Por Márcia Tiburi*
No Brasil, fomos lançados em uma tradição autoritária, uma cultura (essa “segunda natureza” do sujeito), que faz nascer a crença no uso da força em detrimento do conhecimento, que coloca cada um na posição de um fascista em potencial. Esse “fascismo potencial”, aliás detectado e analisado na pesquisa relatada por Theodor W. Adorno em Studies in the authoritarian personality, que está presente no psiquismo de cada indivíduo, faz com que práticas fascistas sejam facilmente naturalizadas.
Em que pese a existência de pessoas dispostas a dar aparência de racionalidade àquilo que é, em essência, irracional (basta pensar em “políticos” que “justificam” prisões desnecessárias, chacinas e abusos de poder), o fascismo não necessita de racionalizações, uma vez que se refere a dados intuitivos e imediatos, que não dependem de reflexão. Ao contrário, o fascismo se alimenta de dados que não suportam qualquer juízo crítico e, portanto, aptos a serem incorporados por todos e, com mais facilidade, pelos mais ignorantes.
A aposta em soluções de força para solucionar os mais variados problemas sociais revela uma desconfiança. O fascista desconfia do conhecimento, tem ódio de quem demonstra saber algo que afronte ou se revele capaz de abalar suas crenças. Ignorância e confusão pautam sua postura na sociedade. O recurso a crenças irracionais ou anti-racionais, a criação de inimigos imaginários (a transformação do “diferente” em inimigo), a confusão entre acusação e julgamento (o acusador – aquele indivíduo que aponta o dedo e atribui responsabilidade – que se transforma em juiz e o juiz que se torna acusador – o inquisidor pós-moderno) são sintomas do fascismo que poderiam ser superados se o sujeito estivesse aberto ao saber, ao diálogo que revela diversos saberes.
Ao lado do ódio ao saber, o fascista revela medo da liberdade. O fascista desconfia, não sabe como exercê-la e não admite que outros saibam ou tentem, razão pela qual aceita abrir mão da liberdade (e querer o fim da liberdade alheia) para fundir-se com algo (um movimento, um grupo, etc.) ou alguém a fim de adquirir a força que acredita ser necessária para resolver seus problemas (e os problemas – reais ou imaginários – que vislumbra na sociedade).
O fascista apresenta compulsão à submissão e, ao mesmo tempo, à dominação. É um submisso, que demonstra dependência com poderes ou instituições externas, mas que, ao mesmo tempo, quer dominar terceiros e eliminar os diferentes. É, portanto, um masoquista e um sádico, que não hesita em transformar o outro em mero objeto e goza ao vê-lo sofrer.
Os movimentos fascistas possuem uma ideologia: uma ideologia de negação. Nega-se tudo. Nega-se a diferença, as qualidades dos opositores, as conquistas sociais, a luta de classe e, principalmente, o conhecimento. Com isso, fica interditado o caminho à superação da ausência de saber. Os fascistas, que tem facilidade em odiar, talvez não saibam bem o que querem, mas sabem o que não suportam: a democracia, entendida não só como participação popular na tomada de decisões, mas também como a concretização dos direitos fundamentais de todos, como processo de educação para a liberdade e como limite ao exercício do poder, de qualquer poder.
Há, porém, quem ainda negue a existência de neofascismos. Para esses o fascismo se resume ao fenômeno histórico italiano protagonizado por Mussolini. Talvez porque o neofascismo se apresente como algo natural, uma vez que as práticas fascistas são percebidas por seus adeptos como consequências necessárias da vida em sociedade. Outros sugerem, desconhecendo não só a carga simbólica do significante como também as pesquisas sobre a personalidade autoritária (que chegou, por exemplo, à chamada “Escala F”, pensada para medir o “grau de fascismo” de uma sociedade), que ao apontar posturas fascistas de uma pessoa ou de um grupo, aquele que identifica os caracteres da personalidade fascista torna-se fascista. Interessante imaginar Adorno, Lowenthal, Gutterman, Fromm, dentre outros, a serem chamados de “fascistas” por Mussolini, Hitler, Rocco e Himmler.
Além disso, não se pode esquecer aqueles que identificam toda manifestação autoritária como um ato fascista, nem os que acreditam estar imunes ao fascismo. Em resumo: muitos não compreendem o que é o fascismo, ou fazem questão de ignorar algumas facetas do fenômeno. E, por essa razão, muitas vezes desconsideram ou relativizam os riscos dos neofascismos cada vez mais naturalizados entre nós.
Não se pode perder de vista que o neoliberalismo aposta em uma revolução conservadora e, para tanto, conta com os fascistas. As politicas neoliberais apresentam-se como inovadoras, com suas reformas, mas visam, em última análise, um retorno à “origem”, a restauração de uma situação mais pura, sem os limites construídos e impostos ao longo da civilização. Nesse paradoxo, uma subversão voltada à restauração, encontra-se o elemento que permite cooptar e tornar os neofascistas úteis para o projeto neoliberal. O fascismo e a promessa de “ordem” aparecem para compensar a desordem e a destruição provocada pela agenda neoliberal.
O fascismo, hoje, adquiriu status de elemento de integração social e se baseia não só na solidariedade afetiva daqueles que negam tanto o outro, baseados em preconceitos, quanto também o conhecimento, num gesto de ódio anti-intelectualista, como também na integração das estruturas mentais. Grupos inteiros partilham estruturas cognitivas e avaliativas que fornecem uma estranha sustentação para o comportamento e a ação. Uma visão de mundo baseada em características tais como a crença no uso da força em detrimento do conhecimento e do diálogo, o ódio à inteligência e à diversidade cultural, a preocupação com a sexualidade alheia, autoriza a barbárie na micrologia do cotidiano.
Busca-se com práticas fascistas impor estruturas cognitivas e avaliativas idênticas para se fundar um consenso sobre o sentido do mundo. A tarefa é facilitada na medida em que o “consenso fascista” é funcional aos objetivos das grandes corporações econômicas. O mundo fascista é o mundo sobre o qual as pessoas com seus microfascismos se põem de acordo sem sabe-lo. Chavões são repetidos como verdades que garantem o lucro emocional do sujeito dos preconceitos: “bandido bom é bandido morto”, “vamos exterminar a petralhada”, “diretos humanos para humanos direitos”, “homossexualidade é sem-vergonhice”, “mulher que não se comporta merece ser estuprada”, “porrada é o melhor método de educação”, “escola sem partido”, etc.
A uniformidade do pensamento que caracteriza o fascismo, tem sua realização na linguagem estereotipada, mas também na ação estereotipada que é o consumismo. Consumismo das ideias prontas e consumismo das coisas. No contexto neoliberal em que a sociedade foi substituída pelo mercado, o mais engraçado é que aqueles que foram rebaixados a consumidores pelo sistema, deixando de lado o valor da cidadania que caracteriza o ser humano enquanto ser social, entregam-se ao consumismo esperando que a felicidade venha dele e só conseguem se tornar cada vez mais infelizes. Agindo assim, constroem um mundo do qual eles mesmos não gostam de viver.
É o fascismo que permite manifestações populares antidemocráticas, com todas as contradições daí inerentes, e outras posturas contrárias aos interesses concretos desses próprios portadores da personalidade fascista. Em outras palavras, há um aspecto psicológico, uma certa manipulação de mecanismos inconscientes, que faz com que a propaganda fascista não seja identificada nem como antidemocrática nem que seus objetivos latentes sejam percebidos. Pense-se na “autorização” para liberar os piores sentimentos e preconceitos que o aparecimento de um candidato fascista à Presidência da República, com visibilidade e apelo popular, permitiu nos últimos anos.
Note-se que a retórica fascista é vazia, não apresenta ideias ou argumentos, mostra-se alheia a qualquer limite ou reflexão. Ao contrário, os ideólogos fascistas (parlamentares, juízes, jornalistas) se caracterizam por falarem por clichês. Poucos percebem suas contradições. Se lembrarmos de frases tais como “pelo direito de não ter direitos” que já apareceram em cartazes em manifestações populares teremos um exemplo de contradição explícita totalmente fascista enquanto suprassumo da barbárie autorizada.
Mas nem sempre o fascismo se faz de frases feitas. Às vezes ele é melhor disfarçado. No Brasil, por exemplo, a “luta contra a corrupção” que em um primeiro momento parece uma luta pela honestidade, tornou-se cortina de fumaça que leva à uma corrupção mais grave, a do sistema de direitos e garantias. Nessa linha é que, em nome dos “interesses do Brasil”, destroem-se os setores produtivos brasileiros e entregam-se nossos recursos aos conglomerados internacionais.
Não é incomum que fascistas usem a “moralidade” como tapume para seus verdadeiros interesses. Distanciados da técnica, afirmando barbaridades tais como “todo ‘homem de bem’ deve andar armado”, “na época dos militares é que era bom” ou “convicções” no lugar de provas, ou deixando claro que os direitos fundamentais devem agora ser afastados para permitir a “segurança” da população, os fascistas ganham espaço reduzindo a complexidade dos fenômenos. Assim propõem raciocínios absurdos como se fossem os melhores. Bradam, por exemplo, que “vamos deixar de investir em pesquisa para comprar armamentos”, num evidente combate ao conhecimento, que deve parecer desnecessário ou não urgente, quando na verdade, acoberta-se o perigo que sentem e o ódio que se tem dele.
Bom lembrar que o ódio é um afeto compensatório. Odeia-se aquilo que não se pode ter ou aquilo que afeta, que faz sentir mal, aquilo que humilha. Por fim, não se pode deixar de lembrar, que os fascistas, de ontem e de hoje, se especializam em discursos pseudoemocionais: “faço isso em nome dos brasileirinhos”, “em nome do meu filho, de Deus”, como se viu na escandalosa votação do impeachment de Dilma Rousseff em 17 de abril de 2016, ou ainda o recente “o Capitão lutou até onde conseguiu, agora ele precisa de nós”.
Fato é que a fala do fascista é direcionada à audiência, mas ao que há de autoritário nela. Estimula-se, por meio das palavras, o que pode haver de arcaico e o violento em cada um. Daí também a glorificação da ação e a demonização da reflexão. O fascista age em nome da realização do desejo da audiência enquanto, ao mesmo tempo, o manipula. O discurso fascista é, sobretudo, um discurso publicitário que visa um receptor despreparado e embrutecido. É assim, longe do pensamento capaz de duvidar e perguntar, que o fascista-receptor passa a desejar aquilo que a propaganda fascista o faz desejar, passa a acreditar naquilo que a propaganda fascista afirma ser verdade.
Como percebeu Theodor Adorno, a ação fascista tem natureza intrinsecamente não teórica, desconhece limites (percebe-se, pois, como é adequada à racionalidade neoliberal), não dá espaço à reflexão, isso porque deve evitar qualquer formulação, em especial porque o fascista nunca pode ter consciência de que seus objetivos declarados nunca serão alcançados e que a propaganda fascista necessariamente faz dele um tolo. Seria insuportável, para ele, perceber isso. Pense-se nos trabalhadores que “bateram panela”, e se negaram ao diálogo com um governo democraticamente eleito, e que agora, sem fazer barulho, assistem ao desmonte do sistema de direitos individuais, coletivos e difusos. Um fascista cala no lugar em que a personalidade democrática naturalmente se expressaria.
Na atual quadra, ou se desvela e desconstrói o fascismo, ou não haverá mais espaço à construção de um mundo melhor.
*Márcia Tiburi é filósofa, professora de filosofia, escritora e candidata ao governo do Estado do Rio de Janeiro, pelo PT.
2 respostas
Parabens pelo texto publicado, a Marcia é excelente.
O fascismo é um sentimento, um comportamento, uma ideologia que no meu ver, está presente na maioria dos seres humanos devido à sua cultura, educação, religião, pregadas no longo da história da humanidade. Tanto que, sempre que se deixa, ou melhor, cria-se ambiente para a manifestação fascista, o ser humano se manifesta. É triste, mais na minha opinião é a realidade nossa, como ser humano.
Excelente artigo! Obrigada Márcia Tiburi.