Por Ricardo Gozzi, especial para os Jornalistas Livres.
De Curitiba
A estudante paranaense Ana Júlia se despontou na tarde de 26 de outubro como símbolo nacional do movimento de ocupação das escolas públicas. Os holofotes voltaram-se para a secundarista quando, do alto de seus 16 anos, fez um comovente discurso em defesa da escola e da educação públicas.
Por alguns minutos, ela silenciou os deputados que assistiam à sessão daquela tarde na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep). De quebra, a jovem mitou ao confrontar com um humilde pedido de desculpas – mas sem se intimidar nem retirar suas palavras – a truculência com que o presidente da casa, Ademar Traiano (PSDB), ameaçou cortar antecipadamente sua palavra e encerrar a sessão.
A presença de Ana Júlia na tribuna da Alep, no entanto, pode ser chamada de acidental. É muito provável que o discurso daquela tarde nem ao menos tivesse acontecido se, nos dias que antecederam à intervenção da jovem, a direita raivosa não tivesse agido como é de seu costume ao tratar das ocupações.
A semana do discurso de Ana Júlia começou com uma tragédia. Dois dias antes, o estudante Lucas Eduardo de Araújo Mota, também de 16 anos, foi morto por um colega no Colégio Estadual Santa Felicidade, uma das mais de 800 escolas públicas ocupadas pelos estudantes naquele momento no Paraná. A mídia tradicional e a direita não pensaram duas vezes antes de tentar tirar proveito da tragédia.
Até aquela segunda-feira, mais de mil escolas públicas e universidades haviam sido ocupadas em todo o Brasil, mas o assunto só virou “notícia” nacional quando Lucas foi assassinado. E o enfoque principal desses noticiosos foi a morte na escola ocupada, e não as mais de mil escolas ocupadas em todo o país naquele momento.
Antes mesmo de serem conhecidas as circunstâncias do assassinato de Lucas, o governador do Paraná, Carlos Alberto Richa (PSDB), foi o primeiro a tentar tirar proveito da situação. “É uma tragédia chocante, que merece uma profunda reflexão de toda a sociedade”, escreveu Richa em suas redes sociais. “Renovo o meu apelo para que os pais redobrem o cuidado com seus filhos. Peço ainda, mais uma vez, que os estudantes encerrem esse movimento”, prosseguiu.
A morte de Lucas levou os estudantes do Colégio Santa Felicidade a encerrarem a ocupação. Nas demais escolas, porém, a mobilização estudantil seguia ganhando corpo, mesmo com membros do MBL atuando na condição de milícia pró-governo ao tentarem desocupar escolas à força, especialmente em Curitiba.
Em 25 de outubro, dia seguinte à morte de Lucas, o deputado estadual Hussein Bakri (PSD), que preside da Comissão de Educação da Alep, montou um circo de horrores na Assembleia. A convite do deputado, o estudante de jornalismo Patrick Egnaszevski e o professor da rede estadual de ensino Gilmar Tsalikis, ambos integrantes do Movimento Desocupa Paraná, usaram a tribuna da Alep para defender a desocupação das escolas na esteira da morte do jovem Lucas, que só teve uma roupa para o sepultamento graças a uma vaquinha.
O Movimento Desocupa Paraná é parte de uma contraofensiva organizada pelo MBL às ocupações das escolas pelos estudantes. À tribuna da Alep, Patrick subiu envolto em uma bandeira do Brasil e leu o que chamou de “manifesto contra a morte de um estudante”. Em resumo, o manifesto lido por Patrick responsabiliza pela morte de Lucas os alunos engajados nas ocupações, por ele chamadas de ridículas e “famigeras”, líderes sindicais e uma tal “ideologia fálida”. Patrick encerrou o discurso padrão do MBL exigindo uma CPI da APP-Sindicato, entidade que representa os professores da rede pública estadual do Paraná. Depois foi a vez do professor Gilmar seguir uma linha parecida. Em nenhum momento de seus discursos, porém, Patrick ou Gilmar citaram o nome de Lucas. Quem quiser entender por que o discurso de Ana Júlia viralizou e os de Patrick e Gilmar não, é só tomar um sonrisal e ouvi-los:
https://www.youtube.com/watch?v=3Pe0XqVKYpM
https://www.youtube.com/watch?v=aMULS2CVyo0
Na sequência das exposições contrárias às ocupações, os deputados governistas, que desde o fim de 2014 acostumaram-se com a rotina de serem vaiados quando saem em defesa dos sucessivos pacotes de maldades oriundos do Palácio Iguaçu, deram início a uma verdadeira peregrinação à tribuna para disparar uma sequência de discursos fascistóides na tentativa de arrancar aplausos dos integrantes do Movimento Desocupa Paraná que ocupavam as galerias.
(Vídeo da sessão na íntegra)
Quando deputados da oposição subiram à tribuna para discursar em favor dos secundaristas, o público presente passou a hostilizá-los incessantemente. Traiano precisou intervir mais de uma dezena de vezes para pedir silêncio nas galerias, quase todas elas sem se exaltar. Os xingamentos foram tantos que o deputado Tadeu Veneri (PT) convenceu Traiano a abrir espaço no dia seguinte para que a oposição levasse dois convidados para expor a visão dos secundaristas contrários à MP 746.
Até aquele momento não havia nada programado para a sessão do dia seguinte. Para dificultar ainda mais, a União Paranaense dos Estudantes Secundaristas (Upes) teria assembleia durante todo o dia em 26 de outubro e não poderia mandar nenhum representante. Foi a partir de conversas com pessoas ligadas às ocupações que assessores de Tadeu Veneri chegaram a duas adolescentes sem vínculo com nenhuma entidade estudantil, mas antenadas ao movimento.
Na tarde de 26 de outubro, as estudantes Ana Júlia e Nicole chegaram à Alep acompanhadas dos pais. No gabinete da Liderança da Oposição, mal conseguiam controlar a ansiedade, mas em nenhum momento pensaram em recuar da possibilidade de falar ao plenário.
Assim apareceram Nicole, estudante do Colégio Estadual Santa Felicidade, e Ana Júlia, aluna do Colégio Estadual Senador Manoel Alencar de Guimarães. A fala de Nicole, apesar de mais concisa, em nada ficou a dever à de Ana Júlia, mas a emoção incontida e o confronto com Traiano colocaram a segunda em destaque.
É plausível afirmar que sem a tentativa da mídia de criminalizar as ocupações, sem as ações violentas do MBL para desocupar as escolas, sem o show de horrores da sessão legislativa de 25 de outubro de 2016, hoje talvez não conhecêssemos a voz de Ana Júlia, mas seus questionamentos encontrariam eco em alguma outra voz: “De quem é a escola? A quem a escola pertence?”
Assista ao discurso de Nicole:
Assista ao discurso de Ana Júlia: