No Rio de Janeiro, o primeiro trimestre de 2019 teve o maior número de mortes cometidas por policiais desde 1998, ano em que o Instituto de Segurança Pública do estado passou a registrar a estatística. Antes chamados de “autos de resistência”, as atuais “mortes por intervenção policial” somaram 434 casos nos primeiros três meses deste ano. O número corresponde a uma taxa de 2,5 mortes causadas por policiais a cada cem mil habitantes, ou sete pessoas por dia.
Pesquisadora da organização Justiça Global, Daniela Fichino afirma que um dos elementos que explica o aumento da letalidade dos agentes de segurança do Rio é a legitimação da violência por parte dos governos: “Temos vivido uma manipulação do medo. Pelo medo, as coisas mais arbitrárias acabam se justificando aos olhos do senso comum. Isso é um jeito histórico de governar: pelo medo e pela truculência”, diz.
Em sua opinião, o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), e o ministro da Justiça, Sérgio Moro, têm relação direta com o aumento do número de casos. “O governador do estado, ao sinalizar uma política de extermínio, está conferindo autorização, como comandante das polícias do estado, para que essas execuções aconteçam”, afirma.
A reportagem entrou em contato com os gabinetes de Witzel e Moro e aguarda retorno de ambos sobre as acusações feitas pela pesquisadora.
Confira abaixo os melhores da entrevista ao Brasil de Fato:
Brasil de Fato: Nos três primeiros meses de 2019, a polícia do Rio matou sete pessoas por dia. O que explica a quebra desse recorde?
Daniela Fichino: Nós não estamos diante de números quaisquer. É um recorde desde que o índice é monitorado pelo Instituto de Segurança Pública, em 1998. A gente está com um governo do estado no Rio de Janeiro que foi eleito com a plataforma de extermínio. Desde o início, proclamou essa pauta como central em sua agenda política e tem desempenhado aquilo que prometia macabramente durante a campanha.
O governador chegou a declarar que faria uso de snipers ainda no processo eleitoral, e depois declarou que esses agentes já estariam em uso, o que evidências periciais comprovam no caso de Manguinhos, por exemplo. Nesses meses, nós passamos por algumas chacinas, como a do Fallet…
O governador não tem competência para modificar a legislação penal. Mesmo assim, ele tem influência nesses números?
Com certeza. A gente passou da época da promessa, de um discurso provocativo para os órgãos de imprensa para mexer com os anseios e medos da população. Agora estamos falando de discursos do comandante das tropas.
O governador do estado, ao sinalizar uma política de extermínio, está conferindo autorização, como comandante das polícias do estado, para que essas execuções aconteçam.
Nesse sentido, o pacote proposto por Moro, na questão da legítima defesa, também influencia?
O pacote do Moro é uma afronta aos direitos humanos e vai incentivar que coisas nesse sentido aconteçam não só no Rio de Janeiro, mas em várias partes do país. A alteração legal para que se ampliem os mecanismos de legítima defesa, ou sua interpretação, é na prática uma autorização para execução. Isso é muito grave.
Tudo isso certamente pesa. Existe gravidade nas declarações de Witzel porque elas deixam de ser apenas declarações e passam a ser, de fato, ordens dadas aos seus comandados.
Parte da população, entretanto, vê positivamente o incremento da letalidade policial. Existe alguma melhora na segurança pública como efeito desse tipo de atuação?
Não há qualquer efeito positivo para a segurança pública. Não se resolve os problemas graves de segurança pública que existem na cidade do Rio de Janeiro e no país inteiro pela autorização do extermínio ou pela guerra às drogas, que é uma guerra à juventude negra. A gente precisa destacar o perfil racial dessas vítimas.
Esses 80 tiros que foram disparados contra um carro de família em Guadalupe, que foram tão comoventes, são produto da lógica do abate que é proclamada pelas declarações do Witzel e pelo pacote Moro. É um produto direto dessa lógica. Independentemente se quem disparou foi o Exército ou a polícia. É o que eles chamam de autorização para o abate: um termo aplicado para os animais.
Quando a gente fala que existe um genocídio em curso, não é uma fala subjetiva, não é opinião. É baseada em fatos. O perfil de vítimas assassinadas pela polícia é majoritariamente composto por jovens negros. É muito grave nós termos uma polícia que se especializa em exterminar uma parcela da população.
A gente caracterizar o narcotráfico com esse espectro de raça e classe é deturpar. É do interesse de uma narrativa que oculta quem verdadeiramente lucra com o mercado da guerra e das drogas. Temos vivido uma manipulação do medo. Pelo medo, as coisas mais arbitrárias acabam se justificando aos olhos do senso comum. Isso é um jeito histórico de governar: pelo medo e pela truculência.
Essa suposta guerra insiste em um modelo de repressão e de morte que acaba ocultando as causas reais da violências, [cuja solução] têm a ver com a nova política de drogas, com o efetivo controle e investigação sobre o tráfico de armas, com mecanismos muito mais estruturais.
Você mencionou a questão do tráfico de armas. Esse não é um dos pontos que indica que há interesses econômicos envolvidos nessa situação?
A indústria das armas é uma das mais lucrativas do mundo. Os interesses são fortíssimos. Não à toa também as medidas de flexibilização da posse de armas.
Não existe indústria de fundo de quintal para fabricação de fuzis AR-15. As mesmas empresas que fabricam para uso militar e policial fazem com que essas armas cheguem indiretamente nas mãos da população em geral. Aí é importante ressaltar o desvio de armas que chegam na polícia e no Exército. Essa falta de controle faz com que mercados ilegais paralelos também sejam muito lucrativos.
E como se desdobram essas mortes? Elas são investigadas?
É escandaloso. Essas mortes não são apuradas. O sistema de Justiça é completamente silente em relação às mortes protagonizadas pela polícia. Vai desde o Ministério Público, hoje o Ministério Público Militar, até o Poder Judiciário. O padrão de diversos anos é o de não resposta.
Isso começa desde a averiguação. A perícia é feita de maneira a ocultar as provas. Aconteceu recentemente no Fallet, quando a cena da perícia foi totalmente maculada. A cena do crime foi completamente conspurcada.
Então, não se sabe sequer se os mortos tinham ou não envolvimento com atividades ilícitas?
Não dá para ter qualquer clareza sobre a possibilidade de justificativa para as mortes. Se havia ou não ligação com atividade tida como ilícita não é justificativa o bastante para uma pessoa ser assassinada, mas eles não conseguem comprovar nem a cena de [que houve] confronto.
Edição: Daniel Giovanaz
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