Apenas no ano de 2017, o Governo do Estado de São Paulo repassou quase R$ 40 milhões à Fundação OSESP, organização que gere e administra a orquestra homônima, o Festival de Inverno em Campos do Jordão, e a Sala São Paulo no centro velho da cidade. Ainda nesse ano, o valor foi acrescido de cerca de R$ 66 milhões da receita da venda de ingressos[1], os quais podem chegar a mais de 200 reais, a depender do concerto e do assento escolhidos.
Esses números expressam parte da magnitude da música de concerto no Brasil e no mundo. O custo para manter uma orquestra é altíssimo, e abrange gastos com estruturas de palco, edificação, e uma equipe extensa de pessoal, que inclui aproximadamente 158 músicos de formação de excelência, oriundos inclusive de outros países, e que recebem salários compatíveis aos de funcionários públicos de médio e alto escalão. Toda essa estrutura aponta para o colosso sobre o qual se assenta a música erudita e reforça em sua imagem a figura intocável da cultua eurocêntrica no mundo.
A verdade é que em várias ocasiões a Sala São Paulo e, de um modo geral, a Fundação OSESP foram descritas como elitistas, percepção que se baseia tanto no espaço em que se dão os concertos — um ponto de extrema concentração de renda em meio a uma das regiões mais violentas da América Latina — quanto na homogeneidade da diretoria da Fundação. Constituída em 2005, a Fundação OSESP tem como presidente de honra ninguém menos que Fernando Henrique Cardoso, e conta com um Conselho Executivo e de Orientação em que predominam nomes de políticos tucanos e de grandes empresários, alguns provenientes de família com tradição mecenata, como é o caso de Pedro Moreira Salles, presidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco e irmão dos cineastas Walter Salles e João Moreira Salles.
À parte isso, não se deve negar as tentativas de democratização da Sala São Paulo, algumas das quais nem tão exitosas. Além dos ensaios abertos e de alguns concertos gratuitos, durante muitos anos foi possível comprar ingressos à 10 reais momentos antes do início de cada concerto, eram os chamados “ingressos da hora”. O grande problema é que esses ingressos eram vendidos no estacionamento e pouquíssimas pessoas sabiam de sua existência.
Normalmente na fila de compra desses ingressos estavam estudantes de música e “ratos” de concerto de mais idade. Os “ingressos da hora” duraram até 2014, quando foram substituídos pelo Programa Passe Livre Universitário, que reserva um número das cadeiras de cada concerto para estudantes de graduação. Ou seja, de forma problemática, os ingressos que antes eram acessíveis a “todos” (que sabiam da existência desses ingressos), agora estão disponíveis apenas aos estudantes de ensino superior, normalmente jovens de classe média das universidades de prestígio da cidade.
Em um artigo escrito há poucos anos atrás, o médico Dráuzio Varella, que na época era assinante da OSESP, afirma que ela “é muito mais do que uma orquestra, é um grande projeto cultural e educativo”[2]. E de fato é. Acontece que esse projeto é anterior à própria orquestra, e remonta aos anos 1930, quando os anseios de intelectuais modernistas ganharam concretude no cenário político nacional, como o programa de educação musical nas escolas de Heitor Villa Lobos, e os esforços de Mário de Andrade a frente do que viria a ser a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Talvez o projeto mais emblemático desse período, usado na difusão da ideologia nacionalista de Getúlio Vargas, o programa de educação musical de Villa Lobos visava promover a disciplina entre as crianças, assim como educá-las acerca da formação étnica e sociocultual do povo brasileiro[3]. Apesar das várias diferenças, pode-se dizer que esse e outros projetos da mesma época abrangiam aspectos comuns, como a consolidação de um ideário de cultura popular nacional, a construção de um cânone erudito genuinamente brasileiro, bem como a educação do povo para o consumo dessas produções artísticas.
Em 1997, quando o maestro John Neschling assumiu a direção da OSESP, a estratégia usada pelo regente parecia dar continuidade a alguns desses anseios. Se, por um lado, era necessário dar ares tropicais à orquestra, por outro, era preciso iniciar uma trajetória de excelência, a partir de uma meta ambiciosa de colocar a orquestra ao lado das melhores do mundo. Por consequência, também era necessário formar um público para apreciar a música que se ensaiava, afinal, seria lastimável ver uma orquestra de excelência tocando para uma plateia vazia. E mais, era necessário que esse público soubesse apreciar a música executada, ou seja, que não cometesse gafes, como bater palmas no interregno de um movimento e outro de uma sinfonia.
Em um país como o Brasil, em que mesmo a elite não é afeita à música de concerto — o que é natural, dada a nossa condição no hemisfério sul e o século em que vivemos — , há algum tempo já se fala sobre a necessidade de formação de plateia. Importante ressaltar que esse ideal de público caminha junto da concepção de acesso à cultura, a partir da ideia de que o Estado deve não só garantir o acesso material aos produtos culturais, mas também fornecer a educação para que a plateia compreenda as obras produzidas. Pode parecer exageradamente retrógrada essa ideia, mas é essa a intenção dos vários programas que visam formar público em apreciação artística.
A pergunta que fica, no entanto, é: apesar dessas várias tentativas e pretensões, quem realmente quer frequentar a Sala São Paulo? Nessa busca implacável de tornar a OSESP uma orquestra de reconhecimento internacional não há tempo para experimentações, muito menos para profanação do espaço reservado às “obras universais”. Isso tanto no que se refere ao repertório da orquestra, com pouco espaço para compositores novos, quanto no que toca ao ambiente excessivamente pomposo, de ares aristocráticos da Sala. E porque haveria de ser diferente? — pode-se perguntar — Em qualquer lugar do mundo uma orquestra de renome é conduzida dessa forma.
Se mesmo assim uma pessoa do povo quiser se aventurar nesse espaço, terá de aprender a se comportar numa sala de concerto, observando bem como deve-se sentar e como se deve inclinar a cabeça ao longo da apresentação. Deverá também aprender a lidar com os olhares, que poderão acusá-la de não pertencer àquele lugar. Se estiver confortável, todavia, e muito contagiada pelo calor dos aplausos, mesmo que não tenha gostado muito da música, poderá expressar seu entusiasmo com um “Bravo!” ao final do concerto.
Podiam ilustrar o artigo com uma foto da Sala São Paulo em vez do Teatro Municipal. No mais, será que a tal educação musical das pessoas comuns depende tanto do acesso dessas pessoas a lugares tão específicos? Por que não levar pequenos concertos de duos ou quartetos, por exemplo, à periferia da cidade? Ensinar na prática a se ouvir e reconhecer cada instrumento, cada timbre e ir de pouco em pouco mostrando como esses timbres se harmonizam até construírem uma grande sinfonia. Isso é educação musical. Não se preocupar com o comportamento “correto” dentro de uma sala de concerto consagrada por deuses que a gente sabe muito bem quem são.
O músico mineiro Djonga foi indicado para concorrer ao troféu de melhor artista internacional no BET Hip Hop Awards, especializado em hap e hip hop. O rapper, compositor e historiador é o primeiro brasileiro a ser reconhecido pelo evento. O BET Hip Hop Awards é uma premiação norte-americana anual realizada pela Black Entertainment Television e voltada para rappers, produtores e diretores de videoclipes de hip hop e Rap.
Ele vai disputar o prêmio com Kaaris (França), Khaligraph Jones (Quênia), Meryl (França), MS Banks (Reino Unido), Nasty C (África Do Sul) e Stormzy (Reino Unido). O BET Hip Hop Awards revelará os vencedores do ano no dia 27 de outubro.
Neste ano, Djonga lançou seu quarto álbum de estúdio, Histórias da Minha Área, onde conta um pouco sobre o bairro Santa Efigênia, onde mora em Belo Horizonte. O trabalho conta com participações de MC Don Juan, Bia Nogueira, Cristal, NGC Borges e FBC.
Depois de surgir como grande astro na cena do hip hop nacional e colocar seu nome entre os principais personagens da cena do rap no país, Gustavo Pereira Marques (seu nome de batismo) acaba de fazer história aos 26 anos tornando-se o primeiro brasileiro a ser indicado ao prestigiado BET Hip Hop Awards, premiação musical focada na cultura negra.
A indicação de Djonga aconteceu nesta terça-feira, 29, e ele concorre na categoria Melhor Artista Internacional. “Cravando o nome na pedra, sem emocionar!”, escreveu Djonga no Twitter ao dar a notícia. Na postagem, ele publicou um vídeo em que fala à MTV sobre a importância do rap no período da pandemia: “O rap tem que continuar fazendo o papel de sempre. O primeiro papel, e mais importante, é o papel de arte, de música, de levar alegria e reflexão para as pessoas. Em segundo lugar, continuar denunciado o que a gente sempre denunciou. Dedo na ferida, dedo na cara de quem tá errado”.
A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República, que mudou seu nome para homenagear o inconfidente
Não é possível comemorar a Independência do Brasil hoje sem pensarmos sobre um dos temas mais debatidos em nossa relação com a história: a polêmica das estátuas. Em 22 de junho de 2020, por exemplo, o Museu de História Natural de Nova York anunciou a retirada de uma estátua equestre de Theodore Roosevelt localizada em frente ao museu desde 1940. Vejam na fotografia acima que razões não faltaram, pelo modo subalterno com que negros e índios são representados.
Por Mayra Marques, Mateus Pereira e Valdei Araujo (UFOP)*
O diretor do Museu afirma que a recusa é ao monumento, e não à figura de Roosevelt, que continuará sendo homenageado pela instituição por seu pioneirismo na luta pela conservação do meio ambiente. Segundo a reportagem, um dos descendentes do ex-presidente, declarou:
“O mundo não precisa de estátuas, relíquias de uma outra era, que não refletem os valores das pessoas que pretendem honrar, ou os valores de igualdade e justiça”.
Em 2017 uma comissão estabelecida pela cidade de Nova York para reavaliar a pertinência de monumentos públicos havia decidido, em votação dividida, pela manutenção da estátua, apesar dos protestos de que já vinha sendo alvo e das promessas do museu em “atualizar” (update) suas exibições. Em 2019 o museu tomou a iniciativa de promover um debate com a comunidade e inserir elementos que pudessem contextualizar e criticar os aspectos racistas e colonialistas do monumento, bem como reavaliar as posições do próprio Roosevelt.
A iniciativa ficou registrada no projeto “Addressing the Statue”, que pode ser ainda visitado no site da instituição. O projeto é um excelente exemplo de como o interesse renovado pelos monumentos e personagens históricos, provocados por polêmicas, podem ser respondido pela produção de conhecimento e diálogo com a comunidade em busca de atualização. Algo que poderia não acontecer se a estátua tivesse que ser removida violentamente.
Com a onda de protestos que se seguem após o assassinato de George Floyd, os administradores do museu decidem finalmente retirar a estátua, em um desfecho que exemplifica como a atualização da monumentalização pública pode ocorrer em um ambiente democrático ampliando o seu sentido histórico, no lugar de apagá-lo, como acusam ligeiramente alguns críticos.
Estátua equestre de Theodore Roosevelt, a ser removida da frente do museu de História Natural de Nova York
Esse fato, que tem como centralidade a figura e a estátua de Roosevelt, nos remete à também polêmica estátua equestre de Pedro I, que se encontra na atual praça Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro. Ela carrega a mesma estrutura evolucionista e hierarquizante criticadas na estátua de Roosevelt.
Estátua como “mentira de bronze”
O monumento comemorativo da Independência foi erguido em 1862, e desde seu nascimento provocou fortes protestos, ainda que por razões diferentes. Mesmo que sua instituição tivesse por objetivo a consagrar Pedro I como o herói que libertou a nação, dando-lhe uma carta constitucional, ela não deixa de materializar as concepções evolucionistas e racistas das elites brasileiras. Ao mesmo tempo, esse episódio nos mostra a complexidade da instituição de monumentos: desde o início a estátua foi vista por grupos liberais como uma impostura contra a memória de outros movimentos e heróis da independência, o liberal mineiro Teófilo Ottoni lança no mesmo dia da inauguração um panfleto crítico em que chama a estátua de “a mentira de bronze”, ao mesmo tempo em que recuperava a figura de Tiradentes como o verdadeiro herói da Independência.
A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República. Nesse caso, no lugar de remover a estátua do ex-imperador, bastou às elites republicanas ressignificar o contexto da praça em um gesto ao mesmo tempo provocativo e de conciliação. Deixava de ser praça da constituição para ser Praça Tiradentes. Ironia ou conciliação?
Até hoje a posição subalterna da população indígena no monumento permanece invisibilizada, e sua atualização poderia passar, também, pela promoção de debates e, mesmo, pela remodelagem documentada do monumento. A estátua equestre, com o Imperador segurando a constituição, poderia, por exemplo, descer de seu pedestal evolucionista-racista e, em paralelo, outras formas de comemorar/celebrar os povos indígenas e denunciar sua opressão poderiam ser produzidas.
Estátua equestre de D. Pedro I na praça Tiradentes, Rio de Janeiro
Retirar as referências de um passado sensível não nos deixaria com uma falta de “locais de memória” nas ruas? A solução, neste caso, seria a sua substituição e/ou convivência com novos monumentos aos grupos historicamente oprimidos e sub-representados, como mulheres, indígenas e negros. Mas é preciso pensar em que tipo de monumentos seriam esses.
Estátuas como selfies de celebrities
Segundo o crítico de arte britânico Jonathan Jones, derrubar estátuas é uma performance admirável, mas a ideia de substituir as estátuas derrubadas por outras de pessoas mais “merecedoras” da homenagem seria fruto de um pensamento artístico conservador. A estátua, para Jones, já não seria uma forma artística adequada para homenagens desde que Marcel Duchamp enviou um urinol para uma exposição de arte em Nova York. O mais adequado seria, então, dar espaço para que a arte contemporânea pudesse representar as vidas roubadas pela escravidão, pois a estátua reduz a história a apenas um rosto, um personagem, podendo apenas reforçar uma concepção simplista e conservadora de como a história acontece.
As estátuas, de modo parecido com as selfies, fazem parte de uma cultura de celebridades que não faz sentido para retratar horrores como a escravidão ou o Holocausto. De algum modo, a representação monumental dos personagens históricos parece evocar a concepção de um indivíduo linear, solar, sem falhas.
Considerando as cidades ou os países como grandes museus, precisamos pensar sobre as decisões em relação às seleções feitas pela curadoria que, em última instância, vai decidir sobre a relevância desse ou daquele objeto presente nestes espaços. Ou seja, estamos diante de figuras fundamentais nessas escolhas: os/as curadoras, que, no caso das cidades, geralmente são as autoridades políticas, mas que também podem ser pessoas comuns que reivindicam a inserção ou a retirada de um monumento.
Sobre essa questão o historiador Fábio Faversani nos lembra que, na Roma Clássica, a noção de cidadão era excludente, o que significa que as representações eram, apenas, de pessoas consideradas cidadãos importantes. Assim, a questão sobre quem deve ser homenageado com uma estátua ou com um monumento está diretamente relacionada ao fato de se ter reconhecidamente o direito a ocupar os espaços da cidade, isto é: quem, por algum critério de legitimidade, é reconhecido como cidadão. A cidadania, na nossa democracia contemporânea, deve ser abrangente, não porque sejamos todos iguais, mas justamente por sermos diferentes – e, por isso, é preciso reconhecer e escrever as várias histórias que constituem a nossa sociedade. A derrubada violenta pode ser reconhecida como a forma radical de determinados grupos sociais chamarem a atenção dos políticos e da sociedade em geral. A derrubada violenta faz sentido quando não há oportunidade de diálogo. É preciso reconhecer que as tradições não são boas por si mesmas, pelo simples fato de serem uma herança de nossos antepassados; elas são mutáveis e só permanecem vivas se formas capazes de atualizar nossa história (nosso passado-presente-futuro) a partir delas de modo plástico e criativo.
Alguns críticos consideram a derrubada e/ou atualização de estátuas um tipo de anacronismo, no sentido de que reduziriam a história ao universo de valores do presente. Não estaríamos tirando estes personagens de seus contextos históricos? Diante de tais questões devemos nos lembrar que o racismo não é algo do passado; ele ainda está presente e tem consequências significativas nas nossas vidas. Muitos dos personagens que são hoje alvo de crítica cometeram ações que mesmo em suas épocas poderiam ser consideradas infames, mas acabaram tendo suas memórias protegidas por suas ligações com os poderosos da vez.
Estátuas como forma de criar mitos
Apenas tornando a história menos eurocêntrica e heteronormativa é possível evitar que as extremas-direitas usem referências do passado como forma de recrutamento e propaganda, como se o passado fosse homogêneo e sem disputas. E isto não significa negar a história ou falseá-la; a pluralidade é uma realidade, basta trazer à luz histórias esquecidas ou suprimidas das várias nações e povos que formam a nossa sociedade.
A divisão entre aqueles que defendem o patrimônio a qualquer custo e os que gritam “deixa quebrar” só ocorre porque não há políticas públicas efetivas de monumentalização voltadas para a reparação histórica, como aponta, também, Fernanda Castro. Vale notar que em países como o Brasil há uma grande dispersão de autoridades com mandato que permite gestos de celebração e monumentalização. A emergência do bolsonarismo, por exemplo, acontece em “paralelo” a uma epidemia de medalhas e outras celebrações de aliados cujas biografias se confundem com uma vasta lista de crimes.
Assim, os protestos nos quais estátuas são derrubadas ou depredadas podem ser uma forma de manifestação que surge de situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando de que problemas graves não encontram políticas públicas adequadas.
Destruir estátuas por si só não tornará as sociedades menos racistas, mas deve servir de estímulo para a identificação do que deve ser feito, como o combate à violência policial contra negros, por exemplo, bem como a implementação de políticas públicas de memória e antirracistas. Além de políticas públicas cujo objetivo seja a redução da desigualdade socioeconômica dos negros em relação aos brancos. Cabe enfatizar que a normalização da violência é amplamente utilizada pelos grupos de direita, como vimos no caso da destruição da placa da Rua Marielle Franco, que se tornou um símbolo de extremistas de direita na campanha eleitoral de 2018. Portanto, é preciso entender o contexto e o sentido da destruição de monumentos antes de fazer qualquer juízo definitivo.
O historiador Marcelo Abreu nos chama a atenção para o fato de que a desigualdade social presente no mundo precede as estátuas e os patrimônios que buscam moldar as identidades nacionais. Por isso, embora uma estátua possa representar uma identidade local ou nacional, a revolta contra o racismo desses “heróis” homenageados transpassa as fronteiras, já que a desigualdade não está presente em apenas um país. Nessa direção, a luta contra todas as formas de opressão nunca deveria fugir do horizonte de todos e todas que formam e lutam dentro do campo progressista.
Se os lugares de memória existem para nos recordar, constantemente, de quem somos nós, é muito natural que o valor desses lugares se transforme com o tempo, na mesma medida em que a própria sociedade se transforma. Já não aceitamos o racismo como em tempos bem próximos, logo, não faz sentido que queiramos deixar para o futuro homenagens a pessoas que defenderam esta forma de discriminação e dela se aproveitaram. Lutas como essas podem ajudar para a construção de pautas comuns no interior do campo progressista. Disputas e divergências sempre haverá, mas é preciso não perdermos o horizonte do comum.
O que vemos hoje é a reivindicação, muito justa, dos grupos que tiveram suas memórias e identidades subjugados, o que faz com que se reconheça que a nossa sociedade é composta por variadas memórias e identidades – muito diferente do “povo brasileiro” homogêneo que defendeu, em sua “atualização regressista”, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, durante a famigerada reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020. Em sua análise, relativa a esse “povo” ao qual faz referência a extrema-direita brasileira, a historiadora Luísa Pereira escreve: “O verdadeiro povo seria formado pelo homem simples, cristão, conservador, heterossexual, casado, pai de família, provedor, empreendedor e patriota […]. O verdadeiro povo é, portanto, homogêneo”. Uma ideia de povo e heróis celebrados pela atual propaganda política desse governo para o 7 de Setembro este ano.
Os protestos atuais nos quais estátuas são derrubadas em nome da luta contra o racismo e o colonialismo são formas de manifestação que surgem em situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando. Antes de condenar, a cidadania precisa se perguntar sobre o que está errado e precisa ser feito.
Como afirma Adam Prezeworski, em Crises da democracia: “A persistência da desigualdade é uma prova irrefutável de que as instituições representativas não funcionam, pelo menos não como quase todo mundo acha que deveriam. Portanto, o avanço do “populismo” — resultado da insatisfação com as instituições políticas que reproduzem a desigualdade e não oferecem alternativa — não deveria nos surpreender”.
Assim, no dia em que os mais diversos brasileiros rememoram sua Independência não custa lembrar que enfrentar as diversas opressões e desigualdades que marcam esse país é um desafio que nosso passado nos legou e que deve ser assumido coletivamente.
*Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.
100 mil mortos. Uma ação chamada Lute apesar do luto aconteceu na manhã deste sábado em São Paulo, num momento em que chegamos à essa triste marca pela pandemia do novo Coronavírus.
32 cruzes pretas foram colocadas aos pés de cada mastro de bandeira do Brasil, que estão localizadas na ponte da Cidade Jardim, Marginal Pinheiros.
100 mil mortos. Num momento como esse, a pergunta é: porque as bandeiras do Brasil que estão por todos os lados, não estão a meio-pau? Não existe normalidade, quando chegamos a 100.000 mortos. Não existe.
Cada morte tem nome, história, trajetória, família, filhas e filhos, pais, avós, netas e netos, amigas e amigos, tem rosto, sorrisos apagados, marcas do tempo, da vida. Não podemos esquecer e achar que estamos a caminho da normalidade.
Não.
100 mil mortos. Um governo que nunca prestou solidariedade a ninguém, que brinca descaradamente com a situação que passamos, que inventa curas milagrosas com remédios cuja ineficácia é cientificamente comprovada, um governo que nem ministro da saúde tem, sem vergonha na cara de espinafrar a ciência, os próprios médicos, que incita a invasão e violência a hospitais, e deixa as populações mais pobres à sua própria sorte, sem medidas mínimas para combater essa pandemia com sabedoria e inclusão.
A tristeza se torna mais forte ainda, quando nem o luto de cada perda pode ser respeitado. Quando os mortos não podem ser velados, perde-se a despedida, o fim da trajetória, o recomeço, a memória e as lembranças.
100 mil mortos. Toda bandeira do Brasil, em todo o território nacional, deve ser colocada a meio-pau. Para lembramos sempre de quem não está mais entre nós, mas que merecem que nós sigamos lutando para que o Brasil não seja lembrado como o País que enterrou mais vidas em todo o mundo, por egoismo, negacionismo e incompetência de um Governo.
Paulo Cezar de Mello
23/05/18 at 15:55
Podiam ilustrar o artigo com uma foto da Sala São Paulo em vez do Teatro Municipal. No mais, será que a tal educação musical das pessoas comuns depende tanto do acesso dessas pessoas a lugares tão específicos? Por que não levar pequenos concertos de duos ou quartetos, por exemplo, à periferia da cidade? Ensinar na prática a se ouvir e reconhecer cada instrumento, cada timbre e ir de pouco em pouco mostrando como esses timbres se harmonizam até construírem uma grande sinfonia. Isso é educação musical. Não se preocupar com o comportamento “correto” dentro de uma sala de concerto consagrada por deuses que a gente sabe muito bem quem são.
Paula Matos
11/06/20 at 22:29
Excelente.
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