Foi bonita a festa da Frente Ampla na avenida 18 de julho, ontem à noite, em Montevidéu. Não foi a vitória desejada já no primeiro turno para anular o poder de uma aliança conservadora e temerosa na “segunda volta”, marcada para 24 de novembro. Mas foi uma vitória e assim deve ser respeitada. As vibrantes multidões de eleitores da esquerda nas ruas de Montevidéu logo após as preliminares não autorizam nenhum partido, analista ou meio de comunicação a tirar do povo uruguaio o valor dessa conquista. Os uruguaios frentistas comemoraram o favoritismo de Daniel Martínez e Graciela Villar junto com o triunfo de Alberto Fernandez e Cristina Kirchner no primeiro turno das eleições presidenciais da Argentina como degraus diferentes de uma mesma felicidade cívica.
Aparentemente alheios ao temor que palpitava no peito de cada líder da frente, os eleitores ovacionaram a dupla Martínez e Villar, agitando as bandeiras dos 40 partidos que formam a maior e mais duradoura coalizão de esquerda hoje na América e no mundo. Os eleitos receberam a paixão uruguaia de sempre, paixão de quem não esquece a luta dos antepassados. Mas a vantagem de menos de 11 pontos de Daniel Martínez sobre o segundo colocado, Luís Lacalle Pou, do Partido Nacional, habilitando ambos para o segundo turno, não dá razão para tranquilidade ou confiança para a esquerda na “segunda volta”. Especialmente após chegarem as notícias sobre as agremiações conservadoras que já começaram a se armar ontem mesmo nos subterrâneos da direita uruguaia. O apoio imediato do ultra conservador Guido Manini, e também de Ernesto Talvi, do Partido Colorado, aumentou a incerteza dos frentistas no segundo turno.
“Temos que trabalhar muito e dialogar muito”, disse Martínez aos Jornalistas Livres, quando se dirigia para o pavilhão da imprensa, nas imediações da avenida 18 de julho, no centro de Montevidéu, para fazer seu primeiro pronunciamento. Ao identificar nossa nacionalidade, o candidato parou, nos abraçou e desejou: “Feliz aniversário ao querido presidente Lula!”. A liberdade de Lula foi muitas vezes cantada nas manifestações da vitória. O refrão “O povo unido jamais será vencido!” ecoou a consciência da unidade latino-americana pela defesa de suas riquezas e soberania dos povos.
Por volta das 19h30, quando as primeiras parciais confirmaram a liderança de Martínez sobre Lacalle no primeiro turno, milhares e milhares de uruguaios já comemoravam na avenida com a mesma empolgação da esquerda desde a primeira vitória da Frente, em 2005. À medida que a distância entre ambos era superada pela soma dos candidatos à direita, a vitória foi ganhando um sabor ambíguo. A cúpula se retirou mais cedo do palco da festa, que sequer foi pisado por Pepe Mujica e sua esposa, a atual vice-presidenta Lucía Topolanski, eleitos a senadores com uma votação histórica.
Com o resultado das urnas tornando mais árdua a conquista do quarto mandato das esquerdas uruguaias no segundo turno, a grande vitória nas eleições do Uruguai foi a derrota do plebiscito da Reforma Constitucional relativa ao projeto de combate à criminalidade “Vivir sem Medo”. Foi, ao menos, a única vitória consolidada. Projeto de autoria do senador Jorge Larrañaga, do Partido Nacional (Branco), o pacote é considerado pela maioria como a preparação do terreno para a militarização do governo. O projeto cria uma espécie de guarda nacional, com poderes para prender sem mandado judicial, fazer buscas no período noturno, prendendo pessoas suspeitas dentro de casa, entre outras medidas. Uma espécie de “pacote anticrime”, focado no policiamento que, na prática, daria aos militares amplos poderes de repressão.
Nas ruas, a população assinalava a compreensão da importância da derrota desse projeto, reprovado por 54% da população. Durante a comemoração do resultado da Frente, eleitores gritavam: “Não à reforma, o medo não é a forma!” e “Militares nunca mais!”. A repulsa à criação dessa guarda nacional predomina entre as pessoas que vivenciaram a ditadura e a juventude politizada. É o exemplo de Lise Moreno, de 16 anos, que votou pela primeira vez e viveu os horrores do governo militar através da memória dos pais e se disse satisfeita principalmente com a derrota do plebiscito. “Não queremos militares outra vez no poder”.
O projeto ganhou corpo com o apelo da direita ao tema da criminalidade, martelado pela mídia conservadora a ponto de criar o ambiente de uma crise de segurança. É como se o Uruguai, eleito recentemente como um dos países mais acolhedores do mundo, tivesse os índices de violência das metrópoles mais conturbadas, o que não parece corresponder à realidade e à opinião de turistas e moradores entrevistados. “Experimentamos um aumento do número de roubos, mas estamos longe de ser uma nação violenta”, assinala Suzana Rodrigues, 57 anos, psicóloga, opinião partilhada por Gustavo Area, recepcionista de um hotel no Centro de Montevidéu. “Para mim, que tenho a vivência do Rio de Janeiro, essa visão sobre a segurança do Uruguai soa muito exacerbada”, afirma a carioca Rosana Câmara, que se mudou para o Uruguai com o impeachment de Dilma Rousseff.
O resultado do plebiscito indica que, na opinião da maioria, o combate à criminalidade era apenas um cavalo de Tróia para ir minando por dentro a sociedade democrática instaurada no Uruguai a duras penas após o processo de redemocratização, findo o período de uma década de autoritarismo e violência de Estado (1973-1984). “Para nós, fica claro que a questão da segurança era apenas um subterfúgio para os militares começarem a tomar o poder, instaurando o medo e a repressão em nome do combate ao crime”, afirma Luís Hector Oliveira, que foi preso, torturado pela Ditadura Militar e teve que deixar o país em 1973 para viver clandestinamente no Brasil até a anistia, em 1984.
Professor de história em escola pública, Luís viajou de ônibus do Rio de Janeiro, onde vive desde então, até o Uruguai para votar e pretende trazer outros companheiros no segundo turno. “Essas eleições são muito importantes para garantir o projeto de aprofundamento da democracia das esquerdas e de desenvolvimento econômico com distribuição de renda e justiça social”.
A derrota do plebiscito é, por ora, a única segura, mas se pode dizer que também é relativa. Ela pode retornar através de outros caminhos, como os acordos que Luís Lacalle Pou já está acenando com a direita mais extremista, representada por Guido Manini Rios, do Cabildo Abierto, considerado o Bolsonaro uruguaio, defensor da tortura e de um governo militar, como lembra Heber Pacheo, 57 anos, empregado do comércio, que também veio do Brasil para votar. Embora tenha chegado ao quarto lugar, Manini continua sendo um azarão com peso decisivo na reconfiguração de forças para o segundo turno.
Ontem mesmo, Lacalle afirmou que, na reconfiguração das forças para a disputa final, daria o posto de ministro da defesa para o ex-militar. “Uma posição estratégica no sentido de reinstaurar a repressão política sob o argumento de melhorar a segurança”, acrescenta Heber, que inclusive se diz assustado com a margem de reprovação do “pacote anticrime. “Eu esperava que muito mais da metade da população se manifestasse contra, depois de tudo que vivemos no Uruguai”.
Para crescer ao menos 5%, a esquerda aposta nas dissidências internas de setores do partido Colorado que, embora defendam uma economia neoliberal, não compactuam com a participação de Manini pela ameaça que ele representa à democracia. Entre os nove candidatos, apenas os quatro primeiros colocados apresentam uma soma significativa de votos. Todos os demais somam juntos 7% das urnas e apenas um, a Unidade Popular, centrada no trabalhismo, se identifica como força de esquerda dissidente da FA, que pode recompor uma aliança para o segundo turno. Com a pequena margem de votos em branco, num país marcado historicamente pela polaridade partidária, as chances de virada estão mesmo nos ventos insurgentes da América Latina, Europa e Oriente. E nas atitudes grotescas de referências de direita como Bolsonaro, impalatáveis até mesmo para os brancos e colorados.
MENOS DE UM MÊS PARA LUTAR PELA VIRADA
Até o dia 24 de novembro, data da “segunda volta”, a coalizão de esquerda terá que se superar para chegar ao quarto mandato. Será preciso adotar uma estratégia de “conversação e diálogo” com todas as agremiações, na tentativa de romper o muro da direita, como afirmou o próprio Martínez, ao fazer seu primeiro pronunciamento oficial, às 21 horas, no Comando da Campanha da Frente, no Hotel Crystal Tower. Martínez alcançou 39,17% dos votos, contra 28,59% de Lacalle, do Partido Nacional, que somados aos 12,32% de Ernesto Talvi, do Colorado, e 10,88% do ultraconservador Guido Manini, do Cabildo Abierto, apontam para uma nova disputa das mais árduas e temerosas da história. Os votos, depositado em papel nas urnas, são apurados de forma muito rigorosa pela Corte Eleitoral, sem acesso aos políticos ou membro dos partidos, e comunicados oficialmente por etapas a cada parcial.
Longe de ser confortável, o resultado confirma que o Uruguai, apesar dos enormes avanços econômicos e sociais promovidos pelos três governos da esquerda, não ficou imune à onda fascista e neoliberal na América Latina. Tanto no Brasil quanto no país vizinho, o discurso reproduzido por taxistas e setores afetos ao sistema da pós-verdade é o mesmo contra o conclamado Foro de São Paulo, a suposta corrupção da esquerda, o avanço do comunismo, a ideologia de gênero e o caos urbano, pretensamente deflagrado pela proteção aos direitos humanos. Um taxista tentou nos convencer dessas teses impondo-nos na viagem até o Velódromo um vídeo no estilo Olavo Carvalho. A tecnologia social de Steve Bannon difunde pelas listas de whatsapp e pelos vídeos do YouTube afirmações caluniosas que não precisam de provas para virar verdade. Nem Pepe Mujica, que cultua uma vida franciscana, nem o presidente Tabaré Vásquez, que enfrenta o câncer avançado no pulmão com uma dignidade comovente, são poupados das fake news.
Se as lideranças estavam apreensivas, o povo uruguaio mostrou confiança na capacidade histórica da Frente de se agigantar para enfrentar com dignidade a maior aglomeração de direita desde sua primeira vitória em 2004. Martínez e Graciela Villar, a líder feminista e popular, receberam no palco em frente à Intendência de Montevidéu, toda a coragem e amor cívico para fazer esse percurso.
ESQUERDA PERDE MAIORIA PARLAMENTAR
Tão importante quanto as eleições presidenciais, foram as eleições parlamentres realizadas no dia de ontem para 30 senadores e 99 deputados federais. Hoje, a frente de esquerda tem maioria parlamentar, mas dentro de uma relação de coalizão muito relativa, sempre exposta à renegociação. O quadro de distribuição de parlamentares por partido mostra que não haverá maioria parlamentar no próximo governo. Com três senadores a menos, a Frente Ampla, fez 13 parlamentares na Câmara Alta, enquanto o Partido Nacional fez 10, o Colorado 4 e o Cabildo Abierto 3, cargo conquistado pela primeira vez por esse partido criado para a disputa. Na Câmara Baixa, a FA perdeu nove deputados. Embora também tenha obtido maioria simples, perde para a soma dos parlamentares de direita.
Entre os mais célebres senadores eleitos estão o ex-presidente José Pepe Mujica, que volta ao Parlamento aos 84 anos pelo Movimento de Participação Popular (MPP), com mais de 281.542 dos 99,96% dos votos apurados. Sua mulher, a Lucía Topolansky, vice-residente do governo de Tabajaré Vásques, também se elegeu. O MPP é uma das 40 sublegendas que integram a Frente Ampla, assim como o Progressitas, que fizeram 87.132 votos com a eleição de Mario Bergara para o senado, seguido pela corrente Artiguisa, que elegeu Álvaro García e Cristina Lustemberg, com 35.881 votos.
Esses grandes líderes, herdeiros dos bravos Tupamaros, que enfrentaram a fúria da ditadura, vão mobilizar agora toda o seu para carisma para mostrar ao povo uruguaio a armadilha da união entre neoliberais e fascistas. Ao mesmo tempo, precisam mostrar a ameaça concreta que essa aliança representa para um país que reduziu a pobreza de 38% para 8%, elevou o salário mínimo para R$ 1.600,00, investiu na tecnologia, na educação, na erradicação do analfabetismo e no desenvolvimento econômico com distribuição de renda. “Aqui o desenvolvimento econômico e tecnológico não tem por objetivo a concentração de renda entre os mais ricos, mas o crescimento de todos com a diminuição das desigualdades sociais”, como afirmou Javier Miranda, presidente da FA, em entrevista aos Jornalistas Livres.
Para a tarefa, contam com os exemplos da América Latina, não só da tragédia do governo bolsonarista no Brasil, mas com a recente vitória peronista na Argentina, a confirmação de Evo Morales no primeiro turno da Bolívia e a reprovação da política neoliberal no Chile, que se mostrou tão violenta e assassina quanto as forças militares uruguaias.
O povo uruguaio é considerado dos mais politizados do mundo e mais conscientes da importância da união da América Latina para a soberania dos povos, como aponta Javier Miranda, advogado, presidente nacional da Frente Ampla. Por isso, a vitória de ontem foi comemorada pelos eleitores da geração que mudou a história de um país acossado pelo imperialismo, pela ditadura e pelas oligarquias com gosto redobrado, ainda que o segundo tempo desse jogo possa reservar grandes dissabores, como acentua Daniel de Los Santos, técnico de enfermagem, 49 anos. Cada passo dado pela luta precisa ser comemorado para que a vitória sempre esteja no horizonte do lutador, para lembrar a lição do companheiro Guevara.