Em menos de dez anos, Belo Horizonte deixa de ser uma cidade-refúgio para aqueles que queriam saber de silêncio e ficar longe da folia, para se tornar a “cidade que possui um dos carnavais mais procurados do país”. Há sete anos, a cidade promove um dos melhores carnavais de luta do Brasil, um festejo que tem carnavalizado a política e politizado as ruas.
Nossos blocos não têm tempo de vida para ter tradição, mas podemos afirmar, com a maior convicção, que muitos deles já conquistaram eternamente os corações da cidade
Dentre as cerca de quatrocentas agremiações carnavalescas em funcionamento, se destacam algumas que nasceram até 2010 e que estão entre as responsáveis pela folia de hoje:
- Grêmio Recreativo Escola de Samba Cidade Jardim, de 1961, Banda Mole, de 1975, Escola de Samba Liberdade Ainda Que Tam Tam, de 1998, Santo Bando, de 2003.
- Blocos do Peixoto e Unidos do Samba Queixinho, de 2009, Tetê, a Santa, Filhos de Tcha Tcha e Praia da Estação de 2010.
Belo Horizonte é uma cidade jovem
Quase nenhuma agremiação possui quadra, barracão ou até uma pequena sede para encontros ou para guardar instrumentos. O belo, vigoroso e contagiante carnaval de BH têm sido feito na “Tora e às Próprias Custas Ltda.” Com 119 anos de idade, a história da cidade e do carnaval confluem em resistência, luta e ocupação do espaço público. Um exemplo disso é a Unidos do Samba Queixinho, uma das poucas experiências de colocar em prática a ideia de “carnaval o ano inteiro”.
São raras as agremiações carnavalescas tradicionais na cidade
Belo Horizonte tem pouco mais de cem anos, mas já tivemos um dos melhores desfiles de Escolas de Samba do Brasil. Se o carnaval da cidade não tivesse sido interrompido pelo prefeito Pimenta da Veiga em 1989 e ficado moribundo por duas décadas, talvez o nosso desfile de Escolas de Samba estivesse entre as principais tradições populares da nossa cidade. Hoje já não temos mais, na avenida, a Escola de Samba Inconfidência Mineira, de 1950.
Sambistas que tiveram o carnaval sequestrado de suas vidas, resistem!
Graças à resistência e à dedicação dos sambistas sexagenários e de amigos do samba, foi constituída em 01 de junho 2011 a Associação Velha Guarda da Faculdade do Samba, idealizada pelo Mestre Conga e Marcos Valério Maia.
Um grande atentado ao samba, ao carnaval e à cultura ocorreu em 2008: a desapropriação, com tropa de choque, camburão e caminhão para transportar as fantasias e os instrumentos apreendidos da Escola de Samba Cidade Jardim, a mais antiga agremiação carnavalesca em funcionamento de BH e, na época, a única que possuía sede (Quadra/Barracão).
Os grandes atentados contra a cultura e o carnaval de BH duraram até o ano de 2010, quando a resistência e a luta por um carnaval na cidade passou a contar com novos, numerosos e valorosos atores. Um deles, a Praia da Estação, passa a ser o Marco Zero da folia e de muitas lutas, entre elas, a do direito ao carnaval a cidade.
BH começa a deixar de ser uma cidade deserta no período de carnaval e cada vez mais se transforma em um dos melhores carnavais do Brasil
Somente os dois últimos anos passou a ser comum cruzarmos com pessoas fantasiadas ou grupos de foliões transitando pelo centro da cidade. BH começa a se colorir. Entretanto, até 2016 a cidade não é decorada para o carnaval e permanece muito pobre em alegorias. São raros os sinais dos festejos de momo na grande maioria dos bairros, das vilas e favelas. Até 2013 as Escolas de Samba e os Blocos Caricatos iam para a avenida sem saber se no ano seguinte haveria desfile.
Esse outro carnaval é muito recente
Somente nos quatro últimos anos, o carnaval belorizontino começou a se consolidar. A cobertura de 2010 do jornal Estado de Minas, edição de sábado de carnaval, pela última vez, traz na capa uma atração de fora da cidade: o “Galo da Madrugada” de Recife. As matérias sobre o carnaval em Minas só cobriram as cidades do interior. Nesse tempo o poder público mais envolvido com carnaval era a polícia. A partir de 2011, a festa em BH passa a ser o destaque das capas dos jornais e com boas coberturas. As rádios e TVs passam a dedicar cada vez mais espaço em suas programações ao carnaval da cidade.
Pernambuco: um carnaval centenário e sem interrupção
Recife e Olinda tinham mais de quatrocentos anos de história, nos anos 70, quando começaram a surgir os novos blocos de rua (entre eles: Segura a Coisa, de 1975, Eu acho é Pouco, de 1976 e Galo da Madrugada, de 1978). Uma década depois, Recife e Olinda se tornaram carnavais de massa: em um único dia, em 2016, o Galo da Madrugada arrastou um número de foliões comparável a todo o carnaval de Belo Horizonte, incluindo as atividades pré e pós-carnavalescas. É importante situar que as duas cidades já tinham agremiações carnavalescas tradicionais, tais como Vassourinhas, de 1912, Flor de Lira, de 1920, Batutas de São José, de 1932, Pitombeira dos Quatro Cantos, de 1947, Elefante de Olinda, de 1952, entre outras, além de inúmeras manifestações carnavalescas populares e dos diversos bailes nos clubes de Recife.
Para onde vai o carnaval de BH? Ele é o palco do espontâneo e da irreverencia, mas não só…
A partir de 2009, a palavra de ordem era ”carnavalizar a cidade” e a cidade, de fato, se carnavalizou. Como não temos uma tradição a seguir, podemos agora construir os rumos do carnaval que queremos. Vamos manter o nosso carnaval politizado ou reduzi-lo a um mero entretenimento? Construir um carnaval espalhado pela cidade (periferia, vilas e favelas) e região metropolitana ou concentrado no centro? Um carnaval “lixo zero” ou mais uma atividade que polui e suja a cidade? Ele vai contribuir com a qualificação e profissionalização dos músicos ou será um carnaval que pouco lhes oferece? Um carnaval rico em decoração, cores e alegorias ou uma festa sem cor, árida e com pouca identidade? Se o carnaval crescer muito, qual carnaval de massas ele vai ser?
Folia Criativa: um carnaval superavitário!
Há cinco anos, BH não recebia os volumosos recursos financeiros vindos do carnaval. Só com os moradores de BH que, cada vez mais, escolhem ficar aqui no carnaval, já se produz uma receita, para o comércio e para os cofres da cidade, bem superior ao que é investido na festa. E ainda há receitas vindos dos turistas e de patrocinadores. É possível investir em ações que promovam artisticamente o carnaval e que enriqueçam a cultura carnavalesca da cidade. São significativos os recursos advindos do Carnaval. Além disso, BH é uma das poucas capitais em que o governo estadual ainda não contribui com apoio financeiro à festa.
Uma atenção especial deve ser dada àqueles que resistiram por mais de duas décadas de profunda marginalização:
Os Blocos Caricatos são uma manifestação carnavalesca que só existe em BH e em São João Del Rey. As Escolas de Samba que no passado formavam um dos maiores desfiles do Brasil, precisam voltar a funcionar o ano todo, voltar a ter mais de mil componentes, mais de 150 ritmistas na bateria, ter fantasias e carros alegóricos com a beleza e a grandiosidade do atual carnaval de BH. Das capitais brasileiras que têm desfile de Escola de Samba, somos uma das poucas que não têm sambódromo. E, para agravar, as Escolas não têm quadra para realizar ensaios ou eventos.
Tirando leite de pedra para transformar em confete e serpentina
Atualmente, as Escolas de Samba de Belo Horizonte recebem uma das mais baixas subvenções financeiras do Brasil. O valor é menor do que o preço de um único destaque de escola de samba de São Paulo ou Rio de Janeiro, menor do que o custo de um carro alegórico de Vitória-ES ou cerca da metade do que as Escolas de Samba de Nova Lima ou Sabará recebem da prefeitura. O valor da subvenção em BH é menos da metade do que as Escolas de Samba Canto da Alvorada, de 1979, e Acadêmicos de Venda Nova, de 2004, agremiações campeãs e vice campeãs nos últimos carnavais, gastam em seus desfiles.
Precisamos avançar para que BH desenvolva uma profunda cultura carnavalesca
Em lugares que possuem carnaval há muito tempo, a questão do local adequado para ensaios e outras atividades já está resolvida. Quando isso não é oferecido, os ensaios ocorrem com insegurança e em menor quantidade, comprometendo a qualidade musical e o brilho do carnaval. Outro fator que complica muito o Carnaval belorizontino é que esse, aqui, acontece no período de chuva, ao contrário do que ocorre em Recife, Olinda e todo nordeste. Em BH. Uma das maiores trombas d’água dos últimos anos ocorreu na segunda-feira de carnaval de 2015.
O principal passo já foi dado: a cultura carnavalesca começou a se enraizar na cidade e a cada ano contagia mais
Algumas das ações ainda precisam ser realizadas: oferecer espaços adequados para realização de ensaios e atividades das agremiações carnavalescas quatro messes antes do carnaval, a partir de novembro; criar mecanismos que proporcionem que os desfiles de Escolas de Samba de BH esteja no mesmo nível do carnaval de BH; desenvolver iniciativas que favoreçam o enriquecimento musical e a valorização dos músicos e iniciar o processo de decoração da cidade.
José Guilherme Castro, belorizontino, produtor cultural, diretor da Associação Cultural José Martí, folião dos carnavais de Olinda e Recife de 1972 a 1982 e do carnaval de BH desde 2008. Foi secretário geral e diretor de Carnaval da Escola de Samba Cidade Jardim. Participa do processo de construção coletiva do desfile manifestação da Escola de Samba Liberdade Ainda Que Tam Tam. No carnaval de 2016, representou as Escolas de Samba junto à sociedade e órgãos públicos. No festival Nacional de Arte e Cultura da Reforma Agrária, realizado pelo MST, foi homenageado com o Estandarte: BH, Um Dos Melhores Carnavais de Luta do Brasil.