Isabel Marques e Fábio Brazil, do Caleidos Cia. De Dança, falam com os Jornalistas Livres sobre democracia do corpo, pedindo arte nas escolas e relacionando Freire e Foucalt com a dança.
Jornalistas Livres – Por que arte nas escolas?
Fábio Brazil – Primeiro, acho que devemos ter e defender arte em todos os lugares; criação, fruição e reflexão sobre arte devem estar presentes sempre. Mas é verdade que nós aqui do Caleidos fazemos sim uma defesa da arte nas escolas e não como perfumaria no contra turno, ou como tapa-buraco em horário vago, ou aula relax numa grade repleta de matérias “mais respeitáveis”. Defendemos a arte como componente curricular, área do conhecimento e integrada ao Plano Político Pedagógico da Escola. Arte precisa fazer parte da formação de qualquer cidadão e nesse sentido, deve estar em todas as escolas e em todos os níveis escolares. Muito da confusão que se faz quando se pensa em arte na escola vem da ideia de que arte seja apenas “talento, inspiração e vocação” e sendo só isso, a escola teria muito pouco a fazer tanto pelo talentoso, inspirado e vocacionado quanto pelos “reles mortais”. Esses raciocínios são frutos do mito do “artista que nasce pronto”, que só serve para afastar a arte das pessoas e da sociedade de modo geral, isso só serve para isolar o artista e obscurecer a relação das pessoas com a arte. Não se trata de negar “talento, inspiração e vocação”, mas de pensar que arte é também e até principalmente: conhecimento, estudo e profissão – como a matemática e a língua inglesa – e também é uma forma de ler o mundo – como a biologia e a física.
Arte na escola é dar acesso a todos os estudantes a uma área do conhecimento e a uma forma de ler o mundo, e quem sabe até de interferir no mundo por meio da criação.
Isabel Marques – Infelizmente ainda existem muitas ideias equivocadas, preconceituosas e até mesmo ingênuas em relação ao ensino de Arte nas escolas. Em parte, isso decorre do próprio papel da arte na sociedade e de preconceitos e visões ingênuas sobre o artista. Um exemplo disso foram as manifestações favoráveis ao fechamento do Ministério da Cultura nos primeiros dias do governo (ainda interino) Temer. Tem-se a ideia de que artista não trabalha, “é vagabundo”, porque a Arte não “serve” para alimentar o sistema corporativo capitalista.
Talvez seja justamente este o valor da arte na escola e na vida das pessoas – a possibilidade de experienciar, refletir, ler o mundo com outras lentes que não sejam as lentes da funcionalidade, do pragmatismo, dos resultados, dos lucros, do consumo impressos como valores únicos e absolutos na sociedade capitalista.
A arte tem o potencial de proporcionar experiências de encontro, crítica, reflexão – a experiência estética – que permitem criar outras redes de conexão entre as pessoas que não são mediadas pela produção econômica.
Jornalistas Livres – O que relaciona arte e democracia?
Fábio Brazil – Há tantas relações entre arte e democracia que fica difícil escolher as mais importantes para elencar aqui. Podemos iniciar pensando de uma forma mais geral, arte é uma área do conhecimento e o conhecimento, para nós, é elemento estruturante da democracia. Acreditamos que a democracia seja tanto mais sólida quanto mais investimentos em educação houver; não podemos entender democracia sem que estejamos entendendo também a democratização do conhecimento em todas as áreas, e a arte tem que estar nesse pacote. Em termos mais específicos, cada linguagem artística, cada forma de arte está ligada a uma ou mais formas de construir estruturas de linguagem, ou seja, se pensarmos na dança, temos uma linguagem construída pelo corpo em movimento, mas há também o espaço sendo transformado, as relações entre os corpos dançando, a ação dramática daqueles corpos, a visualidade que provocam, a sonoridade com a qual dialogam e etc.
Enfim, fruir e perceber uma arte é ter uma experiência múltipla de linguagem, música muda a sensação que temos do espaço, poesia reconstrói as palavras e a sensação de tempo, ter acesso à arte é ter acesso à leitura de muitas linguagens e isso é transformador na leitura que fazemos do mundo, e ao lermos o mundo com clareza, profundidade e amplitude, nossa relação com o mundo se transforma e esse é um bom lugar onde se pode plantar a democracia.
Por último e talvez o mais óbvio: fazer, pensar, estudar arte nos coloca em contato com o outro e conosco ao mesmo tempo; ler um poema, por exemplo, é ouvir outra voz dentro de si, é falar de si por meio das palavras do outro, é encontrar-se encontrando o outro – arte é um espaço de partilha cognitiva – nesse sentido, fruir arte talvez seja viver no corpo a ideia de democracia.
Isabel Marques – como o Fábio já disse, a primeira conexão é uma questão de direitos – todos têm, em uma democracia, o direito à arte, à Arte na escola, como conhecimento. Em primeiro lugar, o acesso é importantíssimo (não só oportunidades de fruição e visitação, mas também políticas públicas que garantam a gratuidade de acesso a museus, espetáculo, shows etc) – e esse já é o primeiro passo para a democratização da arte; mas isso não basta, é preciso ter conhecimento para realmente desfrutar o que a arte pode oferecer, caso contrário afastaremos a população das diversas manifestações artísticas (da arte contemporânea, por exemplo) e deixando-a à mercê das mídias e do mercado – o fenômeno Romero Britto é um exemplo disso. Precisamos aprender a ler as diversas manifestações artísticas para não cair nos julgamentos simplórios, nas experiências mediadas somente pelo senso comum. Sem conhecimento não há acesso de fato à arte. Estamos vislumbrando hoje um fechamento desse processo de democratização do acesso à arte e ao conhecimento, pois volta velozmente a ideia de que arte é talento e, portanto, para poucos. Isso é um retrocesso enorme. Veja por exemplo a entrevista de Bia Dória, onde afirma que a “arte arte” é a única que vale – a arte clássica, ela quis dizer.
Do mesmo modo, a Arte está correndo o risco de sair da Escola, conforme a MP 742 que propõe a reforma do Ensino Médio – justifica-se que a arte não é importante para a formação do “jovem trabalhador”.
Jornalistas Livres – O que é democracia do corpo?
Fábio Brazil – É antes de mais nada reconhecer que há um corpo, reconhecer que somos um corpo (ao contrário de possuirmos, de termos um corpo), reconhecer que corpo não é um dado definitivo, reconhecer que corpo é construção social, reconhecer que corpo é espaço de conflito e combate histórico-social, reconhecer que corpo é cruzamento de culturas, ideias, percepções, ideologias e sensações, reconhecer que corpos constroem e vivem relações e reconhecer que corpos produzem significação e reagem a elas.
Pensar uma arte, no nosso caso a dança, que se produza no corpo e em vez de anular e sublimar tudo isso que o corpo é e pode realizar, uniformizando e doutrinando os corpos, mas pelo contrário, uma arte onde o corpo em toda a sua singularidade e sua potência possam estar em cena, todos os corpos, corpos dos bailarinos e do público dialogando e construindo relações de maneira ética e propositiva, isso, para nós, é viver no corpo a democracia.
Isabel Marques – Pensar o corpo em estado democrático é acreditar que todos os corpos têm o potencial, sobretudo, de criação. É muito comum na área de dança pensar a democracia do corpo somente como oportunidades de fazer aulas, de dançar, como, por exemplo, levar o balé clássico (dança dita das elites) para populações de baixa renda. Acreditamos que o processo de democracia do corpo vai além disso, experienciar democracia do corpo é perceber e entender que cada corpo, devido a suas construções, como disse o Fábio, é uma potência de criação singular, própria e, portanto, tem um potencial de transformação pessoal e social.
Paulo Freire sempre dizia que a cultura consiste em criar, não em repetir. Aulas de dança com base somente na cópia, principalmente se esta cópia for silenciosa, mecânica e passiva, tem poucas chances de trabalhar rumo à democracia do corpo.
A democracia está, no nosso entender, conectada à singularidade, à possibilidade de convívio e diálogo entre as diferenças (diferentes corpos).
Jornalistas Livres – O que une dança, Freire e Foucault?
Isabel Marques – Há muitos anos estamos pesquisando esse diálogo entre a dança/arte, o pensamento de Paulo Freire e alguns princípios de Foucault. Paulo Freire nos ensina a importância da dialogicidade e da problematização no processo de conhecimento e construção da sociedade. Aliado a isso, trabalha com a noção de consciência crítica e participação transformadora no mundo em que vivemos.
A meu ver, isso dialoga com a teoria de Foucault no que tange à educação institucionalizada de corpos dóceis, passivos, obedientes, submetidos aos micropoderes sociais.
Acreditamos que processos de educação dialógicos, problematizadores e críticos (propostas freirianas) possam e, portanto, participantes, conscientes e propositivos.
Jornalistas Livres – Como o Caleidos conversa com esses conceitos?
Isabel Marques – No trabalho do Caleidos Cia. De Dança – assim como nos cursos, pesquisas e eventos do Instituto Caleidos – há 20 anos trabalhamos com essa perspectiva da arte como conhecimento e linguagem capaz de dialogar com o mundo de forma propositiva, participativa, dialógica e crítica. Nossos trabalhos, costumamos dizer, não são para o público, mas essencialmente COM o público. Não são demonstrações de virtuoses e sim construções cênicas que convidam o público a interagir e a descobrir, cada um, suas próprias possibilidades de dançar, criando, portanto, de diálogos consigo mesmo, com os outros e com a sociedade.
Abraçamos as propostas de problematização e diálogos corporais para que todos, indistintamente de habilidades físicas, idade, constituição corporal, conhecimento de dança, etnia, classe social, gênero possam dançar, e dançar juntos, recriando as propostas dos artistas em cena.
Estamos há vinte anos pesquisando processos de interatividade que sejam não somente respeitosos às diferentes possibilidades corporais na cena, mas principalmente, que estimulem o potencial de criação e construção artística de cada um. Esta pesquisa sobre linguagem e interatividade com a série dos espetáculos “Coreológicas” em 1996 e tem se desdobrado em outros espetáculos como o “Tria”, de 2014 e o mais recente espetáculo, o “Coreô”, de 2016. Outros espetáculos da cia como Mapas Urbanos (2011), Ares Familiares (2009), Para o Seu Governo (2012) e Via Urbis (2016) também são interativos, propondo, além da experiência com a dança em si, reflexões sobre nossos cotidianos – Via Urbis, por exemplo, é encenado nas escadarias, propõe uma caminhada por estações da cidade (temáticas relevantes da cidade como o papel dos políticos, a violência contra as mulheres, o lixo etc), o público faz parte da Via Urbis.