POR PRETOS, PARDOS E INDÍGENAS NA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, SIM!

Grafite de Mauro Neri na área de convívio de alunos da Faculdade de Medicina da USP: por cotas no curso mais disputado e elitizado do Brasil

 

Depois da histórica vitória dos estudantes e movimentos negros na conquista das cotas raciais no vestibular da Universidade de Campinas (Unicamp), o Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (CAOC – Centro Acadêmico Oswaldo Cruz) fez uma provocação necessária nos corredores do “porão”, a área reservada ao convívio de estudantes do curso mais disputado do Brasil.

Há uma semana, o local conta com um grafite de apoio à política de reserva de cotas para pretos, pardos e indígenas no ingresso à chamada “Casa de Arnaldo”, apelido do campus em São Paulo que faz referência ao médico Arnaldo Vieira de Carvalho, o fundador da faculdade de Medicina e, curiosamente, um dos principais entusiastas do movimento da eugenia no Brasil. Doutor Arnaldo foi defensor da teoria de “purificação das raças”, desenvolvida meramente para justificar o preconceito e o racismo, e também dá nome ao edifício de escadarias e colunas de mármore Carrara.

Neste prédio imponente, tombado pelo Patrimônio Histórico, o grafiteiro Mauro Neri estampou uma galeria de semblantes em diferentes tons de pele e feições raciais. O grafite acompanha palavras como “acesso”, “cotas sim ou não”, “quando”, “divergente”, “veracidade”, “inclusão”, “igualdade”, “marginalizados”, “dívida histórica”. É um marco.

Se falar de cotas afirmativas para toda a Universidade de São Paulo ainda é tabu, o tema é ainda mais abafado dentro da Faculdade de Medicina. No último vestibular, cada uma das 175 vagas do curso foi disputada por 75 candidatos no campus de Ribeirão Preto e 63 no da capital. “O curso de Medicina é tão resistente à adoção de políticas afirmativas que dos 42 cursos da USP é dos únicos, ao lado apenas do Instituto de Física, que sequer aderiu à possibilidade de incluir vagas de entrada na universidade pelo SISU, única via pela qual é possível instituir cotas na USP atualmente”, explica o estudante Deivid Déda Araújo Nunes, um dos diretores do CAOC.

Hoje, a Medicina da USP aplica apenas seu concurso vestibular, a FUVEST (Fundação Universitária para o Vestibular), que é regionalista no conteúdo cobrado, só aplicado no Estado de São Paulo e não oferece cotas. “Há apenas um sistema de bonificação que já se mostrou insuficiente”, diz Gabriel Chicote Guimarães, também diretor da nova gestão do CAOC, da chapa Mosaico, que volta a ter um caráter declaradamente progressista depois de quase 10 anos de gestões desmobilizadas.

Vale lembrar: o SISU (Sistema de Seleção Unificada) vale-se das notas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) para a entrada em universidades e é amplamente aceito em todo o país. A política do SISU possui duas modalidades de inscrição: por ampla concorrência (que vale todos os alunos indistintamente) e por reserva de vagas por cotas para alunos de escolas públicas, pessoas de baixa renda e estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Além disso, as universidades participantes do SISU podem oferecer vagas para suas próprias ações afirmativas, como por exemplo: pessoas com deficiência e quilombolas.

“Na minha turma de 175 pessoas há no máximo 10 negros. Essa falta de representatividade também se reflete no hospital. São pouquíssimos médicos, professores ou assistentes”, diz Pedro Santana, aluno do quarto ano que faz parte do primeiro grupo organizado de estudantes negros do curso. Ele conta que até em comparação com outras faculdades de Medicina, tanto do Estado de São Paulo como no país, a porcentagem de negros na USP é menor.

“É um obstáculo não se imaginar como aluna ou aluno dessa faculdade quando você está prestando vestibular. A imagem que temos de estudantes da FMUSP é de pessoas brancas”, diz a aluna de medicina Maira Mello de Carvalho. “No cursinho popular (Medensina) a porcentagem de alunos negros é absurdamente maior do que na graduação. Outro dia uma menina negra do Medensina veio falar comigo, pedir dicas e fez alusão ao fato de ambas sermos negras, aí eu relembrei que eu pensava o mesmo. Representatividade importa, sim. Se a gente não vê pessoas com quem nos parecemos em um lugar, tendemos a achar que não pertencemos a ele”, completa Maira.

Diante disso, os dirigentes do CAOC pleitearam e conseguiram uma primeira vitória: acabam de aprovar na Comissão de Graduação, que é a primeira instância para implementação da adesão da FMUPS às cotas, o pedido de inclusão de quase 30% das vagas de ingresso na faculdade pelo SISU. Isso representa 50 vagas, 10 delas para ampla concorrência e 40 reservadas para cotas. Destas, 15 são para alunos pretos, pardos e indígenas e 25 para alunos vindos de escolas públicas.

Passo importante. Mas só o primeiro. A proposta ainda vai passar pela Congregação da faculdade para ter êxito. A comissão é formada majoritariamente por professores. “É necessária uma pressão da sociedade para que se promova a inclusão social na USP. Essa problemática precisa urgentemente ser revista e reparada”, pontua Deivid.

“Apenas 5% dos estudantes se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas na faculdade”, afirma Gabriel. “No Hospital das Clínicas, onde passamos boa parte da graduação, há uma concentração majoritária de pacientes pretos e pardos. Eles oferecem os seus corpos para que a gente aprenda Medicina mas não estão entre os aprendizes”. Gabriel lembra que, como um microcosmo do Brasil, na faculdade negros são os prestadores de serviços, pessoal da limpeza, atendentes do restaurante. “Não estão entre os formadores de conhecimento”.

Foi ele quem convidou Mauro para fazer o grafite provocativo na instituição de excelência em ensino médico. “É uma contribuição a um público de maioria branca, com privilégios, que talvez não esteja habituado ou tratar dessas questões”, pontua o artista. “Essas imagens de negros e palavras que remetem à causa das cotas traz a esse cotidiano um repertório que é sabido mas é esquecido”. Ainda que o grafite não seja permanente e sua exposição seja efêmera, é impossível ser ignorado naquele corredor de acesso ao refeitório e sala de estudos do “porão” elitizado. “Foi muito bacana trazer a verdade para esse lugar”, diz Mauro. Que a Casa de Arnaldo receba, em breve, a devida visita dos ilustres brasileiros descendentes de escravos, mestiços e indígenas para dignificar ainda mais o exercício da Medicina.

 

Por Flávia Martinelli/Jornalistas Livres

Vídeo: Gustavo Aranda/Jornalistas Livres

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