Um tiro na Av. Rio Branco

 

Domingo, 3 de maio de 2015. Uma final de campeonato toma conta de boa parte da atenção dos paulistanos.

Na avenida Rio Branco, precisamente no número 47, não foi diferente. Moradores de uma ocupação da Frente de Luta por Moradia, humanos que são, também tinham seu foco na televisão.

Um churrasco acontecia em frente ao prédio.

Por volta das 18h, campeonato encerrado, uma confusão, um tiro. Um morador alvejado pela PM, inúmeras informações desencontradas e uma certeza: já não somos tão humanos assim.

A reportagem dos Jornalistas Livres chegou ao local por volta das 18h30, ainda em tempo de ver um morador sangrando ser levado de ambulância ao hospital. Não são imagens que precisam ser mostradas. A violência já se impõe de modo suficiente, não é necessário ilustrar.

Quem conta, brevemente, o que ocorreu é Danilo, um dos coordenadores da ocupação que estava presente no momento dos fatos:

Teve uma discussão por conta da final do campeonato. Uma viatura que estava passando parou. O PM saiu já com arma em punho, mandou o Sidney deitar no chão. O Sidney disse que não precisava de nada daquilo, que era todo mundo trabalhador. O PM deu um tiro na virilha dele.

Nada é tão simples, quando se trata de humanos. Danilo, a testemunha cujo sobrenome será preservado, fala de Sidney Ferreira Silva, 32 anos, coordenador da Frente de Luta por Moradia (FLM) e filho de Cármen Silva, uma das dirigentes do mesmo movimento.

Danilo entrou na FLM por iniciativa da própria Cármen. À época estava preso, prestes a ser liberado e não sabia para onde ir. A FLM, como já fez com tantos outros, o acolheu.

Danilo conhece bem a violência. Perdeu boa parte da família ainda quando morava no Rio de Janeiro, vítimas de queima de arquivo. Nada é tão simples, quando se trata de humanos.

Sidney, atingido na virilha por uma bala policial, foi encaminhado à Santa Casa de São Paulo, local próximo da ocupação e que pouco tempo atrás estava com a emergência fechada por conta da má gestão do governador de São Paulo. O mesmo governador que cuida da PM.

Noite adentro, Cármen conta melhor o que ocorreu. Sidney, seu filho, estava alcoolizado no momento dos acontecimentos. Ela própria fora chamada ali para acalmar uma briga entre ele e outro morador.

E enquanto Cármen tentava saber como estava seu filho — os médicos não falaram com a mãe da vítima até aquele momento — sou abordado por outro Danilo.

Danilo Martinelle também estava na Av. Rio Branco quando o tiro foi dado. Ele é responsável pela triagem das famílias que ingressam (ou não) à FLM e estava preocupado se eu havia jantado.

Danilo contou, enquanto fazia questão de pagar pela minha comida, que já não conseguia dormir tranquilamente de noite. Estava chocado com o massacre do Paraná. Inconformado que os PMs de lá não se recusaram a baixar as armas.


É tanta coisa acontecendo todos os dias. A gente aqui faz tanto, mas tem hora que parece que não fazemos nada

De volta ao hospital, Cármen Silva ainda não conseguia informações sobre o estado de saúde de seu filho. Os médicos nada falavam a ela, sequer permitiam a entrada da mãe na “sala” onde seu filho era atendido.

A PM, ao contrário, não encontrava dificuldade nenhuma em entrar para falar com quem quer que fosse. Mas foi a própria PM quem, voluntariamente, fez questão de dar notícias àquela mãe angustiada. Nada, nada é tão simples quando se trata de humanos.

Sidney estava com duas facas na mão no momento do tiro, revela a cabo Ferreira, responsável por colher o depoimento de Cármen sobre os ocorridos.

Ele estava com a faca do churrasco. Eu cheguei e dei uns tapas nele. Não sou mãe de aceitar essas coisas. Mas o policial não precisava atirar. Ele estava com os braços levantados, longe do policial quando levou o tiro.

Sidney estava com os braços levantados, mas com duas facas na mão. A PM alega que ele foi para cima do policial, ameaçando. Difícil de acreditar, se a própria mãe, ao lado dele, estava dando tapas no rapaz de 32 anos. Mas, se Sidney não é agressivo, por que segurava as duas facas? Se ele é agressivo, por que não tocou na mãe ou nos companheiros de ocupação quando estes tentavam o acalmar ? Não é simples. Não quando se trata de humanos.

Os moradores que viram toda a cena ainda questionaram o PM “por que não atirou para cima?”, a resposta do Soldado Mota ? “Não existe tiro para cima. Existe tiro certeiro.

Soldado Mota provavelmente tem mulher, filhos, família. Provavelmente teve medo.

Mas atirar, com tanta gente por perto ? E as tais armas não letais ? E a calma para lidar com a situação ?

A delegada que atendeu ao caso, Elizabeth da Silva C. Galvão — que no hospital se recusou a falar com a reportagem, com a Cármen e com o advogado Dito — ao chegar na delegacia e ver as câmeras da Record e do SBT presentes, de súbito tornou-se educada. O ego também é uma característica humana, afinal.

Elizabeth, agora atenciosa, encaminhou o caso à corregedoria. O boletim de ocorrência consta a mesma versão que as periferias do país estão cansadas de ler: resistência.

Segundo o Soldado Mota, Sidney teria ido para cima dele por diversas vezes, ele foi obrigado a dar o tiro para se defender. Segundo os moradores ouvidos pela reportagem Sidney foi na direção contrária à viatura. Levantou os braços e teria dito: “você vai me matar? Me mata então”.

É possível que o preconceito — outra característica intrínseca aos humanos — tenha feito o Soldado Mota pensar que aquilo de fato ocorreria.

O que não é possível é acostumar-se com tanta violência. Com tão pouca humanidade. Ou melhor, é possível, já disse alguém, certa vez: o insuportável é que tudo é suportável.

Mas não devia.

Em tempo: Cármen Silva entrou em contato com a reportagem para avisar que seu filho passa bem e teve alta.

 

 

 

 

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