Todo mundo confundindo a série “Narcos”, do Netflix, produzida e dirigida por José Padilha, com documentário, certo? Pois o próprio José Padilha alimenta essa ideia ao mesclar cenas filmadas agora com outras, extraídas do noticiário da época em que o meganarcotraficante Pablo Escobar reinava, aterrorizando a Colômbia. Em entrevista à “Deutsche Welle”, Padilha defendeu a historicidade de sua série: “Na Colômbia, quando você fala em realismo mágico, os colombianos dizem: ‘Olha, realismo mágico para os outros. Para nós, é documental.’ Por isso que eu usei material de arquivo na série: se eu não contasse a história por material de arquivo, as pessoas não iriam acreditar.”
Pois é bom não acreditar mesmo, apesar das aparências e do marketing agressivo da série.
“Narcos” abre com um texto em off, supostamente representando o pensamento do personagem da vida real Steve Murphy, agente da DEA (Drug Enforcement Administration) responsável pela caçada a Escobar.
Está lá, sem contestação ou contexto:
“Veja Richard Nixon, por exemplo. As pessoas esquecem, mas 47 milhões de pessoas votaram no Nixon. Nós achávamos que ele era um dos mocinhos. E Nixon achou que o general chileno Pinochet era um dos mocinhos porque ele odiava os comunistas. Então, nós ajudamos Pinochet a tomar o poder. Depois, Pinochet acabou matando milhares de pessoas. Talvez ele não seja um dos mocinhos. Mas, às vezes, os vilões fazem coisas boas. Ninguém sabe, mas em 1973, o Chile estava a caminho de se tornar o maior centro processador e exportador de cocaína do mundo. Havia desertos para esconder laboratórios e quilômetros de litoral não patrulhado para despachar o produto. Mas Pinochet estragou a festa. Ele fechou 33 laboratórios e prendeu 346 traficantes de drogas. Depois, sendo Pinochet, mandou matar todos eles.”
É Padilha sendo Padilha. Como se fosse verdade, Padilha faz um daqueles seus previsíveis jogos de prestidigitação que garantiram o sucesso de “Tropa de Elite”, no qual pretende mostrar que mocinhos às vezes comportam-se como bandidos e vice-versa.
Então, a plateia é levada a crer que apesar de vilão, Pinochet fez “coisas boas” porque estragou a festa da cocaína no Chile quando “fechou 33 laboratórios”, “prendeu 346 traficantes de drogas” e “mandou matar todos eles”.
Só que não! Isso é apenas a fantasia de Padilha –sempre tão diligente em seu esforço para encontrar o “lado bom” em torturadores como o capitão Nascimento e, agora, em agentes da DEA, em grupos de extermínio colombianos e no campeão do terror de Estado, Augusto Pinochet.
Já está bem assentado o papel dos sicários a serviço de Augusto Pinochet no tráfico internacional de drogas. Coube a Manuel Contreras, braço direito do ditador e chefe da sinistra Dina (Direção de Inteligência Nacional), a polícia secreta do regime militar, a tarefa de transformar plantas inteiras do Exército chileno em unidades de processamento da coca.
Contreras deu proteção a narcotraficantes em troca de financiamento para as atividades da Dina e do lobby cubano anticastrista. Em depoimento à Suprema Corte do Chile, em 1998, o próprio Contreras declarou que nada empreendeu nessa área que não fosse de conhecimento prévio do ditador Pinochet. Em nova acusação, feita em 23 de junho de 2006, Contreras afirmou que a origem da fortuna de Pinochet, estimada em 28 milhões de dólares, foi o tráfico internacional de cocaína.
Segundo reportagem do jornal inglês “The Guardian” de 10 de dezembro de 2000, “apenas entre 1986 e 1987, 12 toneladas de drogas (…) saíram do Chile com destino ao território espanhol. A distribuição na Inglaterra e em outros países europeus era controlada pela polícia secreta baseada nas embaixadas de Estocolmo e Madri.”
Pinochet era isso. Um vilão sem lado bom, apesar da boa vontade de Padilha.
Mais informações:
http://www.theguardian.com/world/2000/dec/10/chile.pinochet
http://elpais.com/diario/2000/12/11/internacional/976489218_850215.html
http://www.pagina12.com.ar/diario/elmundo/4-69699-2006-07-10.html