Mestre Nenê só usa roupas brancas. Quando não está jogando capoeira, o chapéu na cabeça – que deixa à mostra longos dreadlocks – é praticamente sua marca registrada. Se for necessário identificá-lo por outra característica marcante basta encarar seus olhos. Verde-acinzentados, são inconfundíveis.
Fotos: Lina Marinelli / Jornalistas Livres
Na quarta-feira, 19 de agosto, por volta das 19 horas, ele estava com o filho de cinco anos no colo, na calçada da comunidade onde mora, o Mangue, encravado no famoso da bairro da Vila Madalena, quando cinco policiais de uma viatura o abordaram. Mestre Nenê não sabia, mas a diligência, que ele já havia visto passar na rua, estava à procura de um suspeito por roubo. O suposto autor do crime estaria em roupas escuras de motoqueiro, com cabelo curto e seria jovem.
Aos 45 anos, as mechas grisalhas na barba ou cabelo denunciam a maturidade do Mestre. A única possível semelhança com o suspeito era ser negro. E foi o bastante para que a Polícia Militar de São Paulo valesse de seus protocolos de morte contra o capoeirista.
Revólver engatilhado, golpe mata-leão, a ida a um hospital para receber sedação e à delegacia para ser fichado foram os procedimentos destinados ao Mestre pelos agentes do Estado. Proteger o filho teria sido sua desobediência e desacato.
Os Jornalistas Livres acompanharam Mestre Nenê ainda no 14ºDP de Pinheiros, descalço, naquela quarta-feira de frio. Alunos e seguidores do professor, que é discípulo do saudoso Mestre Ananias (1924-2016), um dos maiores porta-vozes da cultura popular do Brasil, também estavam na porta do local.
“Fico imaginando o meu povo quando não tinha ninguém para dar apoio. E quem não pode fazer isso? É essa situação do nosso país, né? Nunca mudou nem vai mudar… E está piorando”, disse ao sair do DP, exausto e com a voz falha, depois de sofrer por quatro horas diferentes manifestações de racismo institucional.
Mata-leão está proibido desde 31/07
A chegada da polícia na porta da comunidade do Mangue não foi diferente de outras vezes; com a ordem típica, aos berros, do “mão na cabeça”. Mestre Nenê não se espantou. “São 520 anos de perseguição ao povo negro. Ninguém seria alvo de um revólver engatilhado em nenhum outro lugar da Vila Madalena”, diz o capoeirista. “Mas o Mangue é diferente; é o único local de negros na região.”
Dessa vez, porém, Mestre Nenê estava com seu filho. “Meu menino brincava na calçada e veio correndo pro meu colo, com medo”, explica. “Como eu ia colocar mão para o alto com ele no braço?” E ainda tinha arma apontada para os dois. “É muito fácil o poder se aproveitar de circunstâncias para atacar lideranças negras. É muito fácil saber do meu papel naquela comunidade. Enxergo uma perseguição a mim e ao que eu represento. A capoeira atinge a todos, de maneira consciente e inconsciente. Muda o sistema.”
“Vi o revólver na minha direção e, por consequência, diante do rostinho do meu menino! Foi por isso que eu avisei aos policiais, de maneira muito tranquila, que ia colocar a criança pra dentro da vila.”
Não deu tempo de poupar o filho do desrespeito. Ao virar as costas, o capoeirista foi pego pelo mata-leão do policial. “Teve amigo capoeirista que depois me perguntou porque não me defendi. Sabe por quê? Eles queriam que eu reagisse. A nossa luta não é de hoje e sei que a saída é pela voz, é gritar, falar, chamar a comunidade, os jornalistas. E educar nossas crianças.”
A cena foi vista por várias pessoas. “O Mestre caiu no chão, na escadinha da viela, e ainda protegeu a criança com o próprio corpo”, diz Dhemerson Francisco Soares, de 20 anos, uma das testemunhas. A técnica de imobilização, a mesma que matou por sufocamento o norte-americano George Floyd em 25 de maio e mobilizou protestos em todo o mundo, foi proibida pelo subcomandante da Polícia Militar de São Paulo desde o dia 31/07.
“Queriam que eu reagisse”
Mestre Nenê conta que sentiu tontura, o princípio de um desmaio e rapidamente as algemas foram apertadas em seu pulso. “Puxaram forte, mesmo, prendendo a circulação, pra machucar. E aí lembro de pedir por socorro e só querer saber do meu menino.” A criança foi amparada por moradores e pela mãe. As cenas com os gritos apreensivos do capoeirista foram registradas pela comunidade. (Vídeo acima).
Na confusão, o casaco do capoeirista foi rasgado e ele perdeu os sapatos. Fazia menos de 10 graus na cidade naquela noite. Sua calça – branca, vale lembrar – ficou sem o botão que a prendia na cintura. Ao ser levado para o camburão, o capoeirista passou pelo constrangimento de ficar de cuecas na rua. Foi também nessas condições que chegou ao hospital público da Lapa.
Ele achou que iriam cuidar de seus pulsos na emergência. Mas Mestre Nenê não foi atendido por clínico geral. Os policiais o deixaram na viatura, ainda com a algema apertada, e uma psiquiatra apareceu ali, pronta para medicá-lo. “Eu gritei que não queria tomar nada, era a única coisa que eu poderia fazer.” E, de fato, só por causa de seus gritos os alunos e amigos, que haviam seguido a viatura da polícia, conseguiram testemunhar o momento em que o capoeirista manifesta sua recusa em receber sedativos.
Um dos discípulos da capoeira contou que, antes de ouvir a voz do mestre, havia perguntado à polícia sobre o andamento da consulta. “Eles mentiram, disseram que ele estava em atendimento quando nem tinham tirado o mestre do camburão. Não é uma mentira menor, é uma prática de rotina, de ocultação de vítimas”, analisou o aluno que não quis se identificar.
Sem curativos ou qualquer intervenção médica, o professor foi obrigado a assinar um papel afirmando que se recusou a receber socorro. E assim, com as mãos presas, agora inchadas pelas algemas, calças pendentes, em cuecas à mostra, foi levado para ser ouvido pelo Delegado. “Eu fiz nada”, repetia.
“Foi racismo e o mestre reagiu a uma ilegalidade”, diz a advogada Vivian Mendes
“‘É preciso dar nome ao que ocorreu: racismo. Diferentes manifestações de racismo institucional foram praticadas pela polícia e até mesmo pelo hospital público”, disse a advogada criminalista Vivan Mendes, na porta do DP, antes de acompanhar Mestre Nenê ao exame de corpo de delito que vai embasar um processo de abuso de autoridade policial. “O que ele viveu são exemplos concretos de práticas escravistas que permanecem no âmago do Estado brasileiro.”
Em depoimento, apenas dois policiais responderam pela abordagem. Afirmaram que o Mestre “desobedeceu a ordem legal”. O argumento foi contestado pela criminalista. “Não há cabimento em falar de desobediência pois não houve indícios de que os oficiais estavam diante de um suspeito. As roupas claras, o cabelo longo já o isentariam de um procedimento daquela maneira, ainda mais com uma criança no colo”, pontuou a especialista. “Apenas o fato de ser negro o incriminou? O mestre, na realidade, então reagiu a uma ilegalidade.”
Além da criminalista Vivian, atuam no caso as advogadas Ana Paula Freitas e Priscila Pamela, da Rede Liberdade, que atua em casos de violação de direitos e liberdade.
Comunidade é famosa pela resistência
Mestre Nenê ressalta a importância de contextualizar ainda mais o episódio. “Para começar, a escravidão nunca acabou e nem temos democracia. É a partir disso que temos que analisar todo o ocorrido”, pontua o capoeirista. “A polícia chega desse jeito, e de maneira natural, porque somos negros e isso precisa ser levado à sério de uma vez”, ressalta o morador do Mangue, comunidade famosa por sua resistência.
Remanescentes de uma favela maior que instalou em terrenos ociosos no começo do século passado, cerca de 200 famílias negras ocupam dois terrenos no coração do bairro nobre. A principal viela de acesso às casas simples fica na rua (curiosamente) chamada Fidalga. Ali, o metro quadrado vale, em média, R$ 11.000. Em média, pois os novos estúdios moderninhos de 25m2 podem custar tanto quanto os apartamentos de alto padrão que tomaram conta do entorno nos anos 1990.
Vizinho dos espigões assinados por renomados arquitetos e construtoras, na casa de Mestre Nenê fica o ilê Flor d’Aroeira – Tambor de Crioula, Samba e Capoeira. Ali, ele treina quem é do Mangue, da Vila ou da roda de capoeira da Praça da República, indiscriminadamente. O ilê promove o ensino da música e o som do berimbau percorre as praças do bairro e de outras centenas, não só na cidade, mas mundo afora. Um grupo de dança acompanha os tambores, que são aquecidos em fogueiras.
Mestre Nenê é também um líder comunitário, voz de respeito e exemplo de conduta. São afazeres intrínsecos ao seu papel e de todos mestres e mestras da cultura popular brasileira. Se reconhecem e são reconhecidos como patrimônios vivos, são herdeiros da memória e de saberes ancestrais transmitidos pela oralidade, geração após geração. Fazem o Brasil mais brasileiro. E, obviamente, faz a Vila Madalena ser única também.
Palavras como “diversidade,”arte”,”cultura” e “boemia” são atrativos vendidos em qualquer panfleto imobiliário sobre o bairro. Não por acaso, a Vila Madalena virou reduto de bares, agências de publicidade, grupos de teatro e escolas com propostas mais libertárias. Desde que a vila é vila há tambor e a comunidade do Mangue.
Capoeiristas de todo o país estão fazendo vídeos em solidariedade ao Mestre Nenê e cobrando do governador João Dória e do prefeito Bruno Covas uma retratação pública. As hastags para a campanha são #JusticaMestreNene, #RetratacaoJoaoDoriaMestreNene, #RetratacaoBrunoCovasMestreNene.
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5 respostas
É um grande absurdo o que vem acontecendo desde tempos ancestrais c a população negra e indígena no Brasil e no mundo.
Não podemos aceitar tais barbáries !
Justiça já p o Mestre Nenê !!!
eita Brasil, que tristeza… vai passar em 2022 se Deus quiser.
Mais uma manifestação de racismo de uma polícia mal dirigida, mal treinada e violenta!
Meus respeitos Mestre Nenê. Nomes como o seu haverão de ser lembrados pela luta por direitos iguais para todos. Infelizmente esse covardes não pagarão por suas canalhices. Também não é vingança nem violência que desejamos. Continuemos essa luta gloriosa.
Solidariedade ao mestre Nenê e à comunidade preta e indígena neste país e no mundo. Muita luta ainda pela frente.