorização do pensamento científico. Tenho pleno acordo que não podemos ficar reféns de um presidente que usa a televisão para prescrever remédios, o que poderia ser enquadrado como exercício ilegal da Medicina; tampouco é aceitável que Bolsonaro, para afagar os empresários, sustente o fim do distanciamento social em meio a uma pandemia, sobretudo porque não ainda não dispomos de vacinas para imunizar a população.
Acontece que a fronteira entre Política e Ciência não é exatamente simples, inclusive porque a Ciência é, também, governada pela política. Não fosse assim, teria força e recurso para evitar a descrença que se alastrou em relação a seus próprios méritos. A recente pandemia não expõe apenas um vírus com genoma, sintomas e formas de contágio específicos, mas a necessidade imperativa de pensar soluções para uma sociedade que se tornou refém de um organismo microscópico não apenas porque ignorou as melhores recomendações técnicas quando do início de sua proliferação, mas também porque se estruturou com base em vergonhosa concentração de riqueza que impede, na prática, um breve período de isolamento social como forma de resguardar a própria vida. Portanto, calma lá com a Ciência! Tenho minhas ressalvas em relação à filósofa alemã Hannah Arendt, mas reconheço que ela foi extremamente feliz quando, nessa mesma discussão entre ciência e política, foi levada a perceber que os cientistas que produziram a bomba atômica foram os últimos a ser consultados quanto ao seu emprego.