Um ano da morte de Cancellier: a tragédia que nos serve de alerta

Familiares de Cancellier recebem placa de homenagem a Cancellier pelo Reitor da Universidade (Lucas Weber)

por Lucas Weber e Renato Botteon 

 

Na segunda-feira, dia 02/10/17, Luis Carlos Cancellier de Olivo, ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atirou-se do sétimo andar do Beiramar Shopping em Florianópolis, renunciando à vida que 18 dias antes já lhe haviam condenado a não vivê-la, quando manchetes lhe acusaram de desviar R$ 80 milhões sem nenhum indício. A operação Ouvidos Moucos, deflagrada no dia 14 de setembro, mobilizou 115 policiais para prender seis professores e o reitor da Universidade, com objetivo de desarticular uma organização criminosa que supostamente desviou recursos do programa de Ensino a Distância (EaD) da UFSC. Na verdade, Cancellier foi acusado de obstrução de justiça administrativa, nunca de desvio de recurso. Não foi isso que foi noticiado naquela manhã. E antes que pudesse ser desmentido, os muros da Universidade já estavam pichados “Cadê os R$ 80 milhões, Cancellier?”

Na terça-feira passada (02/10/18), completa-se um ano do suicídio do ex-reitor. O que nos obriga a relembrar o acontecimento e refletir sobre a condução desta operação que ainda não teve fim. Ouvidos Moucos está recheado de irregularidades cometidas por parte da Polícia Federal, do Ministério Público, dos meios de comunicação e da delegada que deu início ao processo, Érika Marena. No dia que foi deflagrada a operação, Cancellier, sem nunca ser considerado réu, foi levado preso provisoriamente, algemado, acorrentado nos pés, desnudado, e permaneceu 36h em um presídio de segurança máxima. Não suportou passar os constrangimentos e vexames de ter seu nome ligado a um suposto esquema de desvio milionário, foi alvo de piadas e revolta por parte da comunidade universitária, foi destituido do cargo de Reitor e banido da Universidade. Sofreu com um profundo quadro de depressão e preferiu o alento da morte.

Homenagem à memória de Cancellier realizado na última terça-feira (02/10/18) (Lucas Weber)

Um dia após a morte do ex-reitor, a UFSC realizou uma solenidade fúnebre em memória. Entre todas as falas da cerimônia, a do amigo de infância Lédio Rosa de Andrade foi quem causou mais comoção. Lédio Rosa, Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e colega do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade, fez um emocionante discurso denunciando os excessos da atuação da Polícia Federal, Juízes e Promotores durante todo o desenrolar da Operação. o qual chamou de atos de ”terrorismo de Estado”.

Após o desfecho do Operação, em 27 de abril desse ano, a PF divulgou o relatório final de 817 páginas que indiciou 23 pessoas e não conseguiu apontar o valor do desvio e nem provar a culpa de Cancellier dos crimes dos quais ele foi acusado. Mesmo assim, o Delegado Nelson Napp, substituto de Érika Marena, transferida para a superintendência de Sergipe, e responsável pela conclusão das investigações, continua ligando Cancellier a chefia do “esquema criminoso”, em entrevista à Folha de S.Paulo, disse que ele só não está entre os indiciados por ter morrido.

A voz de Lédio Rosa é uma das muitas que se levantaram para criticar a atuação de parte do poder Judiciário hoje em voga, que parecem esquecer dos princípios democráticos e das normas constitucionais. Recentemente em uma entrevista, Lédio Rosa declarou “(…)parte do sistema, tanto Juízes, como Promotores e Delegados, entrou em uma euforia antidemocrática, destruidora do Estado Democrático de Direito, e praticam abuso de autoridade claro e nítido, quando não crimes, no exercício da profissão. Em nome da condenação de corruptos você, hoje, dá uma carta branca para determinados Juízes fazerem o que querem, condenarem quem quiserem, sem provas sem nada”.

Cancellier e Lédio se conheceram ainda na infância, em Tubarão, na rua Santos Dumont, eram vizinhos e estudaram no mesmo colégio. Também cursaram Direito juntos na UFSC e chegaram a concorrerem juntos à eleição do Diretório Central dos Estudantes (DCE) em 1980, “eu ganhei por 21 votos!” conta Lédio Rosa. Cancellier foi trabalhar em Brasília e Lédio Rosa permaneceu em Santa Catarina atuando 25 anos como Juiz de Direito e dez como Desembargador. O reencontro dos amigos de infância foi na UFSC, como professores no curso de Direito.  

 

O impacto da morte de Cancellier alterou profundamente os planos de Lédio Rosa. Após o suicídio do amigo, ele teve o impulso de fazer algo que estava pensando há anos. Aposentou-se do cargo de desembargador (pela lei poderia atuar mais 15 anos) para se lançar na política partidária. Há quatro meses se filiou ao Partido dos Trabalhadores e nestas eleições concorre ao Senado Federal.

Lédio Rosa com Cancellier e a vice reitora Alacoque

 Conversamos com Lédio Rosa para entender todas as irregularidades ocorridas na operação Ouvidos Moucos e discutir a atuação do Poder Judiciário, da Polícia Federal e do Ministério Público no Brasil hoje.

Pergunta: Luiz Carlos Cancellier foi preso por 36 horas em um presídio de segurança máxima sem nunca ser considerado réu. Isto é permitido? Quais outras irregularidades foram cometidas ao ex-reitor?

Lédio:  Bom, teria  que fazer uma reconstrução dos fatos. Primeiro, está a própria decretação da prisão, que nesse caso se chama prisão provisória. A lei que permite um juiz prender provisoriamente exige primeiro que seja um dos crimes relacionados a própria lei, que são crimes graves. No caso dele  não é. Este crime que ele pretensamente foi acusado não está na lista dos permitidos (a ser realizada a prisão provisória). E também, a lei diz que a prisão só pode ser efetuada quando foi imprescindível. Que não é o caso, por que os professores (estão) desarmados e disponíveis o tempo todo. A segunda ilegalidade, é que um processo em segredo de justiça, e que só tenha acesso aos dados o juiz, o promotor e um ou dois funcionários do cartório, foi levado à imprensa e isso fere o segredo de justiça. Depois, você não pode prender uma pessoa, nem preventiva nem provisoriamente se não estiver respondendo a um processo de justiça. No caso do Cao, ele não respondia um processo, nem por crime grave, então não podia ser preso de forma nenhuma. Outro ponto é que ele foi algemado e acorrentado nos pés, o que é proibido a preso provisório e que não oferece nenhum perigo para si ou pros policiais. Depois, ele foi levado ao presídio de condenados e a lei proíbe que o preso provisório seja levado a um estabelecimento de presos condenados. Ele foi levado à segurança máxima, isso é uma ala da penitenciária só permitida de pessoas perigosíssimas, que exigem segurança máxima. Isso gera uma quantidade de ilegalidades e crimes de abuso de poder que contados bem direitinho passam de dez.

P: A primeira delegada do caso, Érika Marena, é conhecida pelo seu protagonismo na Lava Jato, inclusive por se a autora do nome da operação. Que semelhanças se observa nas duas investigações?

L: A semelhança entre os dois processos está nas ilegalidades praticadas. São processos completamente diferentes, com objetivos diferentes, não dá pra ter uma relação jurídica para justificar qualquer semelhança. Agora, a ilegalidade sim. A Lava Jato é uma investigação, que também está sendo pautada, lamentavelmente, por várias ilegalidades cometidas pelo juiz, pelo ministério público e pela PF.

P: Você percebe uma  onda autopromoção de juízes e delegados recentemente no Brasil? Você acha necessário dar nomes alegóricos para operações da PF?

L: Lamentavelmente, a partir do Mensalão, eu diria, e depois aprofundado na Lava Jato, o processo judicial, deixou de ser um processo judicial e passou a ser um processo midiático. Com atitudes de holofotes, promoção pessoal evidente. O promotor fazer reunião, filminho pra colocar na rede social, até um filme foi feito sobre essa operação. Isso evidentemente faz com que o ego das pessoas envolvidas queira aparecer e há evidentemente uso do processo judicial contra os princípios condicionais da ampla defesa do contraditório para expor, em desrespeito a vida, a história das pessoas. Expor pessoas que não tem provas suficientes para prendê-las. Mas basta ser uma pessoa com certa importância, que é preso de forma espetaculosa, com câmera de televisão previamente avisadas, com a relação de fatos que são absolutamente ilegais. Essa prática de colocar nomes em processos já é uma forma de fazê-lo virar espetáculo. O processo judicial é identificável pelo número, ficaria ruim na televisão. Eu, inclusive, sou a favor de que a lei proíba você nomear processos com nomes prontos para serem usados na mídia como espetáculo, isso é um absurdo.

P: Acioli Cancellier, irmão de Cao, afirmou em entrevistas à Folha de São Paulo, “quem matou meu irmão foi a falsa acusação de ter desviado R$ 80 milhões. O resto tudo ele poderia suportar”. No entanto, no inquérito, ele nunca foi acusado deste crime. Apenas de obstrução de justiça. Você responsabiliza a imprensa  tanto quanto a PF, o MP e a juíza pelo suicídio do ex-reitor?

L: O problema é que no Brasil a imprensa, a grande mídia, não tem responsabilidade. Ela faz o que quer. O caso do Cao foi típico, ele foi preso de manhã cedo, e no jornal da manhã, deve ter acontecido uma hora depois da prisão, a repórter, em nível nacional, fala que o reitor foi preso acusado de ter desviado R$ 85 milhões. E aí, há uma série de erros e mentiras. Primeiro que nunca se cogitou R$ 80 milhões. Segundo que o Cao. em nenhum momento, foi acusado de desvio de dinheiro. Ele foi acusado de obstrução de justiça administrativa, que é outra barbaridade nesse crime, nem existe.

P: A operação Ouvidos Moucos era investigada como segredo de justiça. No entanto, horas depois de ser deflagrada, muitos jornais já noticiavam a prisão de Cancellier com a manchete de R$ 80 milhões desviados de recursos para um programa de Educação a Distância da Universidade.

L: Aí é o chamado vazamento. Alguém que tenha conhecimento, que são pouquíssima pessoas, juiz, promotor e advogados e alguns funcionários do cartório, que informaram. Não tem outra forma. É o famoso vazamento. E é crime. Você informar dados de processos de justiça é crime.

P:  Após o desfecho do inquérito, o relatório final de 817 páginas não consegue provar a culpa de Cancellier dos crimes em que ele foi acusado, mesmo assim o delegado responsável pela divulgação do Relatório, Nelson Napp, continua acusando Cancellier de ter “chefiado o esquema criminoso”. Em entrevista à Folha de S.Paulo disse: “Cancellier só não está entre os indiciados (no relatório final) por ter morrido.

L: Isso aí é uma atitude corporativista. Depois que eles fizeram a coisa mal feita, que houve o escândalo, eles tinham que tentar alguma forma de justificar as barbaridades que foram feitas em todo esse processo. E eles tinham, sem dúvida nenhuma, que forçar a barra dizendo que o Cao era culpado, que seu filho é culpado. São formas de legitimar todos as barbaridades que eles fizeram.

P: A operação Lava Jato, apesar de sua relevância no combate a corrupção, trouxe um legado negativo para país através de uso de práticas autoritárias e que põem em xeque a democracia. O que a sociedade e o Estado podem fazer para frear essa onda de estrelismo e autoritarismo cometidos por parte das instituições? Como nós podemos reagir

L: O Poder Judiciário brasileiro não tem um sistema de controle, salvo por ele mesmo. Então quando há uma conjugação de forças de cunho ideológicos a impunidade é garantida.  O que nós precisamos é um parlamento forte, que não seja acovardado. Que possa criar, a partir de legislação, mecanismos de controle severo do poder judiciário. Principalmente, a lei de abuso de autoridade. Que está na câmara e não anda. E outros (criar outros) mecanismo. A própria estrutura do Conselho Nacional de Justiça tem que ser revista, que não permita unicamente o autocontrole. Até porque o judiciário é o único poder em que seus membros não tem que passar por eleição. Tanto no legislativo como no executivo, mesmo que haja impunidade interna, nas eleições seguintes, o candidato pode ser excluído pelo voto da população. No judiciário não, ele passa em um concurso e fica, 40, 50, 60 anos dentro do Judiciário e não há um controle. Salvo um interno, pelo próprio judiciário. E aí que está o problema, (o mecanismo) tem que ser revisto

P:  Você já disse que resolveu se aposentar do cargo de desembargador e entrar na política partidária por uma insatisfação geral por problemas no Brasil, inclusive no próprio poder judiciário. Mas você teria coragem de ter entrado na política se não fosse esse caso do Cancellier?

L: Não seria questão de coragem. Seria uma questão de desejo. Eu talvez priorizasse outras coisas. Mas, eu tomei a decisão e um

Lédio Rosa e o Alcioli, irmão de Cancellier na sessão de homenagem à memória do ex-reitor (Lucas Weber)

dos fatores fundamentais foi esse caso do Cao. E aí também a teoria do ‘se’ é difícil. Não é questão de coragem, se eu quisesse eu faria igual. Talvez eu não tivesse a motivação, é diferente.

P:  Você foi desembargador por 10 anos e sempre fugiu deste estrelismo que tanto critica. No entanto, no final de sua carreira, quando o Cao faleceu e houve a solenidade na UFSC, você fez um discurso que foi gravado e teve um milhão de visualizações. Foi um momento que você acabou virando uma estrela. Essa sensação te fez surgir uma vaidade?

L: Pra mim isso foi uma surpresa. Porque esse fato tem vários detalhes que ninguém sabe. Primeiro que eu não ia lá, não queria. E eu fui por insistência da Ana, minha companheira e do Jailson, um amigo. Eu não fui preparado pra falar, nem tinha condições psicológicas. Fui em homenagem ao amigo falecido. E quando eu fui falar, eu realmente não estava em condições. Mas acabou saindo um discurso. E surgiu a partir da minha tristeza. E essa repercussão me pegou de surpresa. Eu não esperava essa viralização. E não só isso, depois, começou a ter um enxurrada de convites para ir em vários lugares do Brasil. No começo eu fui em algumas, mas depois eu parei de ir, porque começou a ficar demais a coisa. Então houve um impacto inesperado, que eu tive que administrar. Achei melhor me aposentar. Tudo foi muito rápido. O Cao morreu dia 2 de outubro, eu me aposentei em março, cinco meses depois. Um prazo mínimo para eu acertar a vida.

P: Você acha que conseguiu sentir um pouco dessa vaidade que existe, por exemplo, no juiz Sérgio Moro?

L: A vaidade faz parte do ser humano. Quem não tem um mínimo de vaidade morre, porque se transforma em um depressivo. Então é preciso de autovalorizar para criar identidade pessoal e criar identidade social. A questão é qual o preço disso? Eu não posso dizer que nunca fui um cara vaidoso. Quando eu estava no Judiciário, eu participei do movimento do Direito Alternativo, eu escrevi livros, participei da academia, virei doutor em curso, depois virei doutor em outro… Tudo isso tem um pouco de vaidade, porque você se destaca, você aparece, às vezes no jornal. Eu diria que isso é fundamental pra pessoas permanecerem vivas. Agora, o vaidoso destrutivo é aquele que para agradar seu próprio ego, ele pisoteia as pessoas. Então ao invés de fazer atos importantes, por si próprio, ele vai atacar o outro, para ter o estrelismo. Você prender uma pessoa só porque ela é importante, sem ter os requisitos legais para prender uma pessoa, isso é maldade. Isso é você usar a vaidade de forma destrutiva e mortal.

É o caso de uma pessoa arrogante, que desrespeita a história, o corpo, a mente dos outros e usa o outros ao seu próprio prazer. Mais ou menos o que se fazia com os escravos. Chicoteava o outro para satisfazer o seu desejo próprio. Como hoje a escravidão está proibida, então existem essas coisas. Uma delas é o abuso de poder. Você ganha um poder do Estado, e este poder te dá muita força. Porque o Estado tem o monopólio da violência. Na verdade, é o ente mais violento que existe, mais que máfia, mais que o terrorista, mais que tudo. Só que o Estado tem a legitimação de usar a violência, porque diz que é a violência é legítima. Quando o policial mata alguém, ele não é um assassino, ele está usando a violência legítima do Estado. Desde que ele cumpra a lei. E não é o que está acontecendo Eles estão usando a violência legítima do Estado não para cumprir a lei, mas para aparecer na custa dos outros, isso é terrorismo de Estado. Essa é a diferença, a sutil diferença.

Biografia:
Lédio Rosa de Andrade (Tubarão, 1 de dezembro de 1958) é advogado, escritor, professor universitário, atuou como Juiz de Direito e Desembargador no Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Pós-doutor em Direito e Doutor em Psicologia Clínica e da Saúde. É candidato do ao Senado por Santa Catarina nas eleições de 2018.

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