João Torrecillas Sartori: O modelo de propaganda de Bolsonaro entre Freud e Adorno

Adolf Hitler (1889-1945) é recebido por apoiadores em Nuremberg, em 1933. Propaganda nazista criou o Mito
Adolf Hitler (1889-1945) é recebido por apoiadores em Nuremberg, em 1933. Propaganda nazista criou o Mito

Por João Torrecillas Sartori, médico no SUS, psicanalista e doutorando em Ciência Política

 

 

Muitos conceberam o pronunciamento oficial de Bolsonaro na noite de 31 de março como o mais moderado daqueles últimos dias. Alguns concluíram, atribuindo expressiva importância ao então recente isolamento político do Presidente, que este estaria recuando e se sentindo compelido a certa cooperação. Ainda mais ousadamente, em redes sociais, outros chegaram a afirmar a iminência de um impeachment. Factualmente, Bolsonaro se isolara politicamente: até mesmo alguns de seus ministros mais alinhados – como Mandetta, da Saúde – contrariaram abertamente suas declarações absurdas sobre a Pandemia da COVID-19. A contrariedade dos seus ministros certamente indicaria a instabilidade de seu governo. Naquele momento, acuado, solicitando de modo insatisfatório apoio do setor militar, Bolsonaro talvez tenha sentido a necessidade de uma revisão em seu discurso oficial.

Contudo, embora Bolsonaro se encontrasse mesmo em isolamento político, o aparente recuo do dia 31 se inclui mais amplamente em um movimento cíclico, característico da sua estratégia de propaganda. Esta estratégia se alterna entre recuos e o uso de certo modelo de propaganda. Qual seria este modelo, no entanto? Recorrendo à obra de Adorno – referenciada na obra de Freud, criador da psicanálise –, o modelo de propaganda mais utilizado pelo presidente seria consistentemente considerado como mais um dentre muitos outros exemplos do denominado modelo de propaganda fascista.

Em 1951, em sua obra intitulada Teoria freudiana e Modelo fascista de propaganda, Adorno utilizou a expressão agitadores fascistas na designação de líderes de massas os quais discursam de um mesmo modo, utilizando-se de um “complexo de medidas” rigidamente estabelecido. Para o autor, os variados agitadores, desde os menos valorizados socialmente, até os mais importantes, se comportam e se expressam semelhantemente em certos aspectos; monotonamente, embora de modo enérgico e extremamente ruidoso em muitas situações. Adorno escreveu que “a reiteração constante  e a escassez de ideias seriam elementos necessários ao método”. O material da propaganda fascista constituiria uma unidade estrutural, de modo que cada enunciado do agitador se determinaria por esta unidade.

Dentro do marco estabelecido pela obra de Freud intitulada Psicologia das massas e Análise do Eu (1921), Adorno considerou que o agitador seria, ele mesmo, em alguma medida, convicto das ideias externalizadas às massas. Analisando o discurso de Bolsonaro nas últimas três décadas, é consistente a suposição de que as estruturas narrativas paranoicas externalizadas por ele aos bolsonaristas norteariam também as suas próprias ideias e atitudes.

De outro lado, Adorno escreveu que a agitação fascista veio a ser um “meio de subsistência”, os agitadores aprimorando suas técnicas “empiricamente”, ao longo dos anos. O aprimoramento resultaria em certa padronização das técnicas, as quais, por sua vez, estão compatibilizadas com o modo de pensamento estereotipado dos indivíduos mais suscetíveis à propaganda fascista. Os agitadores menos eficientes não obteriam maiores êxitos e deixariam de ser considerados. De algum modo, mesmo que auxiliado por uma indústria de Fake News, Bolsonaro convenceu sua massa, obtendo o carisma medíocre de um agitador. Mas quais seriam as técnicas usadas pelos agitadores, entre os quais o Presidente?

Para Adorno, entre os elementos constitutivos do método dos agitadores, estão as enunciações motivadas ao “apontamento do inimigo”, descrito na obra freudiana como um dos mecanismos de coesão das massas.  Neste contexto, Adorno estabeleceu que os agitadores se utilizam da denominada “técnica da unidade”. Discursam de modo a aumentar as diferenças concebidas entre os membros da massa e os não-membros da massa e, de modo a minorar as diferenças internas, entre os membros daquela, somente mantendo ressaltadas as diferenças hierárquicas. Justamente neste sentido, Adorno escreveu que os agitadores comumente atacam os intelectuais, os esnobes e os hedonistas, os quais, subversivos, contrariam a “técnica da unidade”. Estes três, mesmo não conscientemente, ameaçam o narcisismo do líder e, consequentemente, o de cada um dos membros da massa, evidenciando a inconsistência de suas crenças norteadoras.

Adorno asseverou que, embora em alguns casos os agitadores tenham recomendado medidas concretas contra seus opositores – tais como a expatriação de sionistas e a realocação de estrangeiros aos campos de concentração – comumente o seu discurso se restringe, sobretudo, a argumentos ad hominem, por meio dos quais os opositores mencionados são sistematicamente atacados, sua imagem sendo convertida na de “inimigos da nação”, não se enunciando, entretanto, as citadas medidas concretas. Bolsonaro, mais comumente, não centrou o seu discurso em medidas concretas direcionadas ao combate aos seus repudiados opositores – chamados genericamente no bolsonarismo de comunistas, petistas ou esquerdistas –; mas, sim, na veiculação do ódio a estes últimos e na sua caracterização como “inimigos” do povo brasileiro – povo implicitamente concebido em seu discurso como não-comunista, não-petista e não-esquerdista.

Muito comumente, os agitadores fascistas obtêm uma satisfação indireta de seus impulsos agressivos. Os seus liderados intuem de seu discurso estes impulsos e concluem sobre o modo como devem vir a agir: concretizando, eles mesmos, os impulsos agressivos de seu líder. As medidas do líder, sobretudo discursivas e não concretas, autorizam simbolicamente – isto é, validam socialmente – estes atos violentos. Já em meio às campanhas presidenciais, em 2018, se constataram mais comumente, em indivíduos e em movimentos de massa, certos comportamentos autoritários, agressivos e discriminatórios, a sua maioria, mantendo como alvos, indivíduos contrários à candidatura de Bolsonaro ou, aqueles identificados em “minorias identitárias” – étnico-raciais, sexuais, de gênero, entre outras. A maioria destes comportamentos teria sido constatada em apoiadores de Bolsonaro. O discurso de ódio deste último autorizou simbolicamente, e ainda autoriza, variadas modalidades de violência contra aqueles; e, inclusive, as modalidades físicas.[1]

Por outro lado, Adorno sustentou que cada uma das variadas medidas constituintes do método dos agitadores se relaciona – mesmo que inconscientemente – com o estabelecimento ou com a manutenção de um certo vínculo afetivo, característico da massa. Este vínculo, denominado idealização, foi considerado, décadas antes na teoria de Freud (1921), como de natureza libidinal, uma modalidade de “enamoramento”, na qual certa disposição crítica individual desapareceria. Adorno evidenciou que mesmo Hitler mostrou saber da natureza libidinal da constituição das massas.

Entretanto, Freud concluiu que o vínculo constitutivo da massa, correspondente a uma idealização de um indivíduo – isto é, à sua consideração como líder –, não consiste em um investimento libidinal direto. As suas metas sexuais são inibidas. Os integrantes da massa são muito excitáveis e sugestionáveis pelo seu líder, mas não estão conscientemente intencionando a atividade sexual explícita com este último. Freud entendeu que a “sugestionabilidade” dos integrantes da massa pelo seu líder, isto é, sua receptividade à sugestão deste último, se ocasiona pela sua relação de idealização.

O Líder como encarnação do Eu Ideal

Em 1921, Freud concluiu que em muitos casos o narcisismo estabelecido no indivíduo o condiciona à seleção, como seu líder, de um objeto semelhante a si mesmo, mas “caricaturado e demaculado” – isto é, contendo de modo exagerado os seus aspectos idealizados e contendo minorados os seus aspectos não aceitos. O líder seria aproximado imaginariamente do seu Ideal. Precisamente, seria a idealização de si mesmo pelos outros, aquilo que o líder intencionaria, inconsciente ou conscientemente, suscitar ou reiterar em seus seguidores.

Adorno concebeu a propaganda fascista como relacionada com a “técnica da personalização”; e, assim, como motivada a ocasionar nos indivíduos a idealização – ou, mesmo, a mitificação –, de certo agitador. Não envolve, deste modo, a discussão objetiva de questões sociais e econômicas. Os membros da massa “se renderiam” a esta imagem idealizada. A sua rendição, assim como sua sugestionabilidade e a sua irracionalidade, são intencionalmente ocasionadas pelos expedientes mencionados. Freud, mesmo, considerou a escolha do líder como evento inconscientemente condicionado e, em seus termos, como “resultante não do raciocínio, mas, da vida erótica”. Isto é, considerou-a como resultante da ressonância individual de certos circuitos afetivos.

Para Adorno, cada uma das medidas constituintes do método dos agitadores fascistas se motiva, mais restritamente, (1) à execução da “técnica da personalização”, antes evidenciada, ou (2) à concretização da ideia do “pequeno grande homem”. Esta ideia, por sua vez, consiste na crença de que o líder, ao mesmo tempo superior e vigoroso, seria um indivíduo comum, apresentando certos traços também apresentados pelos membros de sua massa. Para os bolsonaristas, o seu líder “botaria ordem na casa” tendo sido “capacitado por Deus”; mas, simultaneamente, seria em muitos aspectos exatamente como eles mesmos. Aparentemente, mesclaria entre si o extraordinário e o comum.

Mesmo não sendo exaustiva, esta análise contribui a uma aproximação entre o modelo de propaganda comumente utilizado pelo Presidente e o modelo fascista de propaganda descrito por Adorno. Embora Bolsonaro tenha recuado ante as ameaças resultantes de seu isolamento político, e tenha revisado momentaneamente o seu discurso, não seria inconsistente a suposição de que, em seguida, retomaria o seu modelo de propaganda mais utilizado, caracterizado anteriormente. Foi o que ocorreu. A “estratégia” de comunicação do Presidente inclui, periodicamente, recuos e recrudescências, em uma espécie de movimento cíclico. A novidade deste recuo, ocorrido na noite de 31 de março, estaria mais em sua intensidade e no seu contexto que na sua ocorrência em si.

[1] Ribeiro, Alexsandro; Zanatta, Carolina; Ferrari, Caroline; Roza, Gabriele; Lázaro Jr., José; Simões, Mariana; Lavor, Thays. Violência eleitoral recrudesceu no segundo turno. Agência Pública, São Paulo, 18 nov. 2018. Disponível em: https://apublica.org/2018/11/violencia-eleitoral-recrudesceu-no-segundo-turno/

 

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COMENTÁRIOS

8 respostas

  1. Gostei muito da análise que efetuou! Na mesma linha de raciocínio, já Goebbels dizia que era mais fácil unir um povo através de um ódio comum do que através de um amor comum… Contudo, há uma mensagem que, ficando embora nas entrelinhas do seu artigo, deve se explicitada – a eleição de Bolsonaro, no Brasil (ou a de Trump, nos Estados Unidos, embora com “nuances” diferentes) é o espelho do falhanço do modelo educacional e cultural brasileiro. Já nem falo no sócio-económico… Ninguém duvida que uma criatura absolutamente boçal como Bolsonaro não seria eleito na esmagadora maioria dos países com algum desenvolvimento… O povo não votaria maioritariamente em alguém tão básico!!! Trump tem um discurso básico porque quer tê-lo. Bolsonaro tem um discurso básico porque não capacidade para se exprimir doutra forma!… A nulidade do seu discurso é um reflexo fidedigno da sua nulidade em todas as matérias cujo domínio é necessário para proceder à governação de um país, qualquer que seja… E no caso de um colosso como o Brasil, a exigência sobe! Creio que a esmagadora maioria dos brasileiros não tem noção de como a figura de Bolsonaro é chacota pública em órgãos de comunicação social de referência nos principais países do mundo!… E isso é muito grave, pois provoca danos na imagem externa das instituições brasileiras que demorarão muito tempo a sanar!… Bolsonaro foi eleito porque a esmagadora maioria dos seus votantes entendia a mensagem dele e não a de outros porque não tinha capacidade para entender raciocínios mais complexos!!! E essa parcela significativa da população eleitora não tinha a capacidade que referi porque o sistema brasileiro de ensino e de difusão cultural não a capacitou para isso!!! Esse é um problema que deve passar a preocupar muito os intelectuais brasileiros, pois o atual estado da situação favorece que um qualquer Bolsonaro se perpetue ou que a ele suceda outro líder do mesmo jaez, com as consequências trágicas que tal acarretará a esse maravilhoso país que é o Brasil, onde tenho muitos familiares.

  2. Direito (sobretudo, Direito Financeiro, Direito Europeu Comunitário e Direito da Contratação Pública) e Auditoria. E umas quantas leituras periféricas… Mas, nos primeiros tempos de vida profissional, a minha área jurídica de eleição era o Direito Constitucional e as disciplinas que se lhe associam naturalmente – a Ciência Política e a Teoria do Estado. Porque pergunta, Márcia…?

  3. Direito e Auditoria. Por que pergunta, Márcia?

  4. Olhando por um ponto de vista neutro, pode-se concluir que Lula e Bolsonaro, Haddad e Ciro Gomes fazem parte do mesmo bolo. Pois todos se apresentaram como “salvadores” se aproveitando de algum tipo de “ódio” que seus eleitores tinham pelo “lado oposto”.

    Podemos nos lembrar que a campanha do ex-presidente Lula era “O proletariado unido contra os empresários”, “pobres contra ricos” dentre outras narrativas distorcidas da realidade, que criaram um ambiente político hostil para o povo, porém favorável aos ideais da “Esquerda”. O mesmo foi feito pelo atual presidente Bolsonaro, só que ao invés de utilizar o discurso de “uma classe contra a outra”, ele unificou e fez o mesmo discurso para todos. Resumindo, ambos disseram tudo o que o povo queria ouvir em suas épocas, respectivamente.

  5. “Paulo Freire escreveu, em sua Terceira Carta Pedagógica: “Se a educação sozinha, não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.” (FREIRE, 2000, p.67). Nesta perspectiva, a educação não pode restringir-se aos problemas de sala de aula. Na sua necessária dimensão ético-política precisa contribuir para a solução de problemas hoje tão graves, que dizem respeito à própria sobrevivência da humanidade e do planeta como um todo. Trata-se, pois, de pensarmos a educação em termos de urgência máxima, ou de “situações-limite” plantarias. Objetivo principal deste artigo é o de buscar, tanto nas obras de diferentes autores, quanto em projetos inovadores, elementos para aquela que denomino “pedagogia das grandes urgências”. A pergunta que levanto, para mim e para os que me lerem, é esta: Qual a contribuição que nos cabe darmos, como educadoras e educadores, para a construção de um mundo mais humano e solidário, numa época que muitos estudiosos consideram caracterizada por diferentes e cruéis formas de barbárie?”. ANDREOLA, Balduíno Antonio. Por uma pedagogia das grandes urgências planetárias. Educação (UFSM), Santa Maria, p. 313-330, set. 2011. ISSN 1984-6444. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2020. doi: http://dx.doi.org/10.5902/198464443050.

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