Outro dia voltei a andar pelas ruas da Luz. Sozinho, hora do almoço. O sol gritava e lá no fundo, aquelas nuvens temerosas de tempestade. Nossa, o cheiro, os barulhos, os gritos, os latidos. Tudo continuava igual. E algo me deixava tranquilo. Aquele lugar, quem diria, me acalmou o medo da chuva. Passei no bar do seu Fernando, que ainda cuidava do nosso vaso-horta. Olhei para aqueles pinduricalhos que enchiam a vista. Tudo era familiar. Parei em frente ao paredão que criamos nos muros da Michelin. As fotos do Zeca, os microrroteiros da Laura, os lambes dos Paulestinos e do Coletivo Transverso, a frase do Julinho. Tudo lá.
Durante 2 anos, a casadalapa, coletivo que faço parte, participou ativamente do Programa De Braços Abertos, da Prefeitura da Cidade de São Paulo. Atuamos em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, num projeto único, um projeto piloto de convivência e vizinhança na região da Cracolândia, bairro da Luz. A Casa Rodante, nossa casinha.
Eu não participava do dia-a-dia do projeto, mas sempre estava lá. Cinema, teatro de sombras, sessão de fotos, Sarau da Pedra, mutirão, Blocolândia, brincadeiras, grafites, música, pinturas, vasos e hortas. Vivi tudo isso. E o pouco que vivi, mudou minha vida. Mudou a forma de ver o mundo. Mudou o que quero verdadeiramente da vida. Tudo mudou.
As palavras são redução de danos. Viver do melhor jeito que se pode, com dignidade, trabalho, Cidadania. Não dar as costas para o monstro. Enfrentá-lo, contorná-lo, controlá-lo. Viver junto com o monstro. E vencê-lo em cada batalha diária, em cada hora silenciosa, em cada por do sol. Conheci muitas histórias de enciclopédia. Vitórias, derrotas, memórias, conquistas. Conheci Badarós, a quem considero um parça de verdade. Um artista e ser humano incomum, que relaçou sua identidade e sua história. Entendi o que pode representar um convite familiar para um almoço esquecido de década. Um reencontro com a lembrança.
Hoje, chorei. Não era meu amigo, não jantei seus perus de natal, não participava de suas festas. Apenas o respeitava. Cada vez mais. Cada dia na Casa Rodante me fazia acreditar que aquele senhor forte, brabo, era um visionário. Não um visionário da ciência ou da tecnologia, um visionário de cidade. Um visionário da convivência humana. Conheci Lancetti em encontros de avaliação do projeto. Perguntei muito, ouvi mais, mas sempre foi pouco. Um certo mau humor típico dos visionários me fez ser econômico nos nossos encontros. Como somos bobocas frente à um universo que se abre em portais temporais, logo na cadeira ao lado. Mas a gente sempre acha que teremos mais uma chance. Por isso continuo chorando.
Lancetti era um personagem de batalhas heroicas de quadrinhos perdidos em uma pequena loja das periferias de Buenos Aires. Como Lancelot arrancando espadas de pedras ou como quixote a esmurrar moinhos de vento. Esse era o cara, que conhecemos em alguns momentos do nosso projeto Casa Rodante.
Lancetti criou a pedra fundamental do De Braços Abertos. Pedra sobre pedra, a convivência. E essa palavra nos atravessou todo santo dia que estávamos nas esquinas da Luz. E me atravessa todos os dias desde então, seja acompanhando a linha de frente em alguma ocupação de moradia, seja mirando minha câmera nas atrocidades policiais, seja colando imagens vizinhas nas paredes silenciosas da cidade.
Choro, porque talvez estejamos vivendo dois crepúsculos de dignidade e humanidade. Lancetti fechou seus olhos definitivamente hoje à tarde. E o programa De Braços Abertos sofre a indiferença e criminalização da nova velha Prefeitura. Choro, porra. Porque eu vislumbrei uma bela cidade, um futuro do presente, uma bela vizinhança, sem preconceitos, diversa e amorosa. Uma cidade de braços abertos.