“Quando estou com pouco dinheiro, procuro não pensar nos meus filhos que vão pedir pão, pão, café. Desvio meu pensamento para o céu. Penso: será que lá em cima tem habitantes? Será que eles são melhores que nós? Será que o predomínio de lá suplanta o nosso? Será que as nações de lá é variada igual aqui na terra? Ou é uma nação única? Será que lá existe favela? E se lá existe favela será que quando eu morrer, vou morar na favela?” Carolina Maria de Jesus , em Quarto de Despejo”.(São Paulo, Francisco Alves, 1960)
Em todo aquele dinamismo e agito do Fórum Social Mundial, uma instalação no canto de um dos prédios me chamou a atenção.
Uma Instalação feita de pedaços de madeira descamada, partes de papelão, um saco grande de lixo no canto direito com restos de papel, jornais, garrafas, latas, lixo… e uma inscrição acima “Quarto de Despejo”. Logo vi que se referia à escritora favelada Carolina de Jesus. Me comovi, cheguei mais perto. No interior do quarto vi a tentativa, muito bem sucedida de reproduzir de uma outra forma, todo um contexto, toda uma história de vida de uma mulher que poderia ter passado como tantas e tantos outros cidadãos do mundo como invisíveis e descartáveis. Pratos desbeiçados, canecas de ágata com sinais de uso, chaleira, fogãozinho, peças de roupas remendadas, escritos em cadernos já usados, cama construída com restos de madeira e de colchão, bule de café, pinico, balde para armazenar a água, tudo arrumadinho, máquina de escrever, livros descartados e seus livros publicados.
Se Carolina não tivesse sido descoberta por acaso na década de 60, pelo jornalista Audálio Dantas, sua história tão cruel e injusta, retrato de milhões de brasileiros que vivem em condição sub-humana e tão cruel, não teria sido desvendada.
Carolina revelou-se uma escritora de sensibilidade e força incrível, traduziu com profundidade o Grito dos Excluídos, não só seu, mas a nua realidade de muitos outros milhões de cidadãos espalhados pelo mundo.
Formou-se na rua, criou 3 filhos, aprendeu a ler e exercitou sua leitura com os livros deixados no lixo. O verso em branco das folhas usadas e restos de papel de pão, lápis e caneta foram as armas com que escrevia seus sentimentos e dores.
Quarto de Despejo foi traduzido em várias línguas e ganhou o mundo.
Como educadora e educadora popular que sou*, fiquei profundamente tocada com o trabalho igualmente sensível, respeitoso e profundo com que a professora da UFBA Sandra Marinho, desencadeou uma proposta introdutória na grade curricular “Tópico de Educação”. Com um projeto de investigação e de reflexão sobre o papel do educador, instigou seus alunos a pesquisarem e conhecerem Carolina de Jesus, como símbolo do contexto e do compromisso que os educadores deveriam se pautar.
Mais uma vez me comovi com o compromisso de Elza Maria Machado, estudante de pedagogia, representando algumas alunas e alunos que abraçaram este desafio. Com ela conversei um pouco e vi sua dedicação permanente em, junto com Carolina de Jesus, oferecer um cafezinho e chamar a atenção dos muitos participantes do Fórum Social Mundial (inclusive uma mãe militante que levou seus filhos de 8 e 10 anos), para o Quarto de Despejo. Toda sua concretude traduzia o motivo que movia os participantes do FSM que ali se detinham: estar presentes: trocar experiências e saberes, unir força, fortalecer as lutas de resistência, agir pela superação das desigualdades sociais.
O lema do Fórum Social Mundial “Resistir é Criar, Resistir é Transformar”, ali se fez presente. Outra linguagem é necessária, desafio fundamental dos educadores, militantes e lideranças que pretendem atingir corações e mentes de muitas outras pessoas que ainda não puderam identificar em si ou no outro a realidade da Carolina, para se somarem nesta luta cada dia mais necessária, por uma Educação Política Libertadora.
*Cecília Figueira é educadora popular