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O feminismo da Globo é o feminismo que nos aprisiona

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Foi ao ar ontem a estréia do programa “Amor & Sexo” 2017 com o tema “Feminismo”. Feminismo entre aspas porque o feminismo vendido pela Globo não é verdadeiramente uma luta pela autonomia das mulheres sobre seus corpos e vida.

As citações do programa não terão as pessoas identificadas porque a reflexão é em cima da situação e não da pessoa. Não irei pessoalizar os discursos.

É importante pontuar que a liberdade sexual das mulheres serve aos homens. Liberdade não é sobre transar na primeira noite e sim sobre não querer transar e não transar. A mulher “livre sexualmente e sem tabus” é vista como vantagem pelo imaginário masculino e machista. A partir do momento que a mulher se nega ao sexo, ela “sofre as consequências” disso. Pros homens pouco importa se você se sente livre ou não, o importante é que ele faça sexo com você.

Dois minutos e quinze segundos foram dedicados a uma fala sobre regulamentação da prostituição. Ainda que não explorado, tratar deste assunto em rede nacional quando a TV aberta está presente na casa de 98% da população brasileira, é problemático. O tema foi pincelado e mostrou apenas um lado, assim fazendo a regulamentação parecer legítima e urgente. A regulamentação da prostituição não regulamenta a prática e sim a exploração realizada por terceiros, os cafetões, garantindo que eles fiquem com até 50% dos lucros da mulher em situação de prostituição. Quando se coloca uma posição favorável a exploração do corpo feminino em rede nacional, o feminismo sangra junto com todas as vidas perdidas por causa dessa violência.

Num determinado momento do programa, uma das convidadas fala sobre uma marcha “que todas saíram vestidas de vadias” e é importante perguntar o que é “se vestir de vadia?”. Ressignificar um termo pejorativo não retira o peso dele. Mulheres continuam sendo estupradas, machucadas e mortas enquanto são chamadas de vadias. A nudez do corpo feminino serve aos homens numa sociedade patriarcal machista.

A palavra “empoderamento” é usada com frequencia pelas convidadas para demonstrar a segurança que elas sentem quando não fazem o esperado pela sociedade – ou a falsa ilusão de que não fazem, como por exemplo, a falácia da liberdade sexual e da nudez sem tabus. Empoderamento vem de tomar poder, mas uma mulher não toma poder algum quando se vive numa sociedade estruturada pelo machismo e pela misoginia.

“Ajudem o machista senão vai sobrar pra vocês” – não é possível que essa frase tenha sido dito em tom de brincadeira num programa sobre feminismo. Isso nada mais é do que um exemplo da culpabilização da vítima. Mulher nenhuma é obrigada a ensinar o feminismo para quem as violenta.

Foi possível observar diversos “descuidos” do programa com a questão feminista que ficaram evidentes no momento em que foi dito que os homens precisavam ter o CARINHO de votar em mulheres – não é uma questão de carinho, as mulheres estão na luta por políticas públicas que as mantenham vivas e não em busca de carinho -, e quando foi citado que a “Clitonia”, personagem fictícia do programa, veio do espaço.

O programa tratou de forma caricata o feminismo e reforçou, disfarçadamente, mas não por coincidência, todas as formas de exploração da mulher.

A Globo não se interessa por feminismo, por representatividade e muito menos por assuntos polêmicos. O feminismo da Globo é o feminismo que nos aprisiona. Ontem o programa “Amor & Sexo” bateu 15,9 de audiência – isto é, uma audiência maior que 15 dos 24 programas diários da emissora. Os lucros movem a Globo. Se houvesse realmente uma preocupação da Globo sobre o assunto, o pedófilo do BBB 16 teria sido expulso, ou então, os atuais BBBs racistas já teriam sido retirados da casa.

A inclusão dos temas só interessa por causa do lucro. O programa que usou a representatividade como estratégia e sequer tocou na palavra lésbica, não está interessado na vida das mulheres – num geral -, nem das mulheres negras, nem das mulheres lésbicas. Está interessado apenas no feminismo que o capitalismo tratou de se apropriar.

Infelizmente a esquerda feminista vem pecando quando não faz um debate de forma ampla, atingindo a todas as mulheres e acaba sendo pautada pela Globo. A emissora com um currículo machista, misógino, racista e lesbofóbico cai na boca e na discussão de todo o movimento feminista, que o abraça prontamente. É preciso que nós pautemos as discussões e não fiquemos a mercê uma rede de televisão que sempre tratou as mulheres como objeto. A Globo se traveste de feminista e empurra pra debaixo do tapete os anos de exibição do corpo de uma mulher negra à venda, como carne. É impossível não se lembrar do programa “Cassino do Chacrinha” que, já nos anos 80, objetificava do corpo da mulher da forma mais machista possível. E não podemos deixar de mencionar que a Globo também fez parte da derrubada de uma presidenta legitimamente eleita.

Agora ela faz uma teatralização em cima de um palco e usa nomes fortes dos movimentos feminista e negro para passar uma imagem de que é a favor do feminismo e da libertação das mulheres. Mas na verdade, o “feminismo” da Globo é o feminismo que nos mantém presas.

 

Os Jornalistas Livres entendem que o feminismo contemporâneo contém múltiplas vozes. Nossas redes abrem-se a tantas inteligências que queiram compartilhar seus saberes e experiências para o fortalecimento das mulheres. É só mandar seu texto para: jornalistaslivres@gmail.com

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13 Comments

13 Comments

  1. Ligia

    27/01/17 at 20:00

    É isso.
    Colonizadores dão novas formas aos seus espelhinhos. Mas nunca deixam de usá-los.
    Obrigada por isso.

  2. C. S. Costa

    27/01/17 at 20:21

    Concordo com tudo o que está no texto! Mas acho que faltou falar sobre os pontos positivos do programa. Ele abordou feminismo negro, estatísticas de violência contra a mulher, não deixou os homens roubarem protagonismo das mulheres… Isso tudo é importante. Além disso, creio que ajudou a “descomplicar” o feminismo para pessoas leigas, especialmente mulheres que não estão familiarizadas com os debates sobre capitalismo, que não conhecem todas as vertentes feministas, que não têm acesso à informação. Eu sei que é difícil admitir isso, mas infelizmente o pensamento crítico a respeito do momento histórico do feminismo deixa muito a desejar na população em geral. A dona de casa, a trabalhadora assalariada… essas mulheres não têm a mesma bagagem de conhecimento sobre o tema que as mulheres (me incluo nesse grupo) que estão expondo uma opinião mais crítica sobre o programa. No mais, repito que concordo com o texto e enfatizo que foi um absurdo tratarem prostituição de maneira tão rasa (e conveniente para a manutenção do status quo). Uma amiga disse que não é a proposta do programa promover debates, o foco ali é entretenimento. Concordo. Mas é necessário fazer uma reflexão maior sobre a abordagem feita no programa – por que esse programa? Por que dessa forma? Por que não questionaram coisas realmente desafiadoras da ordem atual? As pessoas que questionam isso não estavam ali. E provavelmente nunca estarão. A gente precisa urgentemente tornar mais acessível esse conhecimento que tanta gente enche a boca pra chamar de elitista.

  3. Carla Carolina Moraes

    27/01/17 at 21:53

    Oi Martha!

    Gostei do seu texto, mas tenho um ponto de vista diferente.
    Eu concordo com muito do que você expôs, senão tudo.
    O que vejo além é a possibilidade de se tratar do feminismo em rede nacional, canal aberto e em horário nobre. É ver que esse tema entrou na casa de muita gente que não sabia nem o que é feminismo.
    Foi o ideal ou o mais adequado? Pode ser que não. Só que foi. Chegou pra muita gente que não tem essa informação porque não pode ou não quer.
    Deu importância, mesmo que falhando como você expôs, ao movimento.
    Eu considero importante.
    Tem que mudar muito, mas já é um começo.

    Beijos

  4. Nilda Costa

    27/01/17 at 22:15

    Muito boa a análise. Parabéns.

  5. Carlos Mizael

    27/01/17 at 22:20

    Excelente!!!!

  6. Geração Digital

    27/01/17 at 22:21

    Ratifico tudo! Quando se acha que a saída para o problema da prostituição é a sua legalização. Você esta confirmando que a mulher é tão incapaz que precisa vender seu corpo para sobreviver. O Brasil sempre mercantilizou e cosificou o corpo da mulher sem precisar usar a desculpa de estar em guerra civil.

  7. Li Parolini

    27/01/17 at 22:28

    Marta, mt obrigada por partilhar sua opinião! Sinto que não estou só na minha percepção. Publiquei o seguinte post pela manhã: “N tenho TV, e não assisti Amor e Sexo ontem. Mas li mts posts falando sobre; da importância da representatividade das mulheres, etc. e a presença de Djamila Ribeiro, Karol Conka, a diva Elza Soares, entre outras personalidades.
    E daí que pensei: quando a Globo abraça a pauta, há algo errado. Falar de representatividade e ignorar que recentemente uma presidenta foi retirada do seu poder legitimo; não mencionar Maria da Penha, que deu a origem a lei, num país que insiste no feminicídio e violência doméstica; entre outras coisas, é apresentar o feminismo como um “tema leve”, mais um entretenimento.
    Tal como querem, o discurso está sendo adequado ao sistema, ao consumo e prontinho pra ser assimilado, enquadrado e tb sujeito; enqto as causas fundamentais (das mulheres campesinas e indígenas por exemplo, ninguém lembra, né?) são completamente ignoradas.” Resultado: críticas e mais críticas. No entanto, penso que permaneço no lado atento da força ☺

  8. Batok

    27/01/17 at 23:22

    algumas das observações citadas haviam sido discutidas num grupo com amigas hoje. não tenho tv em casa e pouco vi do programa, no entanto o conteúdo do mesmo remete ao seu título [amor e sexo] discutir o feminismo nessa esfera é complicado, pois sabemos que é um leque de “problemas” a qual, nós mulhres, passamos diariamente. Para o programa em questão, achei os tópicos bem válidos, embora não tenha contemplado a classe lgbt; é um programa sobre sexo, então falar de prostituição, sexualização da mulher negra e liberdade do corpo casam bem com a proposta do programa > não daria pra abranger todas as causas feministas num curto espaço de tempo em um programa de tema específico. Não estou defendendo a emissora, que evidentemente visa lucro e manipulação, nem estou satisfeita com o resultado pois notei o despreparo de algumas das celebridades [no nível aceitável, talvez por falta de informação, afinal estamos todos no processo de desconstrução, não é mesmo?] mas para um nível de entretenimento “barato” ao menos uma mensagem razoável foi emitida.

  9. João

    28/01/17 at 0:55

    “A Globo se traveste de feminista e empurra pra debaixo do tapete os anos de exibição do corpo de uma mulher negra à venda, como carne”. Inegável, isso é um fato. Mas como vimos esse ano, eles mudaram totalmente a chamada do carnaval na TV. Não seria isso uma mudança de iniciativa? Não podemos ver isso como uma tentativa de reparar o que estava errado? Pior seria se mantivessem a chamada antiga.

    “É impossível não se lembrar do programa “Cassino do Chacrinha” que, já nos anos 80, objetificava do corpo da mulher da forma mais machista possível” Mais um fato, mas tenho uma “explicação” pra isso: o movimento feminista na época não tinha atingido tanta gente como hoje. Hoje as atrocidades são percebidas e denunciadas. Não estou dizendo que naquela época não havia quem notasse isso, mas o movimento feminista não era tão contundente, e a TV continuava expondo as mulheres. Hoje eles sabem. Hoje, na minha opinião, estão tomando consciência. Estão iniciando o reparo do que estava errado. Talvez ainda não do modo que vocês queiram ver. Que haja mais debates e divulgação de opiniões pra que a TV tenha mais conhecimento da maneira como devem tratar o assunto, mas eles começaram a tratar do assunto.

  10. Débora

    28/01/17 at 2:08

    Eu acho que é aos poucos que as coisas mudam, em muitas casas o tema feminismo nunca sequer foi debatido entre as pessoas. Aquilo é um programa de TV e não uma aula, não dá pra explicar feminismo assim, de uma vez, é completamente ilusório achar que isso aconteça, assim, de uma hora pra outra.
    Eu gostei do programa, já havia pensado sobre muita coisa ali, mas e quem nunca teve a oportunidade? Pela primeira vez eu vi, dentro da minha casa, as pessoas assistindo, escutando e dando ATENÇÃO. Não é ali que eles vão aprender tudo, mas já é uma começo. Problematizar tanto assim não é válido ao meu ver, é claro que por trás de tudo aquilo que pudemos assistir existe algo muito maior, mas vamos tentar olhar para o lado bom da coisa para que caminhemos para programas em horário nobre que realmente sejam efetivos e tragam discussões mais profundas.

  11. Gustavo

    28/01/17 at 2:47

    Esse programa é cheio de sexo-normatividade.

  12. Elisangela Fermaio

    28/01/17 at 7:25

    Texto Sensacional!

  13. Pingback: #ChegaDeAssédio e os padrões Globais – Singular

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LUTA ANTIRRACISTA PRECISA ACERTAR A ‘CABECINHA’ DE WILSON WITZEL

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Há anos a tática sobre segurança pública no Rio se concentra em operações espetaculares que resultam, de tempos em tempos, em um derramamento de sangue, com direito a traficantes, moradores de comunidades e policiais mortos.

O roteiro todos já conhecem. Unem-se policiais de diversos batalhões, eles invadem determinada localidade com poder de fogo muito superior, e terminam matando principalmente a ponta da cadeia do tráfico, a base da estrutura das facções, enquanto seus líderes comandam tudo de longe ou de dentro dos presídios, e no dia seguinte um novo comando paralelo se instala no mesmo lugar.

É uma máquina de moer gente. Mata-se loucamente, e no dia seguinte é como se nada tivesse mudado.

A situação é esta porque em certos locais do Rio a única chance de um jovem criado em situação de miséria comprar um tênis da moda é segurando uma arma que ele não sabe atirar direito. A parcela da população favelada que sobra do espaço da cidadania, por motivos que vão desde abandono familiar, déficit educacional ou imposição de terceiros, é seduzida por uma rede comércio ilegal que promete dignidade no contexto da extrema exclusão e sacrifica a vida destas pessoas como copos descartáveis.

São quase sempre jovens negros, no tráfico, na polícia ou nas casas vizinhas ao confronto entre eles. E suas mortes não comovem nem de perto tanto quanto o cãozinho morto na porta do Carrefour.

É assim desde que a abolição foi seguida pela recusa em absorver os negros no mercado formal de trabalho e a imigração de estrangeiros brancos para substituí-los. A pobreza se perpetuou a partir da negligência em gerar oportunidades e condições de vida saudável, e nela a criminalidade floresceu desde sempre.

Se soubesse da história do Rio, Wilson Witzel, o novo governador eleito no estado, que repete a palavra matar o tempo todo para agradar os ouvidos de uma classe média tanto preocupada com roubos quanto é racista, adepta de praias segregadas, odienta do funk, do samba e de pagode, faria algo para interromper a espiral macabra que corrói sua sociedade por dentro.

Alteraria o atraso social com políticas públicas inteligentes de ensino integral, cooperativas de trabalho, reforma do sistema penitenciário, investimento em tecnologia da informação e preparo de suas polícias. Enfrentaria o racismo com mais educação e cultura, e não faria coro com privilegiados que gostam de se remeter aos negros com termos tipicamente usados para animais, como “abate”.

Em 2010, o Rio viu Sérgio Cabral vencer Fernando Gabeira aproveitando-se, em parte, da crença de que o adversário era veado e maconheiro. Dali seguiu-se uma bandalheira que resultou, nos últimos anos, no colapso total das contas públicas. Já não há mais espaço de tempo para novos demagogos. E nem a população suporta mais mentiras no lugar de competência. Algo melhor que matar precisa vir à cabeça do novo governador. E eu sugiro que superar o seu racismo entranhado seja o melhor começo.

Por: Rodrigo Veloso – Colaborador dos Jornalistas Livres morador do Rio do Janeiro formado em Relações Internações

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OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

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Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke

 

O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.

Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.

Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.

Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.

Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?

A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.

Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.

Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.

Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.

Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.

 

Rodrigo Janot

Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.

Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.

26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.

A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.

Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.

Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.

Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.

Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.

Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?

Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.

 

Rogério Favreto

Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.

“Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.

Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.

Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.

Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.

Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.

Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

 

Marco Aurélio Mello

Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.

1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.

É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.

Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.

Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.

Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.

2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.

Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.

A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.

Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.

 

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Armai-vos uns aos outros

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Por José Barbosa Junior
O presidente da República Fundamentalista de Vera Cruz (antigo Brasil – porque agora nada pode ser vermelho), decretou nesta terça-feira algumas flexibilizações na Lei que regulamentava a posse de armas, o que, na prática, significa que ele liberou geral. A proposta anterior, de no máximo duas armas por cidadão, passou para quatro armas, sendo liberadas outras mais, conforme a necessidade apresentada pelo futuro portador.
Em resumo, a barbárie está liberada oficialmente em nosso país. “Cidadãos de bem” agora vão poder, finalmente, matar os bandidos que lhe atormentam a vida. Por bandidos leia-se pobres, pretos, pardos e párias, que de já tão coisificados, tornaram-se sem valor e pessoalidade em sua existência.
O que mais me choca, porém, é que Bolsonaro foi eleito e é apoiado, inclusive e principalmente nesta questão, por gente que se afirma cristã. Isso mesmo! Gente que diz seguir aquele nazareno marginal que afirmou que “bem-aventurados são os pacificadores, pois eles serão chamados filhos de Deus”, aliás o mesmo que afirmou que “quem vive pela espada, morrerá pela espada”.
Parece estranho. E é.
Mais estranho ainda porque em toda a campanha do atual presidente, ele fez questão de repetir o versículo que diz “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
A verdade é que a liberação de armas só gerará mais violência num país que respira violência.
A verdade é que mais mulheres serão vítimas de feminicídio, já que seus maridos machões agora poderão ter suas armas para suprirem seus outros fracassos.
A verdade é que mais LGBT’s morrerão nas mãos de homofóbicos que disfarçam seus preconceitos em discursos machistas e religiosos.
A verdade é que agora fica mais fácil planejar o suicídio, endêmico numa sociedade cada vez mais doente e adoecedora, refém de um sistema que empurra pessoas à depressão (sem contar as depressões que independem de fatores externos) e num país onde adolescentes cada vez mais se matam por conta de bullying e outras coisas mais. Ah! E sem falar no alto índice de suicídio entre pastores, tema cada vez mais recorrente nos últimos anos.
A verdade é que as brigas de trânsito, de bares, de baladas agora serão resolvidas na base do “quem saca primeiro”, porque com essa liberação a ideia de que o outro possa estar armado será sempre evidente e, entre ele e eu, é melhor que eu saque antes dele.
A verdade é que temos um governo violento, que ampara e incita à violência, que não esconde o prazer na tortura e na morte dos inimigos. Isso legitima e legitimará a barbárie!
Em nome da verdade… no governo mais mentiroso que já temos! E eu aguardo o dia da liberdade! Ela virá… mais cedo ou mais tarde!

*Teólogo e Pastor da Comunidade Batista do Caminho em Belo Horizonte.

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