1 O Direito Alternativo
Nos anos setenta do século passado, alguns juristas revivem uma velha questão que não era desconhecida dos romanos: os pretores tinham autoridade para suavizar as fórmulas rigorosas das primeiras leis romanas, norteando-se por princípios úteis para administração da justiça como a equidade e humanidade. A questão passa a ser revivida por juízes italianos na busca por um direito vivo — com alguma inspiração no jusnaturalismo — e que pudesse por cobro a um positivismo exacerbado e aparentemente neutro que ignorava situações sociais de injustiça.
No Brasil, esse pensamento repercute em meio a uma ditadura que se findava (anos 80), mas que continuava a ter um arcabouço jurídico repressivo e obscurantista que poderia ser compensado por uma reinterpretação legal. Embora a discussão acadêmica e doutrinária date de período anterior à Constituição de 1988, foi seu texto que deu um grande instrumental para reinterpretação de normas infraconstitucionais segundo valores mais humanistas.
O assunto estava no plano doutrinário e entranhava algumas poucas decisões de magistrados progressistas, muitos dos quais do sul do país, quando em 25 de outubro de 1990, o já extinto Jornal da Tarde (órgão de imprensa pertencente ao grupo Estado de São Paulo, com conhecido viés conservador) publica uma longa matéria intitulada Juízes Gaúchos colocam direito acima da lei. A matéria assinada pelo jornalista Luiz Maklouf, dentre outras coisas, tinha por escopo desmoralizar o magistrado Amílton Bueno de Carvalho, um dos próceres dessa forma de pensar, sugerindo que ele decidia segundo sua cabeça e contra legem. Se o objetivo da reportagem era escarnecer alguns magistrados gaúchos — e o objetivo era esse mesmo — o resultado acaba servindo para divulgar a existência de juristas preocupados com a estagnação do Direito e com a já conhecida ineficácia da prestação jurisdicional. O debate acadêmico, açulado pela polêmica jornalista, acaba propiciando um Encontro Internacional de Direito Alternativo realizado em Florianópolis no ano de 1991 e também a edição de farta literatura, em grande medida publicada pela Editora Acadêmica. (1)
O movimento de direito alternativo nunca consistiu numa doutrina contra lei. Embora se reconhecesse o Direito Positivo como uma conquista democrática, a crítica ao mito da neutralidade ou da valoratividade era um de seus motes. Também se podia contemplar uma crítica ao sistema vigente, sempre condescendente com valores liberais exacerbados; combate irrestrito à miséria da população que não via (especialmente antes da Constituição de 1988) o reconhecimento de direitos coletivos e que contemplava problemas sociais com um viés individualista; uma simpatia pela teoria do direito de mote crítico que reinterpretava a lei a partir da Constituição Cidadã; uma crítica à fonte única do direito e da interpretação mecanicista das normas efetuadas por meio de um método hermenêutico ortodoxo de matriz formal/técnico/ dedutivo. (2)
A riqueza da discussão não deixou de ter críticos à direita e à esquerda. Reconhecer que o direito não é um todo orgânico, coerente e completo, com suas antinomias e lacunas, e que a lei como fonte privilegiada do Direito necessita de uma busca de seu sentido por meio da interpretação (e é o intérprete que sempre executa esse papel trazendo consigo sua ideologia e seus valores pessoais) é dar ensejo a uma longa discussão quanto ao próprio papel do operador do direito e em particular do juiz. Para outros, a defesa estrita da legalidade no sentido de proteção dos despossuídos constituiria unicamente um emprego instrumental da jurisdição. (3) Para outros, ainda, permitir uma maior elasticidade ao mecanismo de interpretação da lei, poderia dar ensejo a uma prática alternativa perigosa por parte de um jurista reacionário que adaptaria sua interpretação a uma desautorização ou solapamento dos valores fundantes do Estado de Direito.
Embora não tenham sido poucas as discussões sobre o tema, a dogmática penal teve certa carência no debate. (4) O protagonismo coube ao direito civil e trabalhista, cabendo ao Direito Penal mais uma condição de observador privilegiado e polemista — partícipe — do que propriamente a de executor de uma proposta — autoria. A meu juízo isso se deveu em grande medida aos paradigmas mais estreitos do direito penal, em muitas questões adstrito ao princípio da legalidade. Não que não se possa conceber um direito penal “penetrado” ou “influenciado” por considerações político criminais, dentro de uma concepção de “sistema aberto”. Segundo tal perspectiva a política criminal passaria a ter uma importância central na própria dogmática, auxiliando o jurista na operação de hermenêutica no âmbito das categorias penais. (5) Mas a verdade é que os limites da legalidade, em nossa esfera do saber, tem restrições não conhecidas na área extrapenal.
Embora o direito alternativo nunca tenha sido um movimento de juristas contra a lei, de pessoas pregadoras do voluntarismo jurídico, não se pode deixar de ter em conta que os detratores do direito alternativo conseguiram, em alguma medida, criar uma falsa imagem segundo a qual o direito alternativo é o direito sem lei, apesar da lei ou mesmo contra a lei.
Embora tal visão não seja correta, somente para os efeitos deste artigo, vou usar tal sentido em tópico que se segue.
2 Avesso da Lei
Em 2014, sob coordenação de Thiago Bottino, Professor da FGV-Rio, gestou-se uma das mais bem elaboradas pesquisas empíricas na área penal que tive conhecimento. A pesquisa intitulou-se “Panaceia Universal ou Remédio Constitucional? Habeas Corpus nos Tribunais Superiores”. A pesquisa foi patrocinada pelo Projeto “Pensando o Direito e as Reformas Penais no Brasil” do Ministério da Justiça.
A razão precípua da pesquisa foi um movimento importante de restrição ao uso do Habeas Corpus em Tribunais Superiores (STJ e STF), em grande medida por haver um acúmulo significativo de impetrações desse Remédio Constitucional naqueles Tribunais. No entanto, mais importante do que simplesmente impedir o ajuizamento das ações é entender os fatores que geram essa pressão sobre os tribunais superiores e atacar as causas do excesso de habeas corpus que visem à, apenas, impugnar decisões de instâncias inferiores. O projeto proposto “dispôs-se a identificar as principais teses jurídicas que são levadas aos tribunais superiores para que se possa pensar em políticas públicas (legislativas e jurisprudenciais) que permitam conciliar a proteção da liberdade de locomoção com o sistema de competências das diversas instâncias judiciárias”. (6)
Um exemplo do problema enfrentado foi a constatação de que determinadas teses jurídicas, se não acolhidas pelas instâncias inferiores, pressionam os tribunais superiores. É dizer: muitas matérias sumuladas, seja pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, são sistematicamente descumpridas ou inobservadas por instâncias inferiores do Judiciário. Em formato de Habeas Corpus, os Tribunais Superiores passaram a ser instâncias recursais de ações que descumprem suas súmulas ou suas correntes jurisprudenciais pacificadas por órgãos de segundo grau dos Estados.
O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, julgou 1.624 Habeas Corpus no ano de 2007. No ano seguinte, foram 5.440. Em 2009 a escala ascendente continuou, batendo em 6.183, permanecendo em níveis elevados, desde essa época. (7)
No Superior Tribunal de Justiça a situação foi ainda mais dramática, pois o crescimento estendeu-se até o ano de 2011, sendo certo que o volume total de casos é quase seis vezes maior o do STF (considerando os picos de impetrações), alcançando a marca de 36.000(trinta e seis mil) habeas corpus em apenas um ano. Em 2007 eram 24.294 Habeas Corpus. Em 2011 esse número é alçado a 36.570. (8)
A surpresa —será ?— fica por conta da altíssima concentração de casos com origem no Tribunal de Justiça de São Paulo. 43,8% das ações de Habeas Corpus são oriundas de São Paulo (guerreando decisões do TJ/SP). É importante entender a dimensão disso, uma vez que não é compatível com dados de população (São Paulo concentra apenas 21,63% da população brasileira), nem com dados de população prisional (embora seja o Estado com a maior população carcerária, com 35,71%). O elevado percentual de casos oriundos do Tribunal de Justiça de São Paulo sugeriu o aprofundamento das pesquisas nesses casos.
No estudo dos casos mais frequentes, correspondentes aos tipos punitivos, verificou-se que Cinco crimes eram recorrentes: estupro; furto (simples e qualificado); homicídio qualificado; tráfico de drogas; roubo (simples e majorado). Do total de Habeas Corpus impetrados, 72,59% correspondiam a esses crimes. (9)
No que concerne ao conteúdo das ações, apenas cinco temas (dentre os 41registrados) correspondem a mais da metade de todas as discussões (54,30%),destacando-se os temas ligados à progressão de regime, prisão cautelar, regime inicial de cumprimento de pena, erro na dosimetria e excesso de prazo. (10) O problema pode ser visualizado pelo quadro a seguir reproduzido:
Na maioria dos casos levados aos tribunais superiores acerca dessa combinação “crime” + “tema” as decisões contestadas em sede de HC condenavam o réu ao cumprimento inicial de pena em regime fechado com base na periculosidade do agente ou na gravidade abstrata do delito, a despeito da regra do art. 33, § 2º autorizar, pelo critério da pena definitiva, a adoção de outros regimes. O caso do roubo é paradigmático, pois embora uma pena de 5 a 8 anos possa ser cumprida em regime semiaberto desde o início, muitos Desembargadores do Tribunal de Justiça paulista condenam a penas inferiores a oito anos, porém do regime inicial fechado. Muitas vezes o fundamento é apenas a apreensão social que esse delito causa!
Essa questão jurídica aparecia associada, por vezes, aos casos em que não existiam outras circunstâncias desfavoráveis que acentuassem a culpabilidade do réu, senão a violência inerente ao próprio tipo penal. Essa matéria, contudo, já fora sumulada pelo STF em 2003 (Súmulas 718 e 719 do STF) e ainda pelo STJ em 2010, no Enunciado nº 440.
Senão vejamos: Súmula nº 440, STJ: “Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito.” Súmulas nº 718, STF: “A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada”. No mesmo diapasão a Súmula 719 do Pretório Excelso: “A imposição de regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea”.
Dessa forma, o altíssimo percentual de concessão desses HC’s e RHC’s foi facilmente identificado: a resistência dos tribunais inferiores de aplicarem os enunciados 718 e 719, da Súmula do STF, posteriormente reafirmado pelo verbete nº 440, do STJ, além de outras matérias sumuladas sobre temas diversos cuja discordância é expressa pelo julgador “a quo”.
Portanto, não obstante já fosse entendimento sumulado que a gravidade abstrata do delito não é fundamentação idôneo para imposição de regime
inicial de cumprimento de pena mais gravoso, por diversas vezes os tribunais superiores se viram obrigados a julgar HC’s e RHC’s apenas para reafirmar sua jurisprudência.
A tese repudiada pelos tribunais superiores (e recorrente nas fundamentações dos tribunais de segunda instância) é a de que o regime fechado é o único compatível com a gravidade do delito de roubo —quando não de furto, estelionato ou apropriação indébita — e da periculosidade presumida dos autores desse tipo de crime. Infere-se que o juízo acerca da periculosidade do agente – previsto na Lei nº. 6.416/77, expurgada do ordenamento na Reforma Penal realizada pela Lei nº. 7.209/1984 – ainda é largamente empregado por magistrados de primeiro e segundo graus de jurisdição. (11)
Poderia discorrer longamente sobre a pesquisa acima mencionada, tal sua riqueza. No entanto, não é este o objetivo deste trabalho, mas sim destacar que a postura refratária de parte do Poder Judiciário Paulista, em grande medida colabora para entulhar os Tribunais Superiores com questões cujos temas estão pacificados em sede daquelas Cortes.
Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça possuem jurisprudência firme (tanto que sumuladas, muitas delas) sobre temas que são ignorados por alguns Magistrados paulistas. E isso produz um assoberbamento de trabalho das Cortes Superiores, bem como causa grandes problemas humanitários para pessoas que permanecem no cárcere sem qualquer fundamento legal.
Essa tendência, embora já existisse anteriormente, passa a ser tornar uma preocupação explícita no ano de 2010. O primeiro sinal da Escolha de Sofia já vinha encartado no título do artigo de Mohamad Ale Hasan Mahmoud: O cabimento do Habeas Corpus: uma escolha dramática. No corpo do trabalho o argumento era assim vazado: “Por mais que a ideia apresentada vá restringir o exercício da ampla defesa, é importante ter claro que a manutenção do status quo apenas representa a perpetuação de justiça tardia que, na lição de Ruy, cristaliza injustiça qualificada. Trata-se de escolha dramática, à luz da reserva do possível. Sendo inviável erradicar todos os tumores, pensa-se, deve-se cauterizar os que se encontram nas áreas vitais. É tempo de racionalizar o uso do habeas corpus, a bem do próprio direito de liberdade.” (12)
Coincidência ou não, o autor do artigo, então Assessor da Ministra do STJ, Maria Thereza de Assis Moura, dá o pontapé inicial em um jogo que teria na própria Julgadora uma das mais enfáticas defensoras da restrição da admissibilidade do remédio heroico. As cartas foram colocadas na mesa, e o jogo passa a ser jogado com mais rigor. Na Escolha de Sofia, o abandonado foi o jurisdicionado pobre.
As iniciativas de tentar corrigir o assoberbamento do trabalho pela restrição da admissibilidade de algumas hipóteses de Habeas Corpus, em minha visão, é o avesso da lei. Nada há que autorize — e muito menos o excesso de trabalho de Ministros — a limitação de um direito representado pelo remédio constitucional heroico. Qualquer restrição dessa natureza é o avesso da lei.
3 O avesso do avesso do avesso
Voltemos ao direito alternativo. Embora não se imagine como correta a assertiva segundo a qual o direito alternativo esteja à margem da lei ou julgue contra a lei, parece que a pecha jornalística aderiu aos defensores dessa linha de pensamento. Um jurista conservador e bem informado — ou mesmo alguém que nada leu sobre o assunto — acha que praticar o direito alternativo é julgar contra a lei. (13) Pois utilizemos esse conceito.
Escolhi alguns julgados representativos do direito alternativo pelo avesso, destacando temas diferentes, embora haja verdadeira corrente de seguidores que professam essa ideia.
A. O primeiro julgado diz respeito ao Habeas Corpus nº 0232315-83.2012.8.26.0000, decidido pela 9ª Câmara do TJ/SP. A decisão foi unânime e teve como Relator o eminente Desembargador Souza Nery. O tema principal do v. Acórdão, dentre outras questões de menor relevo para este artigo, é a discussão da possibilidade de concessão de liberdade provisória para o crime de roubo.
Senão vejamos:
“Tal como alvitrado, com a costumeira propriedade, pelo ilustre e ilustrado parecerista, o pleito não está no caso de ser acolhido.
Senão, vejamos:
A concessão da pretendida liberdade provisória é absolutamente incompatível com o crime imputado ao paciente. É que, em matéria de roubo a mais intranquilizadora expressão da criminalidade nos dias presentes devem ser observadas as seguintes regras:
A. não se relaxa prisão em flagrante formalmente perfeita;
B. não havendo prisão em flagrante, decreta-se a prisão preventiva;
C. se, por desatenção, o réu livrou-se solto, decreta-se sua prisão preventiva quando da prolação da sentença.
Instrumento de garantia do direito de ir e vir, reservado aos cidadãos ordeiros, que fazem bom uso de sua liberdade, o habeas corpus não pode ser degradado à função de “chave de cadeia” para quem assalta quando está indo, e torna a assaltar quando está vindo…”
E, mais adiante, arremata:
“A ousadia crescente das pessoas como o paciente envolvidas na criminalidade, sua absoluta desconsideração pela boa-fé alheia e a tranquilidade com que exercem sua funesta atividade de infringir as leis para obter vantagem ilícita, estão a exigir uma atuação serena embora rigorosa e enérgica do Poder Judiciário, que não se pode despir de suas responsabilidades no tocante a tal estado de coisas”.
Comentário: O Supremo Tribunal Federal, em inúmeros arestos (HC 99.832), já decidiu não caber, nem mesmo para os crimes chamados hediondos, em se tratando de prisão cautelar, uma limitação ao exercício da liberdade per se. Devem ser analisados os eventuais requisitos da prisão preventiva (artigos 312 e 313 do CPP). Não existentes, a regra de livrar-se solto deve ser observada. Em outras palavras: a gravidade abstrata do delito não é suficiente para justificar a constrição cautelar da liberdade. Vê-se, na hipótese, o exercício de um direito alternativo para vulnerar garantias individuais.
B. O segundo Acórdão a analisar discute o reconhecimento da existência de maus antecedentes e em que hipóteses isso se aplica. É da lavra do eminente Desembargador Grasi Neto, da 7ª Câmara do Tribunal de Justiça. Trata-se da Apelação nº0047533-27.2010.8.26.0576, decidido por unanimidade dos julgadores.
“Em uma abordagem meramente superficial, a denominação ‘maus antecedentes’ não seria, aparentemente adequada para designar envolvimentos do réu com investigações ou processos judiciais de natureza criminal que fossem posteriores aos fatos que estão sendo julgados; igual ponderação caberia quanto às passagens anteriores que não tivessem redundado em condenação do acusado.
Ao empregar referida expressão “maus antecedentes” o legislador não estava se referindo, todavia, às condenações criminais que antecederiam no tempo a prática dos fatos cuja reprimenda se esteja dosando; cuidar-se-iam, antes, de “circunstâncias sociais de cunho negativo”, cuja existência deve
preceder logicamente não o momento da prática delituosa, mas a ocasião da prolação da sentença penal pelo Juiz de Direito”
E, mais adiante, arremata:
“Não se desconhece a edição do Enunciado n. 444 da Súmula de Jurisprudência do Colendo STJ, editado em abril de 2010, segundo o qual ‘é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base’.
Ao elaborá-lo, acreditamos, todavia, tenham os integrantes daquela Corte se afastado da melhor interpretação do texto Magno, mesmo porque a análise acima tecida de modo algum vulnera princípios constitucionalmente assegurados. Caso fosse essa a hipótese, e isso apenas a título de argumentação, a questão deveria ter sido inclusive objeto de enunciado vinculante, que teria que emanar não do STJ, mas do Pretório Excelso, Corte superior à qual incumbe precipuamente, pondere-se, a guarda da CF/88”.
Comentário: Os antecedentes — sempre criminais — foram transformados em “circunstâncias sociais de cunho negativo”, sendo ignorado que o artigo 59 tem a rubrica de “conduta social” que alcançaria hipoteticamente tal ideia. Ademais, como o próprio nome já o expressa, antecedentes devem ser sempre precedentes ao ato delituoso e não ao ato decisório, posto que o autor de um delito deve se responsabilizar por seus atos, não podendo prever se um dia será ou não julgado por ele e quando isso ocorrerá. A inobservância da súmula 444 dá-se por razões puramente ideológicas. Evidentemente que esse fato dará ensejo a reforma pela Corte Superior, caso haja a interposição de recurso. Vê-se, na hipótese, o exercício de um direito alternativo para vulnerar garantias individuais.
C. A terceira decisão analisada foi proferida em primeira instância pelo Ilustre Magistrado Italo Morelle. Foi proferida nos autos 020502.53.2013.8.26.0050. A discussão que nos interessa destacar diz respeito à dosimetria penal em um crime de roubo.
“De se decantar e exalçar o caráter preventivo gera e especial da pena, o que apenas se consegue, impondo sanções mais robustas (apesar de nossa lastimável LEP, que dará chão a efetiva sanção bem menor), mormente, em crime frequente, ordinário e regular, como o que em vista. A população, apavorada com a criminalidade jamais dantes vista, fazendo de suas moradas veros quartéis, valendo-se de segurança privada em calçadas (isto para os que podem, pois os pobres estão “ao Deus dará”, em todos os seus estamentos, clama por penas mais rigorosas (principalmente em se tratando de veículos). Crê este humilde operário do Direito que o Poder Judiciário deve estar atento e sensível a tanto, pois chegamos ao paroxismo, ao zênite, em que o sonho de consumo da classe média é um carro blindado; para motos, o máximo que se pode, ou seja, o rastreador e seguro (que pesa no bolso dos motociclistas).
E, em embasamento ao encimado, fosse a pena do corréu César mais elevada, provavelmente não praticaria o mesmo crime pelo qual pouco tempo permaneceu recluso ( serviria como exemplo prevenção geral – aos demais encarcerados). Ressocialização, vênia concessa, para criminosos habituais, em maioria supra summo , posto tenham-se gasto tintas e tintas quanto a tanto (e ainda que o sistema fosse adequado e ideal), é vã utopia de pretensos filósofos. Esbarra no livre arbítrio! Sem a candidez ou ingenuidade de Pangloss do expoente do Iluminismo Voltaire, o sujeito é criminoso, apetece-lhe o crime e até jacta-se se tem reputação de mais perigoso. Jamais laboraria de sol a sol, em jornada mensal, para perceber paga de um salário mínimo ou até metade mais, se, com um roubo de carro, uma “saidinha de banco”, etc., angaria 10, 20 mil reais. E, se mal sucedido, receberá (e riem-se ao deixar estabelecimentos prisionais para audiência onde será julgado, o cognominado “ 05 e 04”; é acicate para persistir na senda delituosa, pois vale a pena (nos dois sentidos) . A áspide, ante ameaço, não titubeará em destilar sua peçonha na vítima indefesa. Mas se a ameaça for realmente de monta (caráter preventivo geral — penas mais duras) empreenderá fuga.”
E ao fim e ao cabo, sentencia um dos corréus por roubo:
“Fixo a pena-base para o corréu Cesar em 07 anos de reclusão e 17 dias-multa (intermediaria, 03 anos além do piso e 03 anos aquém do máximo abstrato, para que não se diga rigor excessivo).
Ante a reincidência específica do corréu Cesar, alço a pena em 1/5, remetendo a 08 anos, 04 meses e 24 dias de reclusão e 20 dias-multa.
O concurso de agentes, assim o foi, com apenas dois rapaces, pelo que acresço as reprimendas em 1/3, englobando, para o corréu Cesar, 11 anos, 02 meses e 12 dias de reclusão e 26 dias-multa.
Á míngua de outras circunstâncias ou causas de oscilação, definitivas em tais patamares.”
Comentário: Na primeira fase do cálculo penal a pena é aumentada em 75% (três anos além do piso e três anos aquém do máximo abstrato) para que não se diga rigor excessivo. Superadas as duas fases outras do artigo 68 do CP, o magistrado aplicou pena de 11 anos, 2 meses e 12 dias, lembrando-se que para tal dispositivo penal, art. 157 do CP, o preceito secundário prevê pena de 4 a 10 anos. Não só súmulas são inobservadas, mas neste caso, a própria lei. Vê-se, na hipótese, o exercício de um direito alternativo para vulnerar garantias individuais.
D. A quarta decisão é da lavra do eminente Desembargador Renato Nalini, ora Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Foi proferida em 1996, no então Tribunal de Alçada Criminal. O aresto foi julgado em 4 de novembro, Ap. 1.030.173/2, 11ª Câmara. Talvez seja a mais importante das decisões citadas, porquanto muito seguida no Tribunal de Justiça por inúmeros Desembargadores. No caso em tela trata-se de um crime de roubo em que o acusado silencia na fase policial. Vejamos a abordagem do silêncio do acusado:
“Na polícia, todos restaram silentes. E dessa opção pelo silêncio, nem Eduardo — f — nem Rogério —f— poderão extrair proveito. Pois se manter silente na fase policial, embora assegurado pelo texto fundante, chega a comprometer os acusados. A reação normal do inocente é bradar contra a acusação injusta, e não se reservar para oferecer explicações apenas perante o juízo. Essa posição é própria de quem necessita de uma estratégia para oferecer resistência ao pleito ministerial.
De qualquer forma, não é apenas o silêncio na polícia que existe a incriminá-los….”
É bom que se esclareça que este não é o único caso assim julgado pelo insigne Magistrado, o que nos permite supor que tal interpretação não foi acidental. Veja-se o Acórdão da 11ª Câmara, julgado em 3/3/1997, em que se afirma:
“….embora a opção pelo silêncio derive de previsão constitucional, ela não inviabiliza o convencimento judicial no sentido desfavorável aos réus, pois a reação normal de um inocente é proclamar, com insistência e ênfase, a sua inocência, não se reservar para prestar esclarecimento apenas em juízo.”
Comentário: A autoridade intelectual e moral do Relator autoriza supor que seu exemplo tornou a ideia aqui defendida verdadeira referência de um direito alternativo às avessas. O caso, aqui, não é de descumprimento de uma simples súmula não vinculante ou mesmo de uma norma infraconstitucional, como o Código Penal. Estamos diante de uma inobservância de um princípio constitucional por Aquele que se transformou em referência nessa forma de pensar.
4 Conclusão
Lá se vão alguns anos quando ouvi pela primeira vez que São Paulo é diferente de todos os demais Estados da Federação. Também ouvi, alhures, que São Paulo pode ser dissemelhante, distinto ou divergente — e ignorar o ordenamento — pois é a locomotiva da Nação e aqui tudo se autoriza ser díspar. Aqui e acolá recolhi assertivas e observações que em última instância diziam ser melhor descumprir as súmulas, leis ou quiçá a Constituição a libertar alguém que mereça estar preso. Os grupos acadêmicos paulistas foram em sua maioria refratários aos juristas defensores do Direito Alternativo. Mas os últimos anos autorizam a afirmação segundo a qual quem mais pratica o Direito Alternativo são os Juízes Paulistas
São Paulo é realmente diferente. É curioso que em uma cidade com grandes representantes da Música Popular Brasileira, como Os Mutantes, Titãs, Demônios da Garoa, Adoniran Barbosa, Germano Mathias, Rita Lee, dentre tantos outros, ninguém conseguiu decifrar São Paulo melhor do que o baiano Caetano Veloso. A obra-prima com loas à vida paulistana, Sampa, é composta falando das principais características da capital paulista. A poluição, a recepção para os migrantes, as múltiplas culturas e o sonho de quem vem de fora, integram a composição. É difícil compreender a beleza na dura poesia completa das suas esquinas ou da deselegância discreta das tuas meninas. Afirmar que alguma coisa possa acontecer no seio de alguém quando se cruza a Ipiranga com a Avenida São João só há de se admitir quando o poeta é genial e faz do feio o belo; da esquina mais poluída a mais límpida manifestação do coração humano.
Mas uma coisa o mais paulista dos baianos não poderia imaginar. Que à mente apavora o que ainda não é mesmo velho. E que também no Direito Penal, inovaríamos criando um Direito Penal Alternativo que é refratário às leis e que pensam pairar acima delas. Ele também não poderia imaginar que no centro jurídico da capital paulista o sonho feliz de cidade fosse dar ensejo apressadamente a chamar nosso Estado de realidade, já que somos o avesso do avesso do avesso.
Referências
1 Alguns trabalhos merecem destaque: Lições de Direito Alternativo (dois volumes e autores diversos, publicados em 1991 e 1992, obra organizada por Edmundo Lima de Arruda Jr.); Magistratura e Direito Alternativo (obra escrita por Amílton Bueno de Carvalho, 1992, Ed. Acadêmica,); Direito alternativo na jurisprudência (Ed. Acadêmica, 1993, por Amílton Bueno de Carvalho); também merece menção a Revista de Direito Alternativo, sob direção de Amílton Bueno de Carvalho, com artigos de renomados juristas nacionais e estrangeiros. (anos de 1992 e 1993) além de inúmeras outras obras de grande circulação nacional.
2 ANDRADE, Lédio Rosa de. O que é direito alternativo. Caputado em 12/1/2015, http://lediorosa.jusbrasil.com.br/artigos/121941896/o-que-e-direito-alternativo.
3 BERGALLI, Roberto. Usos y riesgos de categorias conceptuales: conviene seguir empleando la expresíon “uso alternativo del derecho”?, in Revista de Direito alternativo, vol. 1, 1992, Ed. Acadêmica, p. 34.
4 Exceção para o excelente artigo de Salo de Carvalho, intitulado Direito alternativo e dogmática penal: elementos para um diálogo. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, p. 69-84, 2º. Semestre de 1997. Peço vênia para citar breve trecho do trabalho: “Assim, o MDA (movimento de direito alternativo) não representa, em tese, um local diametralmente oposto à Dogmática, mas utiliza a Dogmática no sentido de remodelamento (tática de curto e médio prazo) e na visualização de possibilidade de superação paradigmática (utopia em sentido positivo ou utopia concreta), tendo como principal referencial os Direitos Humanos. É que a construção crítica da Dogmática não pode representar um fim em si mesmo ou um processo de relegitimação do paradigma em crise. A crítica precisa atuar dentro do próprio paradigma, mas localizando-se teleologicamente na construção de um novo modelo.” Op. Cit., p. 79.
5 ROXIN, Claus. Política Criminal e sistema jurídico penal. Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 22.
6 Pesquisa citada, p. 9.
7 Op. Cit., p. 31.
8 Op. Cit., p. 32.
9 Op. Cit., p. 38.
10 Op. Cit., p. 38.
11 Op. Cit. p. 86 e seguintes.
12 Boletim do IBCCRIM, nº 213, Agosto de 2010.
13 Reafirmo que uma das apreensões que se tinha com o movimento do direito alternativo era o eventual receio que juristas conservadores se apropriassem da ideia de que poderiam julgar à margem da lei e da Constituição e que passassem a decidir em desfavor do indivíduo submetido à jurisdição penal em desrespeito aos direitos e garantias individuais.
Notas
1 Esse artigo do porfessor e criminalista Sérgio Salomão Shecaira foi originalmente publicado no livro Direito penal econômico: estudos em homenagem ao professor Klaus Tiedemann, editora LiberArs.
2 Essa matéria recebeu o selo 017-2018 do Observatório do Judiciário.
3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario
Uma resposta
Na simplicidade de meus conhecimentos, receba meu cumprimentos, pelas palavras esclarecedoras.