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Estado de Exceção

Um ano da morte de Cancellier: a tragédia que nos serve de alerta

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por Lucas Weber e Renato Botteon 

 

Na segunda-feira, dia 02/10/17, Luis Carlos Cancellier de Olivo, ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atirou-se do sétimo andar do Beiramar Shopping em Florianópolis, renunciando à vida que 18 dias antes já lhe haviam condenado a não vivê-la, quando manchetes lhe acusaram de desviar R$ 80 milhões sem nenhum indício. A operação Ouvidos Moucos, deflagrada no dia 14 de setembro, mobilizou 115 policiais para prender seis professores e o reitor da Universidade, com objetivo de desarticular uma organização criminosa que supostamente desviou recursos do programa de Ensino a Distância (EaD) da UFSC. Na verdade, Cancellier foi acusado de obstrução de justiça administrativa, nunca de desvio de recurso. Não foi isso que foi noticiado naquela manhã. E antes que pudesse ser desmentido, os muros da Universidade já estavam pichados “Cadê os R$ 80 milhões, Cancellier?”

Na terça-feira passada (02/10/18), completa-se um ano do suicídio do ex-reitor. O que nos obriga a relembrar o acontecimento e refletir sobre a condução desta operação que ainda não teve fim. Ouvidos Moucos está recheado de irregularidades cometidas por parte da Polícia Federal, do Ministério Público, dos meios de comunicação e da delegada que deu início ao processo, Érika Marena. No dia que foi deflagrada a operação, Cancellier, sem nunca ser considerado réu, foi levado preso provisoriamente, algemado, acorrentado nos pés, desnudado, e permaneceu 36h em um presídio de segurança máxima. Não suportou passar os constrangimentos e vexames de ter seu nome ligado a um suposto esquema de desvio milionário, foi alvo de piadas e revolta por parte da comunidade universitária, foi destituido do cargo de Reitor e banido da Universidade. Sofreu com um profundo quadro de depressão e preferiu o alento da morte.

Homenagem à memória de Cancellier realizado na última terça-feira (02/10/18) (Lucas Weber)

Um dia após a morte do ex-reitor, a UFSC realizou uma solenidade fúnebre em memória. Entre todas as falas da cerimônia, a do amigo de infância Lédio Rosa de Andrade foi quem causou mais comoção. Lédio Rosa, Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e colega do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade, fez um emocionante discurso denunciando os excessos da atuação da Polícia Federal, Juízes e Promotores durante todo o desenrolar da Operação. o qual chamou de atos de ”terrorismo de Estado”.

Após o desfecho do Operação, em 27 de abril desse ano, a PF divulgou o relatório final de 817 páginas que indiciou 23 pessoas e não conseguiu apontar o valor do desvio e nem provar a culpa de Cancellier dos crimes dos quais ele foi acusado. Mesmo assim, o Delegado Nelson Napp, substituto de Érika Marena, transferida para a superintendência de Sergipe, e responsável pela conclusão das investigações, continua ligando Cancellier a chefia do “esquema criminoso”, em entrevista à Folha de S.Paulo, disse que ele só não está entre os indiciados por ter morrido.

A voz de Lédio Rosa é uma das muitas que se levantaram para criticar a atuação de parte do poder Judiciário hoje em voga, que parecem esquecer dos princípios democráticos e das normas constitucionais. Recentemente em uma entrevista, Lédio Rosa declarou “(…)parte do sistema, tanto Juízes, como Promotores e Delegados, entrou em uma euforia antidemocrática, destruidora do Estado Democrático de Direito, e praticam abuso de autoridade claro e nítido, quando não crimes, no exercício da profissão. Em nome da condenação de corruptos você, hoje, dá uma carta branca para determinados Juízes fazerem o que querem, condenarem quem quiserem, sem provas sem nada”.

Cancellier e Lédio se conheceram ainda na infância, em Tubarão, na rua Santos Dumont, eram vizinhos e estudaram no mesmo colégio. Também cursaram Direito juntos na UFSC e chegaram a concorrerem juntos à eleição do Diretório Central dos Estudantes (DCE) em 1980, “eu ganhei por 21 votos!” conta Lédio Rosa. Cancellier foi trabalhar em Brasília e Lédio Rosa permaneceu em Santa Catarina atuando 25 anos como Juiz de Direito e dez como Desembargador. O reencontro dos amigos de infância foi na UFSC, como professores no curso de Direito.  

 

O impacto da morte de Cancellier alterou profundamente os planos de Lédio Rosa. Após o suicídio do amigo, ele teve o impulso de fazer algo que estava pensando há anos. Aposentou-se do cargo de desembargador (pela lei poderia atuar mais 15 anos) para se lançar na política partidária. Há quatro meses se filiou ao Partido dos Trabalhadores e nestas eleições concorre ao Senado Federal.

Lédio Rosa com Cancellier e a vice reitora Alacoque

 Conversamos com Lédio Rosa para entender todas as irregularidades ocorridas na operação Ouvidos Moucos e discutir a atuação do Poder Judiciário, da Polícia Federal e do Ministério Público no Brasil hoje.

Pergunta: Luiz Carlos Cancellier foi preso por 36 horas em um presídio de segurança máxima sem nunca ser considerado réu. Isto é permitido? Quais outras irregularidades foram cometidas ao ex-reitor?

Lédio:  Bom, teria  que fazer uma reconstrução dos fatos. Primeiro, está a própria decretação da prisão, que nesse caso se chama prisão provisória. A lei que permite um juiz prender provisoriamente exige primeiro que seja um dos crimes relacionados a própria lei, que são crimes graves. No caso dele  não é. Este crime que ele pretensamente foi acusado não está na lista dos permitidos (a ser realizada a prisão provisória). E também, a lei diz que a prisão só pode ser efetuada quando foi imprescindível. Que não é o caso, por que os professores (estão) desarmados e disponíveis o tempo todo. A segunda ilegalidade, é que um processo em segredo de justiça, e que só tenha acesso aos dados o juiz, o promotor e um ou dois funcionários do cartório, foi levado à imprensa e isso fere o segredo de justiça. Depois, você não pode prender uma pessoa, nem preventiva nem provisoriamente se não estiver respondendo a um processo de justiça. No caso do Cao, ele não respondia um processo, nem por crime grave, então não podia ser preso de forma nenhuma. Outro ponto é que ele foi algemado e acorrentado nos pés, o que é proibido a preso provisório e que não oferece nenhum perigo para si ou pros policiais. Depois, ele foi levado ao presídio de condenados e a lei proíbe que o preso provisório seja levado a um estabelecimento de presos condenados. Ele foi levado à segurança máxima, isso é uma ala da penitenciária só permitida de pessoas perigosíssimas, que exigem segurança máxima. Isso gera uma quantidade de ilegalidades e crimes de abuso de poder que contados bem direitinho passam de dez.

P: A primeira delegada do caso, Érika Marena, é conhecida pelo seu protagonismo na Lava Jato, inclusive por se a autora do nome da operação. Que semelhanças se observa nas duas investigações?

L: A semelhança entre os dois processos está nas ilegalidades praticadas. São processos completamente diferentes, com objetivos diferentes, não dá pra ter uma relação jurídica para justificar qualquer semelhança. Agora, a ilegalidade sim. A Lava Jato é uma investigação, que também está sendo pautada, lamentavelmente, por várias ilegalidades cometidas pelo juiz, pelo ministério público e pela PF.

P: Você percebe uma  onda autopromoção de juízes e delegados recentemente no Brasil? Você acha necessário dar nomes alegóricos para operações da PF?

L: Lamentavelmente, a partir do Mensalão, eu diria, e depois aprofundado na Lava Jato, o processo judicial, deixou de ser um processo judicial e passou a ser um processo midiático. Com atitudes de holofotes, promoção pessoal evidente. O promotor fazer reunião, filminho pra colocar na rede social, até um filme foi feito sobre essa operação. Isso evidentemente faz com que o ego das pessoas envolvidas queira aparecer e há evidentemente uso do processo judicial contra os princípios condicionais da ampla defesa do contraditório para expor, em desrespeito a vida, a história das pessoas. Expor pessoas que não tem provas suficientes para prendê-las. Mas basta ser uma pessoa com certa importância, que é preso de forma espetaculosa, com câmera de televisão previamente avisadas, com a relação de fatos que são absolutamente ilegais. Essa prática de colocar nomes em processos já é uma forma de fazê-lo virar espetáculo. O processo judicial é identificável pelo número, ficaria ruim na televisão. Eu, inclusive, sou a favor de que a lei proíba você nomear processos com nomes prontos para serem usados na mídia como espetáculo, isso é um absurdo.

P: Acioli Cancellier, irmão de Cao, afirmou em entrevistas à Folha de São Paulo, “quem matou meu irmão foi a falsa acusação de ter desviado R$ 80 milhões. O resto tudo ele poderia suportar”. No entanto, no inquérito, ele nunca foi acusado deste crime. Apenas de obstrução de justiça. Você responsabiliza a imprensa  tanto quanto a PF, o MP e a juíza pelo suicídio do ex-reitor?

L: O problema é que no Brasil a imprensa, a grande mídia, não tem responsabilidade. Ela faz o que quer. O caso do Cao foi típico, ele foi preso de manhã cedo, e no jornal da manhã, deve ter acontecido uma hora depois da prisão, a repórter, em nível nacional, fala que o reitor foi preso acusado de ter desviado R$ 85 milhões. E aí, há uma série de erros e mentiras. Primeiro que nunca se cogitou R$ 80 milhões. Segundo que o Cao. em nenhum momento, foi acusado de desvio de dinheiro. Ele foi acusado de obstrução de justiça administrativa, que é outra barbaridade nesse crime, nem existe.

P: A operação Ouvidos Moucos era investigada como segredo de justiça. No entanto, horas depois de ser deflagrada, muitos jornais já noticiavam a prisão de Cancellier com a manchete de R$ 80 milhões desviados de recursos para um programa de Educação a Distância da Universidade.

L: Aí é o chamado vazamento. Alguém que tenha conhecimento, que são pouquíssima pessoas, juiz, promotor e advogados e alguns funcionários do cartório, que informaram. Não tem outra forma. É o famoso vazamento. E é crime. Você informar dados de processos de justiça é crime.

P:  Após o desfecho do inquérito, o relatório final de 817 páginas não consegue provar a culpa de Cancellier dos crimes em que ele foi acusado, mesmo assim o delegado responsável pela divulgação do Relatório, Nelson Napp, continua acusando Cancellier de ter “chefiado o esquema criminoso”. Em entrevista à Folha de S.Paulo disse: “Cancellier só não está entre os indiciados (no relatório final) por ter morrido.

L: Isso aí é uma atitude corporativista. Depois que eles fizeram a coisa mal feita, que houve o escândalo, eles tinham que tentar alguma forma de justificar as barbaridades que foram feitas em todo esse processo. E eles tinham, sem dúvida nenhuma, que forçar a barra dizendo que o Cao era culpado, que seu filho é culpado. São formas de legitimar todos as barbaridades que eles fizeram.

P: A operação Lava Jato, apesar de sua relevância no combate a corrupção, trouxe um legado negativo para país através de uso de práticas autoritárias e que põem em xeque a democracia. O que a sociedade e o Estado podem fazer para frear essa onda de estrelismo e autoritarismo cometidos por parte das instituições? Como nós podemos reagir

L: O Poder Judiciário brasileiro não tem um sistema de controle, salvo por ele mesmo. Então quando há uma conjugação de forças de cunho ideológicos a impunidade é garantida.  O que nós precisamos é um parlamento forte, que não seja acovardado. Que possa criar, a partir de legislação, mecanismos de controle severo do poder judiciário. Principalmente, a lei de abuso de autoridade. Que está na câmara e não anda. E outros (criar outros) mecanismo. A própria estrutura do Conselho Nacional de Justiça tem que ser revista, que não permita unicamente o autocontrole. Até porque o judiciário é o único poder em que seus membros não tem que passar por eleição. Tanto no legislativo como no executivo, mesmo que haja impunidade interna, nas eleições seguintes, o candidato pode ser excluído pelo voto da população. No judiciário não, ele passa em um concurso e fica, 40, 50, 60 anos dentro do Judiciário e não há um controle. Salvo um interno, pelo próprio judiciário. E aí que está o problema, (o mecanismo) tem que ser revisto

P:  Você já disse que resolveu se aposentar do cargo de desembargador e entrar na política partidária por uma insatisfação geral por problemas no Brasil, inclusive no próprio poder judiciário. Mas você teria coragem de ter entrado na política se não fosse esse caso do Cancellier?

L: Não seria questão de coragem. Seria uma questão de desejo. Eu talvez priorizasse outras coisas. Mas, eu tomei a decisão e um

Lédio Rosa e o Alcioli, irmão de Cancellier na sessão de homenagem à memória do ex-reitor (Lucas Weber)

dos fatores fundamentais foi esse caso do Cao. E aí também a teoria do ‘se’ é difícil. Não é questão de coragem, se eu quisesse eu faria igual. Talvez eu não tivesse a motivação, é diferente.

P:  Você foi desembargador por 10 anos e sempre fugiu deste estrelismo que tanto critica. No entanto, no final de sua carreira, quando o Cao faleceu e houve a solenidade na UFSC, você fez um discurso que foi gravado e teve um milhão de visualizações. Foi um momento que você acabou virando uma estrela. Essa sensação te fez surgir uma vaidade?

L: Pra mim isso foi uma surpresa. Porque esse fato tem vários detalhes que ninguém sabe. Primeiro que eu não ia lá, não queria. E eu fui por insistência da Ana, minha companheira e do Jailson, um amigo. Eu não fui preparado pra falar, nem tinha condições psicológicas. Fui em homenagem ao amigo falecido. E quando eu fui falar, eu realmente não estava em condições. Mas acabou saindo um discurso. E surgiu a partir da minha tristeza. E essa repercussão me pegou de surpresa. Eu não esperava essa viralização. E não só isso, depois, começou a ter um enxurrada de convites para ir em vários lugares do Brasil. No começo eu fui em algumas, mas depois eu parei de ir, porque começou a ficar demais a coisa. Então houve um impacto inesperado, que eu tive que administrar. Achei melhor me aposentar. Tudo foi muito rápido. O Cao morreu dia 2 de outubro, eu me aposentei em março, cinco meses depois. Um prazo mínimo para eu acertar a vida.

P: Você acha que conseguiu sentir um pouco dessa vaidade que existe, por exemplo, no juiz Sérgio Moro?

L: A vaidade faz parte do ser humano. Quem não tem um mínimo de vaidade morre, porque se transforma em um depressivo. Então é preciso de autovalorizar para criar identidade pessoal e criar identidade social. A questão é qual o preço disso? Eu não posso dizer que nunca fui um cara vaidoso. Quando eu estava no Judiciário, eu participei do movimento do Direito Alternativo, eu escrevi livros, participei da academia, virei doutor em curso, depois virei doutor em outro… Tudo isso tem um pouco de vaidade, porque você se destaca, você aparece, às vezes no jornal. Eu diria que isso é fundamental pra pessoas permanecerem vivas. Agora, o vaidoso destrutivo é aquele que para agradar seu próprio ego, ele pisoteia as pessoas. Então ao invés de fazer atos importantes, por si próprio, ele vai atacar o outro, para ter o estrelismo. Você prender uma pessoa só porque ela é importante, sem ter os requisitos legais para prender uma pessoa, isso é maldade. Isso é você usar a vaidade de forma destrutiva e mortal.

É o caso de uma pessoa arrogante, que desrespeita a história, o corpo, a mente dos outros e usa o outros ao seu próprio prazer. Mais ou menos o que se fazia com os escravos. Chicoteava o outro para satisfazer o seu desejo próprio. Como hoje a escravidão está proibida, então existem essas coisas. Uma delas é o abuso de poder. Você ganha um poder do Estado, e este poder te dá muita força. Porque o Estado tem o monopólio da violência. Na verdade, é o ente mais violento que existe, mais que máfia, mais que o terrorista, mais que tudo. Só que o Estado tem a legitimação de usar a violência, porque diz que é a violência é legítima. Quando o policial mata alguém, ele não é um assassino, ele está usando a violência legítima do Estado. Desde que ele cumpra a lei. E não é o que está acontecendo Eles estão usando a violência legítima do Estado não para cumprir a lei, mas para aparecer na custa dos outros, isso é terrorismo de Estado. Essa é a diferença, a sutil diferença.

Biografia:
Lédio Rosa de Andrade (Tubarão, 1 de dezembro de 1958) é advogado, escritor, professor universitário, atuou como Juiz de Direito e Desembargador no Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Pós-doutor em Direito e Doutor em Psicologia Clínica e da Saúde. É candidato do ao Senado por Santa Catarina nas eleições de 2018.

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Censura

Militares fazem o que sabem de melhor: esconder os mortos

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Imagine uma epidemia que se alastra rapidamente e mata entre 10% e 20% dos infectados. Imagine que essa epidemia mata principalmente crianças e em especial as da periferia, com menor acesso ao saneamento básico e à saúde. Agora, imagine que por três anos os meios de comunicação sejam censurados nas reportagens sobre a epidemia, que os médicos sejam proibidos de dar entrevistas e que o Ministério da Saúde, controlado por militares, não divulgue os números corretos sobre a doença e as mortes. Isso já aconteceu no Brasil, e não faz tanto tempo assim.

Entre 1971 e 1974, pelo menos 60 mil pessoas de sete estados brasileiros (40 mil só em São Paulo, o epicentro da epidemia) foram infectadas pela bactéria causadora da meningite. Até hoje é impossível precisar quantos morreram. Mas para impedir o que achavam ser uma histeria dos médicos, os militares decidiram esconder esses fatos, e os mortos, da população. Centenas, talvez milhares de crianças, aliás, foram enterradas na mesma vala comum clandestina do cemitério de Perus, na capital paulista, onde eram jogados os corpos de dissidentes políticos torturados e mortos pelo Doi Codi.

Um ótimo vídeo curto sobre a epidemia de meningite e a maquiagem de dados da ditadura militar está disponível no canal Meteoro.doc. Ontem, o canal publicou um novo vídeo, tratando especificamente da atual maquiagem de dados e da disputa de narrativas entre o novo governo militar, que teoricamente ainda não é uma ditadura, e os meios de comunicação para se informar ou desinformar a população.

O tratamento governamental da epidemia de meningite dos anos 1970 só vai mudar em 1974, com um novo general no poder e a aquisição pelo governo de 80 milhões de doses da vacina. Sim, já havia vacina para a meningite e o governo sabia que se tivesse feito uma campanha de vacinação anos antes, teria poupado milhares de vidas. Mas pra que admitir um genocídio se podia dizer que havia um “milagre econômico”? É como disse a ex-secretária da Cultura, Regina SemArte: é muito peso carregar essa fileira de mortos.

Telegrama da Polícia Federal ordenando a censura nos dados sobre a epidemia de meningite. Fonte: Twitter do historiador Lucas Pedretti @lpedret. Como os telegramas não tinham pontuação, usavam a sigla VG para vírgula e PT para ponto final.

Assim, em julho de 1974, com a admissão oficial de que havia uma epidemia, o jornalista Clovis Rossi, então trabalhando no jornal O Estado de São Paulo, preparou uma grande reportagem de capa, intitulada Epidemia de Silêncio, na qual dizia: “Desde que, há dois anos aproximadamente, começaram a aumentar em ritmo alarmante os casos de meningite em São Paulo, as autoridades cuidaram de ocultar fatos, negar informações, reduzir os números referentes à doença a proporções incompatíveis com a realidade — ou seja, levando, deliberadamente, a desinformação à população e abrindo caminho para que boatos ocupassem rapidamente o lugar que deveria ser preenchido per fatos. Fatos que as autoridades tinham a obrigação, por todos os títulos de esclarecer ampla e totalmente”. Leia a matéria completa aqui.

Mas, claro, militares não gostam que digam quais são suas obrigações e publiquem que estão desinformando a população. Assim, a matéria de Rossi foi censurada e em seu lugar o Estadão publicou um trecho do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões.

Por causa da Lei da Anistia, de 1979, os militares jamais foram responsabilizados criminalmente pelas mortes na pandemia e nem pelas torturas, mortes, desaparecimentos e ocultação de cadáveres de dissidentes políticos. Mas talvez a história não se repita com a pandemia de coronavírus. Ontem, o Supremo Tribunal Federal, atendendo a uma ação dos partidos Psol, PCdoB e Rede Sustentabilidade, determinou a divulgação diária das informações sobre os dados de Covid-19 até às 19h30, pelo Ministério da Saúde. E também ontem, o Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda, decidiu analisar a denúncia do PDT de genocídio promovido pelo Governo Bolsonaro. Esse é um caso raro, já que normalmente o TPI só julga ex-governantes acusados de crimes contra a humanidade.

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Brasília

Manifestações mostram que Bolsonaro desliza sem volta para o precipício

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Manifestações em todo o Brasil comprovam que o povo está farto da necropolítica do miliciano no Poder - Foto: Felipe Corvello

Por Ricardo Melo*

Que me perdoe Dacio Malta, um dos mais destacados jornalistas do país e produto de uma linhagem que vem de Octavio Malta, co-fundador da Última Hora e um dos mais brilhantes profissionais da grande imprensa quando ela podia ser chamada deste nome.
Mas o último artigo de Dacio aqui publicado, sobre o impeachment de Bolsonaro, ficou no meio do caminho.

Ele tem toda razão ao afirmar que Bolsonaro merece o impeachment diante da atitude do genocida, expulso do exército como terrorista, frente à Covid-19. Mas oscila quando diz que seus outros crimes foram “absolvidos” porque foi eleito em 2018.

Ora, Bolsonaro não foi eleito sob regras democráticas. Primeiro, beneficiou-se do impeachment irregular de uma presidenta legitimamente eleita. Depois, contou com o apoio sórdido de uma ação judicial conduzida contra Lula pelo seu futuro ministro, hoje “desafeto”, o infecto Sérgio Moro. Qualquer dúvida a respeito desaparece quando se consultam os diálogos trazidos a público pelo “The Intercept Brasil”. Lá se revela o caráter criminoso e parcial com que o Marreco de Curitiba manipulou o processo. Não bastasse isso, Bolsonaro beneficiou-se de uma máquina milionária de mentiras, orientada por assessores americanos e financiada por empresários brasileiros para espalhar fake news contra seus adversários.

Não fosse tudo isso, Lula teria ganho as eleições com folga ainda no primeiro turno. Até a rampa do Planalto sabe disso.

Bolsonaro é um presidente fraudulento, ilegítimo, com ou sem covid-19. Um usurpador. Sua trajetória neofascista, misógina, homicida, armamentista, desenvolvida durante 30 anos no Congresso, só se tornou “maioria nominal” graças a expedientes liberticidas e, sobretudo, porque contou com o apoio da elite apodrecida que prefere qualquer coisa, menos governos com algum viés social.

Sim, estes traços tenebrosos ganham tintas mais carregadas quando ele age como homicida assumido diante de uma pandemia devastadora. Transformou o Ministério da Saúde dirigido por militares desqualificados em um esconderijo de cadáveres.

Mas isso é apenas o ápice da trajetória de um desequilibrado a serviço do grande capital e seus asseclas na grande mídia, nas Forças Armadas, no Judiciário e no Legislativo. Bando de acólitos anti-Brasil. O conjunto da obra já é mais do que suficiente para expulsar Bolsonaro e sua gangue do poder que ele e sua turma de milicianos tomaram de assalto, pisoteando meios democráticos elementares.

Paradoxalmente, esse alucinado só está de pé por causa do isolamento que ele tanto ironiza. Estivesse segura de sair às ruas sem colocar em risco a própria vida, a população já teria dado cabo deste excremento. Isto já começou a mudar como mostraram as manifestações de domingo.   

Este será o curso inevitável dos próximos momentos.

 

*Ricardo Melo, jornalista, foi editor-executivo do Diário de S. Paulo, chefe de redação do Jornal da Tarde (quando ganhou o Prêmio Esso de criação gráfica) e editor da revista Brasil Investe do jornal Valor Econômico, além de repórter especial da Revista Exame e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Na televisão, trabalhou como chefe de redação do SBT e como diretor-executivo do Jornal da Band (Rede Bandeirantes) e editor-chefe do Jornal da Globo (Rede Globo). Presidiu a EBC por indicação da presidenta Dilma Rousseff.

Leia mais Ricardo Melo em:

 

Pandemia: 1% mais rico do País não está nem aí para as mortes dos pobres

 

RICARDO MELO: BRASIL À DERIVA, SALVE-SE QUEM PUDER!

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#EleNão

Os camisas negras de Bolsonaro

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Mais de 1 milhão de crianças, 2 milhões de mulheres e 3 milhões de homens foram submetidos ao assassinato e à tortura de forma programada pelos nazistas com o objetivo de exterminar judeus e outras minorias. Nos primórdios da Itália fascista, os camisas negras – milícias paramilitares de Mussolini – espancavam grevistas, intelectuais, integrantes das ligas camponesas, homossexuais, judeus. Quando a ditadura fascista se estabeleceu, dez anos antes da nazista, Mussolini impôs seu partido como único, instaurou a censura e criou um tribunal para julgar crimes de segurança nacional; sua polícia secreta torturou e matou milhares de pessoas. Em 1938, Mussolini deportou 7 mil judeus para os campos de concentração nazista. Sua aliança com Hitler na 2ª Guerra matou mais de 400 mil italianos.

Perdoem-me relembrar fatos tão conhecidos, ao alcance de qualquer estudante, mas parece necessário falar do óbvio quando ser antifascista se tornou sinônimo de terrorista para Jair Bolsonaro. Os direitos universais à vida, à liberdade, à democracia, à integridade física, à livre expressão, conceitos antifascistas por definição, pareciam consenso entre nós, mas isso se rompeu com a eleição de Bolsonaro. O desprezo por esses valores agora se explicita em manifestações, abraçadas pelo presidente, que vão de faixas pelo AI-5 – o nosso ato fascista – ao cortejo funesto das tochas e seus símbolos totalitários, aqueles que aprendemos com a história a repudiar. Jornalistas espancados pelos atuais “camisas negras” estão entre as cenas dessa trajetória.

A patética lista que circulou depois que o deputado estadual Douglas Garcia(PSL-SP) pediu que seus seguidores no Twitter denunciassem antifascistas mostra que o risco é mais do que simbólico. Depois do selo para proteger racistas criado pela Fundação Palmares, e das barbaridades ditas pelo seu presidente em um momento em que o mundo se manifesta contra o racismo, e que lhe valeram uma investigação da PGR, essa talvez seja a maior inversão de valores promovida pelos bolsonaristas até aqui.

A ameaça contida na fala presidencial e na iniciativa do deputado, que supera a lista macartista pois não persegue apenas os comunistas, tem o objetivo óbvio de assustar os manifestantes contra o governo e de açular as milícias contra supostos militantes antifas, dos quais foram divulgados nome, foto, endereço e local de trabalho.

É a junção dos “camisas negras” com a Polícia Militar, que já se mostrou favorável aos bolsonaristas contra os manifestantes pela democracia no domingo passado em São Paulo e no Rio de Janeiro. E que vem praticando o genocídio contra negros impunemente no país desde sua criação, na ditadura militar, muitas vezes com a cumplicidade da Justiça, igualmente racista.

Como disse Mirtes Renata, a mãe de Miguel, o menino negro de 5 anos que foi abandonado no elevador pela patroa branca de sua mãe, mulher de um prefeito, liberada depois de pagar fiança de R$ 20 mil reais, “se fosse eu, a essa hora já estava lá no Bom Pastor [Colônia penal feminina em Pernambuco] apanhando das presas por ter sido irresponsável com uma criança”. Irresponsável. Note a generosidade de Mirtes com quem facilitou a queda de seu filho do 9º andar.

Neste próximo domingo, os antifas vão pras ruas. Espero não ouvir à noite, na TV, que a culpa da violência, que está prestes a acontecer novamente, é dos que resistem como podem ao autoritarismo violento. Quem quer armar seus militantes, e politizar forças de segurança pública, está no Palácio do Planalto. É ele quem precisa desembarcar. De preferência de uma forma mais pacífica do que planejam os fascistas para mantê-lo no poder.

Por: Marina Amaral, codiretora da Agência Pública

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