Por Laura Capriglione e Lina Marinelli, dos Jornalistas Livres
Menos de 70 metros separam a múmia do revolucionário Vladimir Ilich Lênin (1870 – 1924), artífice da primeira revolução proletária vitoriosa, de um shopping center luxuoso, em que se exibem as principais grifes do alto consumo planetário –Dior, Gucci, Louis Vuitton, Prada, Cartier, Tiffany, Bulgari, Moschino e outras tantas.
O cadáver insepulto de Lênin resplandece sob iluminação cenográfica, dentro de um sarcófago de cristal, que —por sua vez— está dentro de uma espécie de pirâmide colada à muralha do Krêmlin, na praça Vermelha, a principal de Moscou e de toda a Rússia. É o único a ter esse, digamos, “privilégio” de parecer um boneco empalhado por toda a eternidade.
Paradoxalmente, é uma sequela do derrame sofrido por Lênin em 1923, o único traço remanescente da humanidade perdida em mergulhos sucessivos em formol e recoberta por maquiagem pesada —para manter o rosto rosadinho. Morta há 97 anos, a mão direita do homem que soube “o que fazer” da Rússia czarista, permanece fechada, como é típico em pacientes que sofrem acidentes vasculares cerebrais. Pungente fraqueza do revolucionário irredutível.
Bem perto de Lênin estão os túmulos de burocratas do regime soviético, como Leonid Ilitch Brejnev (1906—1982), Iúri Vladmirovitch Andropov (1914—1984) e Konstantin Ustinovitch Chernenko (1911—1985), o do cosmonauta e herói Yuri Alekseievitch Gagarin (1934 —1968), o primeiro homem a ser lançado ao espaço e a voltar com vida. E também tem o jazigo dele, Iossif Vissariónovitch Djugashvili, Stálin para a História (1878/79—1953).
Antes do fim da União Soviética, o outro lado da Praça Vermelha era ocupado por um grande mercado socialista, conhecido pela sigla GUM, abreviação de “Gosudarstvennyi Universalnyi Magazin”, ou Loja de Departamentos do Estado. Ali, em filas quilométricas, os moscovitas compravam de tudo. De batatas a vitrolas, de roupas a livros –tudo sem marca, como convém a uma economia totalmente estatizada.
A privatização do GUM, no fim da era soviética, possibilitou o surgimento do primeiro centro de consumo “ostentação” desde o fuzilamento da família Romanoff, em 1919. Como a palavra “estatal” tornou-se amaldiçoada, obviamente, a sigla GUM precisou ser ressignificada. Passou a ser “Glávnyj Universalnyi Magazin”, ou “Principal Loja de Departamenos”.
É a Daslu de lá, o shopping Cidade Jardim, a Via Montenapoleone, de Milão, a Rue du Faubourg-Saint-Honoré, de Paris, ou a Bond Street, de Londres. Para os moscovitas endinheirados, trata-se do endereço certeiro das lojas de luxo.
Neste momento, a decoração interna do GUM traz manequins, roupas, chapéus e ambientes rococós da época do Czar Nicolau 2º, com direito a um stand com a reprodução de seu manto e coroa imperial. Mais parece o castelo da Cinderela.
É claro que os ricos não comemorariam o centenário da tomada do poder pelos Soviets, mas eles não precisavam chegar ao ridículo desse banzo imperial pelo czar. Executada na noite de 16 para 17 de julho de 1918, a família real, composta por Nicolau 2º, a imperatriz, Alexandra Feodorovna, suas quatro filhas (Anastásia, Tatiana, Olga e Maria), o filho caçula, de apenas 13 anos, Alexei Nikolaevich, já tinha sido canonizada em 2000 pela Igreja Ortodoxa Russa, como neomártires.
Em 2017, rostos de Nicolau 2º são visíveis em chaveiros, pins, camisetas. E também como santinhos, desses que ficam pendurados nos retrovisores de ônibus e táxis –sim, admita-se, tem pobre sofrendo de saudades do czar. Aí é triste.
Foram pífias as comemorações dos 100 anos da Revolução Russa no país que a sediou. Equilibrando-se entre, de um lado, os neoliberais e os nacionalistas com forte influência da Igreja Ortodoxa, o presidente Vladimir Putin acabou com o feriado do dia 7 de novembro, que comemora o dia da Tomada do Poder pelos Soviets.
(A Revolução de Outubro foi, sim, em Novembro. A discrepância deve-se ao fato de os russos, então, usarem o calendário Juliano, diferente do Gregoriano que servia para a contagem do tempo no Ocidente. Depois da tomada do poder, os bolcheviques sincronizaram a Rússia com o Ocidente, e baniram o calendário Juliano.)
Cancelada aquela que era a principal festa nacional da extinta União Soviética, o que se viu no centenário da Revolução Russa de Outubro foram manifestações em São Petersburgo e Moscou que reuniram poucos milhares de militantes comunistas de todo o mundo –os chilenos eram, disparado, os mais animados, cantando hinos e gritando palavras de ordem, no meio de idosos heróis cansados de guerra.
Contavam-se nos dedos os jovens presentes.
Como a Grande Revolução de Outubro, sucessora legítima da Revolução Francesa, o sonho de liberdade e igualdade ao alcance da mão, o céu tomado de assalto… como aquilo deu nisso?
O diretor do Centro de Documentação do Instituto de América Latina da Academia de Ciências da Rússia, Alexandr Jarlamenko, considera que desde os fins dos anos 80, início dos anos 90, o país vive um processo contra-revolucionário escancarado, tendo-se “aberto as eclusas da propaganda anticomunista e antissoviética”, que tratou de convencer as pessoas, os jovens principalmente, de que, em vez da “Abrir a Nova Era da História Universal”, a Revolução Russa representou a Grande Catástrofe, a perda de milhões de vidas, a repressão, os Gulags.
Diferentemente do que aconteceu nos países da Europa do Leste, sob influência soviética, em que a restauração do capitalismo implicou a derrubada (às vezes sangrenta) dos burocratas comunistas, para dar início à ordem neoliberal, na Rússia foram os altos dignitários do próprio PC que lideraram a retomada do capitalismo.
Alexandr Jarlamenko narra a luta clandestina feroz, com matizes terroristas, dentro do aparelho do Partido Comunista, que vitimou dezenas de altos dirigentes. Sobreviveram aqueles que ele denomina de “renegados”, Boris Ieltsin à frente.
Nesta primeira parte da entrevista com o intelectual comunista, pode-se entender por que a reação capitalista não logrou colocar o povo nas ruas em defesa de sua Revolução.
Nos próximos capítulos, Jarlamenko fará seus prognósticos sobre os horizontes da esquerda mundial e sobre o futuro da ex-União Soviética. Não perca!
3 respostas
Em um mundo predominantemente de economia capitalista, o socialismo comunista jamais se perpetuaria. Foi o que ocorreu na ex-URSS. E na Alemanha Oriental, Coreia do Sul, Vietnã, China e até mesmo em Cuba. Se adaptaram cada um a seu jeito. E a Venezuela ” socialista ” do boçal e ditador Nicolás Maduro, vai decaindo economicamente. Se tem algum apoio popular dos mais pobres venezuelanos, é por causa da demagogia, do populismo e da política paternalista de pai dos pobres ou de pai de todos de Maduro. Por que comemorar a Revolução Russa então na Rússia atual ? Se o capitalismo não é uma solução econômica e social, pelo menos é melhor do que o socialismo comunista. Que inventem sistema econômico político – econômico – social melhor do que o capitalista portanto. A historia ensinou e ensina.
O texto se esquece de mencionar os legados da era sovietica: saude e educação gratuitos e de qualidade. Ser a Russia o BRIC com maior taxa de alfabetização e o maior arsenal nuclear do mundo. A demonização do termo socialista se esquece que em muitos países ditos capitalistas, se paga aliquota de IR de quase 50%. O texto também se esquece de dizer que foi esse sistema economico que tirou uma nação feudal e a elevou a maior potencia militar e territorial da história em menos de 40 anos. Houveram acertos e erros.
Triste é viver em pindorama, sob uma ” imprensa livre” ( livre só se for para mentir e censurar) com o pior dos sistemas, alta tributação e baixíssimo retorno de serviços básicos pelo estado.
Parabéns pelo texto! Karina