Conecte-se conosco

Cinema

Bacurau: Distopia-manifesto de um Brasil que resiste

Publicadoo

em

 

Por Valéria Regina Dallegrave*

Bacurau é impressionante pela coragem de levar às raias de fato, a violência muitas vezes simbólica contra nordestinos e brasileiros, no cenário nacional e internacional. Considerando a intenção das distopias de ficção científica como de nos alertar sobre futuros possíveis, que podem ser evitados, o filme torna-se muito importante no panorama atual de desvalorização da nossa cultura, em que há, da parte de alguns, completa subserviência aos Estados Unidos, com o representante (ilegítimo) do país imbuído do mais abjeto vira-latismo.

O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, dois pernambucanos, ousa. Mas não é de hoje que Kleber Mendonça faz isso. O Som ao Redor foi mais sutil quanto à violência, mas já apresentava um gostinho de Bacurau ao mostrar a tensão contínua presente na sociedade, na expectativa da violência. O diretor também não se omitiu, na estréia de Aquarius em Cannes, quando participou, junto com a equipe, da denúncia ao golpe em curso no Brasil.

Mas voltando a Bacurau, no início acompanhamos Teresa na viagem de retorno à cidade natal, para o funeral de sua avó, Dona Carmelita, falecida aos 94 anos, respeitada como grande matriarca do lugar. A estrada para chegar lá já traz um acidente, com caixões espalhados pela pista. O motorista, visivelmente tenso, não pára, sequer desvia dos caixões. É evidente que algo está muito errado.

Também é revelado logo que há um “foragido”, com uma recompensa oferecida pela sua cabeça – como em um western -, mas talvez não seja desejável entregá-lo. Precisamos descobrir mais sobre Lunga, e este é um dos pequenos mistérios que são entrelaçados no começo e vão se desvendando no decorrer da trama, assim como a estranha presença de discos voadores no sertão.

Estranho, aliás, é um bom adjetivo para o filme. No interior empoeirado de Pernambuco, a tecnologia está presente no sinal de wi-fi, em telas e sistemas de som que levam o audiovisual a todos cantos, desde o cortejo fúnebre até o carro de apoio ao Prefeito nem um pouco confiável – representante dos políticos canalhas e mal- intencionados (será que lembra algum em especial?). A ficção árida vai até um ponto de violência absurdo, em que as armas tornam-se elementos importantes para uma explícita cultura da violência e a vida humana deixa de ter valor.

Ou, talvez seja melhor dizer, especialmente algumas vidas deixam de ter valor. Nos estudos de jornalismo internacional já é evidente que acidentes de avião envolvendo mortes de europeus ou norte-americanos têm maior destaque do que com africanos ou brasileiros. Então, do ponto de vista internacional, será que a vida de um brasileiro vale o mesmo que a de um estadunidense? A resposta dos locais a isso é resistência, é a mesma dada à pergunta irônica “quem nasce em Bacurau é o quê?” “É gente!”

Estranha é, também, a mala com que Teresa chega, ostensivamente vermelha, conduzida de forma respeitosa e reverente pela coletividade até o interior da casa. Sem dúvida, ela simboliza as “vacinas” que podem salvar algumas vidas…

Aos poucos vamos conhecendo as diversas tensões que se acumulam. Logo depois de topar com os caixões na estrada, descobrimos que a escassez de água chegou ao ponto limite, em verdadeira guerra. Fica fácil entender o que já é muito bem conhecido no nordeste: o problema não é de seca, mas de cerca.

Dos estímulos químicos para suportar tal realidade, dois se colocam em oposição (seriam as pílulas vermelha ou azul de matrix?). Há os remédios tarja preta, que acompanham os mantimentos deixados pelo Prefeito Tony Jr e, segundo a médica (Sônia Braga, em personagem que deve ter sido criada especialmente para ela), são distribuídos no país inteiro. Ela alerta que a medicação deixa as pessoas lesadas (aí está uma boa explicação para o estado de coisas no país). Mas há também uma pílula “psicotrópica”, usada entre os moradores como espécie de hóstia, que parece mesmo uma pílula do mato… 

Entre as diversas referências que podemos encontrar em Bacurau estão westerns, filmes de terror e, entre os cineastas,vale citar Tarantino e talvez Glauber Rocha. Mad Max é facilmente evocado como distopia do futuro árida e violenta. E, por que não, Clube da Luta, com indivíduos que perderam a capacidade de sensibilizar-se no cotidiano e precisam de estímulos mais e mais violentos para sentir prazer…O cangaço está presente como memória e fonte de coragem. A ameaça da cidade ser riscada do mapa – como foi Canudos- exige um reforço especial. Lunga – Silvero Pereira, impressionante no papel -, surge como um Lampião saído dos infernos para lutar ao lado dos habitantes da cidadezinha, e não posso deixar de comentar que sua citação a Che Guevara é, sim, uma homenagem, um tanto sui generis…

A nudez aparece ocasionalmente, com diversas funções. Como forma de demonstrar a objetificação do corpo ou com a naturalidade do despertar de um casal. Ela é, de fato, inerente à brasilidade, com o carnaval a tranformando em valor cultural (no bom e no mau sentido). No filme, o mais interessante é que a apropriação desta nudez pode trazer até a uma releitura da suposta vulnerabilidade associada a ela…

Por fim, é preciso destacar dois momentos em que a cultura aparece como legítima arma contra os invasores: na cantoria irônica do repentista e na importância do museu. Aliás, vocês precisam conhecer o museu de Bacurau!

A única ressalva que julgo necessário fazer, como gaúcha nordestina que sou, residente no Ceará há mais de dez anos, é sobre a forma estereotipada e negativa com que os brasileiros do sul (ou Sudeste?) foram retratados. Se houvesse ao menos outra personagem declaradamente da mesma origem ao lado do povo do vilarejo, para funcionar como contraponto, a caracterização teria sido relativizada. Portanto, ao sair do filme é preciso lembrar que nem todo sulista é subserviente aos EUA , e nem todo nordestino valoriza conscientemente a sua, a nossa cultura.

O filme já ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, de Melhor Filme na principal mostra de cinema de Munique, na Alemanha, e três prêmios importantes no Festival de Cine de Lima, no Peru (Melhor Filme, Melhor Direção e Prêmio da Crítica Internacional). Além disso, está tendo boa audiência nacional, arrecadou 1,5 milhão em bilheteria no final de semana de estréia…

No final, letreiros ressaltam que a cultura, além de ser a identidade de um país, também é uma indústria, e merece respeito, com a informação de que a realização e distribuição do longa gerou mais de 800 empregos diretos e indiretos. A valorização da cultura transborda para fora do filme…

E, para quem leu até aqui, a recomendação é que todos que têm interesse em conhecer uma história de RESISTÊNCIA inspiradora assistam o filme, e logo! Não devemos esperar do desgoverno atual atitudes compatíveis com uma democracia plena. Bacurau não é apenas um filme, mas um manifesto…

Encerro com a linda letra de Réquiem para Matraga, de Geraldo Vandré, uma surpresa na trilha do filme:

“Vim aqui só pra dizer

Ninguém há de me calar

Se alguém tem que morrer,

Que seja pra melhorar.

Tanta vida pra viver,

Tanta vida a se acabar,

Com tanto pra se fazer,

Tanto pra se salvar…

Você que não me entendeu,

Não perde por esperar…”

(*) Escritora e roteirista gaúcha radicada no Ceará

Continue Lendo
1 Comment

1 Comments

  1. marcus

    30/11/19 at 17:21

    esse seu incomodo com as representações regionais é, pra mim, justamente sobre o que o filme se trata. foi pra te incomodar mesmo.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Cinema

Por um Cinema de ocupação

Rua Augusta 1029, documentário curta-metragem registra os momentos iniciais de uma ocupação. Gravada em 2015 no ato Abril Vermelho em que 6 mil famílias ocuparam 18 prédios sem função social na cidade de São Paulo.

Publicadoo

em

Por André Okuma

Em 1968 durante as filmagens de “O Bandido da Luz Vermelha” Sganzerla, diretor do filme, escreveu um manifesto chamado “Cinema-fora-da-lei”, no qual seu trecho final dizia:

O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.”

(Rogério Sganzerla)

Passados mais de meio século depois muita coisa aconteceu, tanto no cinema como na história política do país. Entretanto, o Brasil atual de certa forma, é um eco cacofônico daquele fatídico 1968, não por acaso, a citação acima ainda faz sentido mesmo depois de 52 anos, e com a exceção dos “personagens medrosos”, o documentário de Mirrah Iañez é a incontestável prova da atualidade do manifesto de Sganzerla. “Rua Augusta, 1049” é um cinema-fora-da-lei, instável como nossa sociedade na iminência (e da necessidade) de explodir pra não “sobrar quem estiver de sapato”i.

O filme nos mostra os primeiros momentos de uma ocupação por famílias em um prédio abandonado no centro de São Paulo, lutam contra o tempo enquanto a polícia vai cercando o local. No escuro a câmera tateia o espaço, registra os procedimentos iniciais e atua também como mecanismo de proteção contra as arbitrariedades da polícia, os sons desencontrados nos inserem na tensão do momento, cinema e ativismo se fundem em uma imagem imprecisa e cirurgicamente potente, pois, ao mostrar pouco, revela muito.

Na urgência da luta por moradia, a câmera de Mirrah ocupa politicamente não só este ato, mas o próprio cinema, em crise, em muitos casos vazio e elitizado, a imagem em movimento e sons estabelecem aqui a sua função social, não que o cinema deva necessariamente ter essa função, mas estes tempos exigem, assim como o déficit de moradia diante de tantos prédios abandonados exige a ação e questionamento por parte dos movimentos de luta por moradia.

“Rua Augusta 1049”, portanto, como um cinema de ocupação, se realiza na necessidade, no ato político de questionamento do status quo, na luta por justiça social, na coletividade, na coragem e na ousadia de pensar um novo mundo comprometido com a luta de trabalhadores, antifascista e anticapitalista.

Porém sem ser panfletário, ancorado não no discurso retórico mas na dialética das relações de afeto entre pessoas de luta, que para além de números estatísticos e narrativas espetaculares, mostra um cinema feito por nós, para nós, sem hesitar. Em um dos diálogos do filme:

-O meu olho tá doendo – diz um menino pré-adolescente depois de ter inalado gás de pimenta.

-Isso aí é normal, A nossa luta é isso aí. – diz sua mãe enquanto estende a bandeira da F.L.M.

-Eu sei. – responde o menino ajudando a mãe a amarrar a bandeira.

No último plano do filme, quase despercebido, numa irônica coincidência, uma revista Exame perdida na entrada do prédio cuja capa fala sobre especulação imobiliária é endereçada a Delfim Netto no endereço da ocupação, Rua Augusta 1029. Delfim, é importante lembrar, foi dentre outras coisas ministro da economia durante a ditadura militar (em 1968 enquanto Sganzerla escrevia seu manifesto e participou da criação do AI-5) e é sua a célebre frase “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, uma ironia aguda demais que coroa o acaso e a relevância de um filme feito literalmente na guerrilha em uma sociedade que não divide apartamentos abandonados com quem não tem onde morar numa cidade que cresceu mais do que um bolo superfermentado.

Quem não luta, tá morto!

Sobre o filme:

Rua Augusta, 1029 (2019)

Sinopse: Na madrugada de 13 de Abril de 2015, 6 mil famílias ocuparam 18 prédios sem função social. O Ato, ABRIL VERMELHO, serviu para atentar o governo sobre a falta de vontade política para sanar os problemas de habitação.

Brasil (SP) | 10 min. | Documentário | 14 anos

com: F.LM.
direção e fotografia: M.I.
som: A.T.
montagem: E.L.
cartaz: G.M.E.

O filme pode ser visto no link: https://www.cinefestgatopreto.com.br/ entre os dia 03 e 07 de novembro

i Diálogo do filme “Bandido da Luz Vermelha” (1968)


André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-S

Continue Lendo

Cinema

As caminhadas do curta-metragem

Peripatético, curta-metragem de 2017, é um dos mais emblemáticos filmes para se perceber o novo caminhar do cinema no Brasil. Até o dia 19 de outubro estará disponível para ver gratuitamente em uma Mostra online de Cinema Brasileiro Contemporâneo no site do Itaú Cultural.

Publicadoo

em

Por André Okuma | Jornalistas Livres

O curta-metragem é um formato enxuto em diversos sentidos e sua viabilização não depende fundamentalmente de leis de fomento e patrocínios (ainda que sejam absolutamente importantes), como ocorre com os longas-metragens de maneira geral. O curta em sua essência é um produto audiovisual menos burocrático, em que o realizador possui maior liberdade de experimentação artística e produtiva, não precisando necessariamente de grandes recursos, o que consequentemente propicia ao filme de curta duração a possibilidade de ser um grande laboratório de pesquisa e experimentação de linguagens e poéticas. 

Sem dúvida, este formato, principalmente com o advento do digital, é uma espécie de espaço privilegiado para se perceber o que pode ser o futuro do Cinema, seja no surgimento de novas possibilidades de linguagem, de produção e principalmente de novos cineastas. 

Paralelamente, com o surgimento de oficinas e cursos livres de cinema digital, alguns deles em territórios descentralizados durante a última década, principalmente na cidade de São Paulo, é possível perceber um aumento significativo de cineastas periféricos e com narrativas para além das até então difundidas pelo cinema hegemônico. 

Novos corpos e novas perspectivas periféricas desvelaram-se simultaneamente às lutas identitárias, sejam de pretos, mulheres, indígenas e LGBTQIA+ entre outros. Inevitavelmente a produção audiovisual recente se insere nesta perspectiva, principalmente o curta-metragem, dada a sua acessibilidade.

Sendo assim, ao seguir o caminhar do cinema através dos filmes curta-metragem que vem se destacando nos últimos anos, podemos entender e refletir sobre o cinema, e sobretudo a sociedade contemporânea. 

E agora neste momento de pandemia e desmonte de instituições e políticas públicas audiovisuais em que o cinema tem sido drasticamente afetado, paradoxalmente, graças a uma série de Mostras e Festivais de Cinema realizadas de forma online, é possível ver de casa o que há de melhor do universo dos curtas-metragens enquanto propostas e respiros de outros possíveis cinemas na iminência de um futuro incerto. 

Neste contexto tão atípico, portanto, é possível ver “Peripatético”, curta-metragem de ficção vencedor de diversos prêmios na época de seu lançamento, incluindo o Festival de Brasília em 2018.  “Peripatético” de alguma forma é um exemplo bastante relevante das colocações acima, apresentando um cinema contra hegemônico, dirigido por Jéssica Queiroz, uma mulher preta e periférica, gravado na Zona Leste de São Paulo com personagens diretamente conectados a este lugar de fala. Um olhar desatento poderia deixar passar a relevância e transgressão disto, pois, se antes a periferia era retratada sempre pelo olhar de um diretor homem heteronormativo branco de classe média, aqui se abre uma fresta para um novo ponto de vista, de baixo para cima e de dentro para fora.

O resultado é um filme bastante vigoroso ao retratar temas já bastante abordados nas artes e no cinema em outros momento, como a passagem da adolescência para a vida adulta, o mundo do trabalho, as desigualdades sociais e o racismo. 

Entretanto, Jéssica Queiroz propõe um outro imaginário sobre a periferia, colocando em xeque o clichê da periferia suja, violenta, de tons ora azulados ora pastéis, com faces cheias de dor, sofrimento e melodrama. “Peripatético”, ao contar a história de três jovens amigos moradores da periferia e seus planos e medos para o futuro, apresenta uma periferia pop com uma fotografia iluminada e cheia de cor, com diálogos cheios de referências a animes japoneses, “Ilha das Flores”, banalidades e reflexões existenciais, tudo ritmado por uma edição bastante dinâmica, porém, sem deixar de lado temas como a violência, a desigualdade social e o racismo, o que muda é a maneira como isto é tratado. 

Há uma inventividade lúdica no filme que surpreende a cada cena, desde graffitis animados em diálogo com os pensamentos em voice over da personagem sobre o trabalho, a explicação da meritocracia mostrando nadadores e não nadadores em uma piscina competindo e a cena da abordagem policial violenta encenada por crianças brincando de polícia e ladrão. Jéssica consegue em suas alegorias, mesmo não explicitando a violência e o sofrimento, potencializar imagens carregadas de crítica e afeto que transbordam um “real” que encontra identificação instantânea com quem também vive em regiões periféricas, coisa que filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, por exemplo, não atingem nem de longe. 

“Peripatético” não é o primeiro e nem o único filme que traz estas questões, mas é um dos mais relevantes ao trazer um frescor narrativo em contrafluxo do até então cinema tradicional (branco de classe média) produzido até aqui, sem deixar de ser popular e muito menos de ignorar as questões que atravessam seu contexto. 

Se no filme, no qual jovens entram na fase adulta cheio de incertezas, o cinema brasileiro em crise entra também em uma nova fase. Creio que uma saída possível é caminhar junto com essa nova geração, observando-os e (re) aprendendo com elas e eles, e assim, será possível amadurecermos enquanto cinema e sociedade.

Sobre o filme: 

Peripatético (2017)

Sinopse: Simone, Thiana e Michel são jovens moradores da periferia de São Paulo. Simone procura o primeiro emprego, Thiana tenta passar no vestibular de medicina e Michel ainda não sabe o que fazer. Em meio às demandas do início da fase adulta, um acontecimento histórico em maio de 2006 na cidade de São Paulo muda o rumo de suas vidas para sempre.

Brasil (SP) | 15 min. | Ficção | 12 anos

Direção: Jessica Queiroz

Roteiro: Ananda Radhika Meron

Produção: Bia Medina, Nayana Ferreira

Fotografia: Luiz Augusto Moura

Direção de Arte: Dicezar Leandro

Animação: Ananda Radhika Meron, Renato Pereira Sousa

Montagem: Ana Julia Travia

O filme pode ser visto no link: https://www.itaucultural.org.br/secoes/videos/peripatetico-mostra-projecoes-cinema-brasileiro-contemporaneo-2 disponível até o dia 19/10/2020. Ou neste outro link (SescTv): https://sesctv.org.br/programas-e-series/curtas-juventudes/?mediaId=253f65d33ea37cab831d0650bcee3dff 
Mais informações sobre a mostra em https://www.itaucultural.org.br/mostra-online-apresenta-producoes-cinema-brasileiro


André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-SP

Mais do autor:

https://jornalistaslivres.org/perifericu-no-centro-do-cinema-brasileiro/

Continue Lendo

Cinema

O encantado cinema indígena contemporâneo

Mãtãnãg, a encantada é um curta-metragem de animação produzida pelo povo Maxakali, e vem se destacando no circuitos de festivais de cinema. Ele está online até o dia 15 na Mostra Cine Flecha de cinema indígena contemporâneo.

Publicadoo

em

Por André Okuma | Jornalistas Livres

Ao mesmo tempo em que, neste contexto de pandemia, muitos projetos culturais e artísticos tenham sido paralisados, no circuito audiovisual diversas Mostras e Festivais de Cinema optaram por realizar suas edições de forma online, permitindo que filmes restritos a eventos locais pudessem ser vistos de qualquer parte do mundo. 

Neste cenário atípico, e como nunca antes, é possível assistir muitos curtas-metragens (formato pouco comum em plataformas on demand) inéditos e recentes, que oferecem em geral uma maior ousadia e algum frescor em experimentações de linguagem e técnica, além de visibilizar produções independentes e marginais com outras narrativas além das até então difundidas pelo cinema hegemônico. 

Atualmente, o cinema no Brasil vem também passando por processo de transformação no qual, o cinema negro, feminista, LGBTQIA+ e periférico vem ganhando (a partir de muita luta) cada vez mais espaço, e neste bojo, o cinema indígena contemporâneo. 

Se este cinema de guerrilha, mais identitário e político é ainda uma vertente do cenário audiovisual brasileiro que orbita nas margens do “mainstream”, o cinema indígena está ainda mais à margem, ao mesmo tempo em que, desde o revolucionário projeto “Vídeo nas Aldeias” idealizado pelo indigenista Vincent Carelli lá em 1986, a produção cinematográfica de nossos povos originários cresceu de maneira exponencial, mas ainda que circulado apenas em espaços restritos a filmes etnográficos. 

Imagem: Divulgação/Pajé Filmes

É sob esta perspectiva que está em cartaz a 1ª Mostra Cine Flecha, exibido na plataforma VideoCamp e que está disponível gratuitamente até o dia 15 e outubro. Nela é possível ver 25 filmes brasileiros e 1 boliviano. Dentre eles, a animação “Mãtãnãg, a encantada”.

O curta narra uma história tradicional do povo indígena Maxakali situado no município de Ladainha (MG) que, mesmo tendo contato com os brancos por séculos, tentam preservar sua cultura mantendo sua língua e sua cosmologia, e já há alguns anos, utilizam o cinema como ferramenta para tal. 

Animação no Cinema Indígena

A animação, fruto de uma oficina, foi roteirizada e ilustrada pelos próprios indígenas, a direção é de Shawara Maxakali e Charles Bicalho, este último não é um Maxakali mas é um parceiro deles há décadas, e foi o mediador entre o projeto dos Maxakali e editais de fomento.  

Outra característica importante sobre o curta é que ele é todo falado em Maxakali com legendas em português.  O filme retrata a história da índia Mãtãnãg, que segue o espírito de seu marido, morto por uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos. Nesta jornada eles superam os obstáculos que separam o mundo terreno do mundo dos Yãmiy (dos espíritos).

Entre cantos que evocam essa história e a mistura de desenhos de cada participante, a animação nos faz imergir em um universo onírico e novo, de outra temporalidade, outras noções de narrativa a partir de outras percepções de mundo. 

Em uma negociação entre tradição e modernidade, os Maxakali se conectam com sua cultura, se afirmando e fortalecendo seus laços enquanto povo, corroborando com a afirmação de Krenak em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”:

“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos (…) E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”.

(Ailton Krenak)

Adiando o fim do mundo, os Maxakali mostram uma animação naturalmente decolonial, difícil de descrever de maneira eficiente em palavras “coloniais”. Tem que assistir, assim como os outros filmes que compõem esta mostra imperdível. E ainda parafraseando e citando Krenak, Filmar, “Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial”.

Mais relevante politicamente do que isso, neste momento em que territórios indígenas e tribos estão sendo dizimados enquanto o Brasil arde em chamas, só a destituição deste governo. 

Sobre o filme: 

Mãtãnãg, a Encantada (2019)

Sinopse: Mãtãnãg, a Encantada acompanha a trajetória da índia Mãtãnãg, que segue o espírito de seu marido, morto por uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos. Juntos eles superam os obstáculos que separam o mundo terreno do mundo espiritual.

Brasil (SP) | 14 min. | Animação | Livre

Direção: Shawara Maxakali e Charles Bicalho

Pesquisa e Roteiro: Pajé Totó Maxakali Charles Bicalho

Produção: Charles Bicalho, Cláudia Alves, Marcos Henrique Coelho

Tradução: Charles Bicalho, Isael Maxakali, Sueli Maxakali

Consultoria Cultural: Isael Maxakali, Sueli Maxakali

Direção de animação: Jackson Abacatu; Ilustração: Alexandre Maxakali, Ariston Maxakali, Cassiano Maxakali, Eliana Maxakali, Erismar Maxakali, Evaldo Maxakali, Gerente Maxakali, Mamei Maxakali, Marcinho Maxakali, Marco Maxakali, Paulinho Maxakali, Shawara Maxakali

Montagem: Charles Bicalho, Jackson Abacatu, Marcos Henrique Coelho

O filme pode ser visto no link: https://www.videocamp.com/pt/campaigns/539?playlist_id=88 

disponível até o dia 15/10/2020.Mais informações sobre a mostra em https://www.videocamp.com/pt/playlists/mostra-cineflecha


 André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-SP

Continue Lendo

Trending