Meus dias de índio no Alto Xingu se furtaram à data prevista, adiando-se aos atrasos da chegada de valiosas doses de vacina que serão, em sua rotina e ciclos anuais, levadas à terra indígena do Parque por enfermeiras que acompanho em expedição de imunização. Nesses dias de refluxo sigo vagando na pequena cidade de ruas imensas, como se várias avenidas Paulista e desertas se sucedessem no espaço urbano da jovem cidade de Canarana, no Estado de Mato Grosso. O município é um desses que se fundaram no nada, durante o regime militar, em região de pura mata que vai rendendo o cerrado na transição para a poderosa e cobiçada floresta amazônica.
Um inesperado convite me veio na noite de sábado de um amigo jovem e forte índio Kamaiurá, vendo em mim um certo desconsolo com a monotonia da cidade. Sugeriu-me para ir assistir a um jogo de futebol no domingo com seus amigos. Eu, que nunca fui de bolas, não me excitei tanto com a proposta, mas considerei a possibilidade. Leonardo, técnico em enfermagem, passou a me contar as qualidades do jogo que ocorreria, e logo me despertou grande interesse pelo evento.
A partida seria entre o Xingu Clube Futebol, formado por índios Kamaiurá, Kuikuro, Yawalapiti, Kaiabi e Matipu, contra o adversário Culuene, time composto por moradores da mesma localidade, um distrito de Canarana a 50 quilômetros de distância. No domingo às 13 horas foi marcado o encontro com o time, numa praça local, para embarcar no micro-ônibus escolar que nos levaria ao campo do distrito de Culuene para partida válida pelo Campeonato Municipal Amador da 1ª Divisão, devidamente registrado na Federação de Futebol.
São 13 horas e o sol está a pino a esquentar tudo que não tem sombras, por isso ficamos sob as árvores da praça e o antigo avião suspenso no ar em colunas de concreto, objeto público que orgulha os sulistas e desnovela a senda dos povos tradicionais. O atraso do ônibus motiva os jogadores indígenas, “isso é bom, pois faz a gente chegar com raiva”, diz um deles provocando risos. Quando partimos o pequeno ônibus se enche de motivação e a alegria se intensifica em piadas de línguas indígenas que nada entendo, mas o humor é algo que não necessita tradução. O veículo segue apressado no asfalto que finda, longo caminho de terra batida por duas horas nos levarão para Culuene.
Chegamos. O time xinguano, sério agora, vai em bloco procurar o parco vestiário. Eu a rodear o campo logo conheço Toni, pequeno garoto de 10 anos, descalço e sem camisa, que livre me diz: “sou o gandula e vou ganhar dez reais”. Sem que eu tivesse tempo de prosseguir o diálogo ele se arvora num pé de manga próximo. Vou ao vestiário onde o time do Xingu se aperta já na troca de roupas e em um idioma comum falam algo que lembra música, algo que une o time na vontade de vencer.
A partir daqui começa a se evidenciar grandes diferenças no comportamento e rotinas dos times. Enquanto os índios vão ocupando o campo em exercícios físicos, o time local segue em roda orando seu pai nosso. A população local vai se aglomerando em volta do campo trazendo suas cadeiras domésticas.
Uma gente morena de sol, donas de casas e do campo e seus filhos, homens com seus chapéus e muito trabalhador de roça e suas latinhas de cerveja e as moças bonitas. Ao apito do juiz é a garra que se mostra nessa gente toda. Sem grandes problemas ou expulsões o jogo é ágil e intenso, jogo bom de ver onde a bola não pára e os homens tremem o chão.
Me chama a atenção a torcida que não raro deixa evidenciar sua parcela de preconceito ao índio, com ironias nada amigáveis quando o time local recebe ou faz gols. Quatro a quatro será o placar de meu programa de índio, um empate que simboliza mesmo o encontro desses povos que aqui dividem a terra,costumes e pretensões.
Na satisfação final do empate todos se cumprimentam e a torcida recolhe suas cadeiras e partimos para casa. Já noite caindo no ônibus sigo pensando no pequeno gandula Toni, feliz por seus dez reais e um país todo pela frente, ainda.