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Sobreviventes negros tomam a cena na Festa Literária mais importante do país

Luara Wandelli Loth especial para os Jornalistas Livres

“Lima Barreto não escrevia com tranquilidade, escrevia com assombro”, define o professor, poeta e ensaísta, Edimilson de Almeida Pereira, o homenageado da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Essa edição, que terminou no domingo 30/07, contou com a maior presença de mulheres e escritores negros de sua história.

O escritor e jornalista carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881–1922), morto precocemente no ano da Semana de Arte Moderna de 1922, sabia que escrevia suas críticas ácidas, típicas de um “escritor do contra”, como ele mesmo se definia, em um terreno inóspito e incapaz de reconhecer a genialidade de um intelectual negro e pobre.

Nascido exatamente sete anos antes da proclamação da Lei Áurea, fato que comemorou com os companheiros de escola, deslumbrado com a promessa de liberdade, o autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) ganhou o título de “Triste visionário” de sua mais recente biógrafa, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Clara dos Anjos, publicado apenas em 1948, quase três década após a morte do autor, possui o mérito de ter sido um dos primeiros romances brasileiros a eleger uma mulher negra como protagonista.

Por meio da indignação e da amargura expressas em seu estilo inconfundível, Lima Barreto percebeu que o fim da escravidão não abalara as estruturas profundamente racistas, elitistas e excludentes da sociedade brasileira.

A atualidade de sua obra também assombra. Os grandes temas sobre os quais se debruçava, mirando a transformação radical da sociedade, e as contradições que insistia em vasculhar em sua literatura militante continuam assolando o país.

Para alcançar o povo, Lima Barreto era claro e sincero e recusava a arrogância e a afetação, que acometiam alguns literatos de seu tempo, para ele, empenhados em reproduzir a cultura europeia e dos Estados Unidos.

A literatura de Lima Barreto era “de urgência”, como concordaram os especialistas, Beatriz Resende, Edimilson de Almeida Pereira e Felipe Botelho Corrêa na mesa Arqueologia de um escritor, realizada na quinta-feira, 27/07. Lima Barreto precisava sobreviver na marginalidade, no subúrbio, pois não era bem-vindo no centro da cidade e da vida cultural. Anarquista, conhecia a violência do Estado brasileiro contra seus críticos.

Na juventude, Lima Barreto não conseguiu concluir os estudos de Engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Em comunicado divulgado, na sexta-feira, 28/07, a diretoria da Escola Politécnica reconheceu que o Lima Barreto foi vítima de racismo dentro da instituição e saudou a homenagem promovida pela Flip 2017.

O pai de Lima Barreto começou a enlouquecer no início do século XX. Com o passar dos anos, o escritor desenvolveu alcoolismo. Aposentou-se por invalidez em um cargo do estado, carreira que inspirou muitas de suas vorazes críticas ao funcionalismo público. Defendeu o anarquismo e os grevistas com paixão. Elogiou a Revolução Russa. Troçou da arrogância de doutores e literatos, aproximando-se do povo e das ruas da cidade por onde deambulava em meio à boemia. Condenou os feminicídios de sua época, tão semelhantes aos de nosso século XXI.

Lima Barreto foi internado à força em um manicômio por duas vezes. A última internação deu-se pouco antes de sua morte. No diário, escreveu sobre a violência com a qual o Estado submetia os internos, quase todos negros. A experiência resultou na autoficção de confinamento O cemitério dos vivos. O livro também foi publicado postumamente, em 1953, graças ao trabalho do primeiro biógrafo do autor, Francisco de Assis Barbosa.

Em um desencontro entre vanguardistas, Lima desentendeu-se com os modernistas de São Paulo, após uma crítica feroz contra a revista Klaxon, considerada pelo carioca uma cópia do futurismo europeu e que podia ser facilmente confundida com uma “propaganda de automóveis”.

Praticamente isolado dos movimentos literários, Lima Barreto foi considerado por muito tempo um pré-modernista na academia, mas a curadoria da 15ª Flip apresenta outra tese: “Lima foi um moderno antes do modernismo”.

Edimilson de Almeida faz balanço sobre a Flip, durante a mesa de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves

Sobreviventes

Outros convidados e convidadas da 15ª Flip — pela primeira vez a maioria é de mulheres — revelam que o perigo de ser negro não é uma tragédia datada de quase um século atrás, da Primeira República brasileira, época de reformas urbanas higienistas e repressões como a Canudos e à Revolta da Vacina. Ser negro em sociedades desiguais é um risco enfrentado por todos os escritores da diáspora africana.

Na noite de quinta-feira, 27/07, a mesa “Em nome da mãe” trouxe um diálogo entre duas filhas. Uma delas, a sobrevivente ruandesa, Scholastique Mukasonga mareou os olhos do público ao compartilhar memórias transcritas nos livros Inyenzi ou les Cafards, de 2006, e nos romances A mulher dos pés descalços e Nossa senhora do Nilo, recentemente traduzidos para o português e que serão publicados no país pela editora Nós.

Scholastique reverencia sua mãe, Stefania, “morta como uma barata”, durante o genocídio de 1994 em Ruanda. Foi a mãe Stefania, que tinha a habilidade de “enxergar com os pés”, que ensinou Scholastique a sobreviver: “Meus pés me levaram ao Burundi e eu estava descalça”, referindo-se ao drama da fuga de uma guerra fratricida. A guerra civil em Ruanda dizimou pelo menos 500 mil pessoas, a maioria da etnia tutsis, entre elas, a mãe e as quatro irmãs, dezenas de familiares de Scholastique e todas as pessoas do povoado onde nasceu.

“Eu tinha mortos sem corpos. Eu tinha que construir as sepulturas com as palavras, túmulos de papeis”, descreve sua luta árdua contra o esquecimento por meio da literatura, que, para ela, tirou a mãe Stefania da vala comum. Escrevendo a história de sua terra na França, onde mora desde 1992, Scholastique pode cumprir seu dever de testemunha e recompensar a mãe por não ter podido “cobrir seu corpo com um pano”, pedido reiterado diversas vezes quando Stefania era viva.

Outro escritor da diáspora celebrado na atualidade é o jamaicano James Marlon. Radicado nos Estados Unidos desde 2007 e ganhador do importante prêmio Man Booker Prize. No início da carreira, o livro de James Marlon foi rejeitado 78 vezes por editores. Desolado, chegou a apagar o original do romance, como contou na coletiva imprensa na manhã de sexta-feira, 28/07. Mas, com ajuda de um aplicativo, um ano depois de ter apertado a tecla “delete”, Marlon recuperou as páginas e finalmente conseguiu a publicação sonhada.

“Mesmo em um país onde 99% da população é negra, a invisibilidade do negro é uma realidade. Essa é uma das heranças do colonialismo”, responde sobre as semelhanças entre Brasil e Jamaica quando o assunto é invisibilidade de escritores e intelectuais afrodescendentes. Epopeia de quase 700 páginas, seu romance Breve história de sete assassinatos, é uma ficção narrada por 70 personagens sobre um fato histórico ainda obscuro Jamaica: o atentado contra o astro Bob Marley em 1976, pouco antes das eleições.

O escritor conta que dorme em paz, não teme ser perseguido por iluminar assuntos do passado, que os poderosos querem esquecer. Marlon James afirma não ter medo de fantasmas, nem dos vivos.

 

Orçamento pobre, riqueza em diversidade

Com um corte no orçamento de mais de um milhão de reais em relação ao ano passado, principalmente no dinheiro captado via Lei Rouanet, a 15ª Flip entra para a história pela diversidade, destacando as mulheres, indígenas e quilombolas, buscando recompensar os séculos de invisibilidade em relação aos autores negros no Brasil e convidando criadores notáveis de países periféricos como Ruanda, Angola e Jamaica. A Flip 2017 se propôs a subverter as fronteiras entre o cânone e o popular, a forma e o conteúdo, a arte desinteressada e o engajamento.

Álvaro Tukano, autor de O Mundo Tukano Antes dos Brancos, participou da mesa Aldeia, ao lado de lideranças Guarani e quilombolas

Não foram apenas os temas das mesas que geraram reflexão. A nova configuração espacial da Flip foi considerada por uns inovadora, por outros inusitada. Para se adaptar às dificuldades financeira, os organizadores receberam o apoio do padre Roberto Carlos Pereira, pároco da Igreja Matriz de Paraty, que cedeu o templo para a realização da maioria das mesas. O ato do pároco provocou controvérsia. Os ingressos sem desconto para assistir às discussões dentro da Igreja Matriz foram vendidos por R$ 57,00, mais caro da história do evento, levando-se em conta a inflação, segundo o Nexo. Os 400 lugares acabaram em poucos minutos. No intuito de contornar a falta de espaço para todos na matriz, a Flip montou um telão com acesso gratuito em praça. Ali o público muitas vezes foi o protagonista.

Amplamente divulgada na imprensa e nas redes sociais, a participação da professora Diva Guimarães comoveu Lázaro Ramos e todo o auditório na primeira mesa do dia 28/07. Aos 77 anos e dona de uma história de vida de tirar o fôlego, Diva Guimarães lavou a alma de todos os que lutam e lutaram contra o racismo no Brasil. Ela tomou o microfone para fazer uma pergunta e, inspirada, não parou de compartilhar reflexões e vivências avassaladoras sobre o racismo e a desigualdade e, como não podia deixar de ser, saiu ovacionada.

“Eu sobrevivo e sobrevivi hoje como brasileira, porque tive uma mãe que fez de tudo, passou por tudo que era humilhação para que nós estudássemos”, disse com a voz embargada logo no início de sua fala, encorajada pelo exemplo de Lázaro Ramos, que lançou A cor que habito, e pelas memórias compartilhadas pela autora ruandesa Scholastique Mukasonga na noite anterior.

A crise política e econômica esteve presente nos debates e nas manifestações do público. Nunca o momento político do país esteve tão latente na atmosfera da Festa. O público vibrou e gritou com frases como “Se Lima Barreto estivesse aqui, também gritaria Fora Temer”, ditas pelo ator Lázaro Ramos, que emocionou com sua interpretação dos fragmentos de Lima Barreto na noite de estreia, 26/07, ao lado da biógrafa Lilia Schwarcz.

A abertura da Festa Literária também foi marcada por uma manifestação realizada por servidores públicos do estado do Rio de Janeiro, inconformados com os salários atrasados e a crise que mergulhou o estado em uma verdadeira calamidade. Organizado principalmente por professores, o protesto parabenizou a escolha do homenageado.

“Recomendamos aos governantes a leitura da obra de Lima Barreto. Se estivesse vivo, ele estaria indignado com a gente com o número de escolas públicas fechadas ”, afirmou Clarice Ávila, diretora do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro e professora de Língua Portuguesa em Barra Mansa. “Se tivéssemos escutado o Lima antes não estaríamos assim”, disse a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista na obra, Beatriz Resende, sobre a conjuntura política atual.

Das chamadas Jornadas de Junho de 2013, a única pessoa ainda atrás das grades é Rafael Braga. A prisão injusta do jovem negro foi um dos fatos paradigmáticos da atualidade, que estiveram entre os temas abordados pela obra audiovisual do artista André Vallias, moteto verbivocodigital, exibida no sábado, 29/07. André Vallias partiu das dezenas de pseudônimos do homenageado Lima Barreto e de algoritmos para alcançar imagens e sons. À lembrança da prisão de Rafael Braga relacionada à trajetória — por vezes clandestina de Lima Barreto — sucederam-se palmas e palavras de ordem em nome da liberdade.

Apesar das tremendas dificuldades que moldaram a trajetória de Lima Barreto, Beatriz Resende, lembra: “É admirável a certeza que Lima tinha sobre a qualidade de sua obra. Ele sabia que seria valorizado no futuro”. Para a estudiosa, a lucidez do autor está no fato de ele ter deixado seus escritos inéditos e diários organizados. Talvez Lima pensasse no futuro e nos especialistas que hoje se debruçam sobre sua obra visionária, buscando explicações sobre o passado, o futuro e o presente do Brasil.

Como o poeta simbolista catarinense, Cruz e Sousa, morto dez anos após o fim da escravidão, Lima Barreto teve uma história trágica e não conheceu reconhecimento em vida. Felizmente, com o passar das décadas, ambos são cada vez mais valorizados e, quem sabe um dia, serão redimidos por uma sociedade sem racismo e desigualdades.

Confira e (se enamore por) um trecho de O Destino da Literatura (1921), no qual Lima Barreto enaltece uma literatura militante, que aproxime a humanidade. O texto foi interpretado por Lázaro Ramos na abertura da 15ª Flip:

Portanto, meus senhores, quanto mais perfeito for esse poder de associação; quanto mais compreendermos os outros que nos parecem, à primeira vista, mais diferentes, mais intensa será a ligação entre os homens, e mais nos amaremos mutuamente, ganhando com isso a nossa inteligência, não só a coletiva como a individual. A arte, tendo o poder de transmitir sentimentos e ideias, sob a forma de sentimentos, trabalha pela união da espécie; assim trabalhando, concorre, portanto, para o seu acréscimo de inteligência e de felicidade.

Ela sempre fez baixar das altas regiões, das abstrações da Filosofia e das inacessíveis revelações da Fé, para torná-las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e interessam à perfeição da nossa sociedade; ela explicou e explica a dor dos humildes aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, umas às outras, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais diversas épocas, das mais divergentes raças; ela se apieda tanto do criminoso, do vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à guilhotina; ela, não cansada de ligar as nossas almas, umas às outras, ainda nos liga à árvore, à flor, ao cão, ao rio, ao mar e à estrela inacessível; ela nos faz compreender o Universo, a Terra, Deus e o Mistério que nos cerca e para o qual abre perspectivas infinitas de sonhos e de altos desejos.

Lima Barreto. Revista Sousa Cruz, ns. 58–59, outubro e novembro de 1921.

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