Pariu Mateus que o embale: a criminalização de mulheres mães solteiras, divorciadas, viúvas e abandonadas

Pintura: Madonna de Alessandra Cimatoribus

Segundo uma matéria da Mídia Ninja, veiculada no sítio rebaixada.org, em 26 de março de 2014, feministas de Moscou realizaram um ato contra as declarações do deputado Aleksandr Silin, que chamou as “mães solteiras” de “putas” e “escórias” da sociedade, humilhou seus filhos e ainda propôs a esterilização das mulheres que “não desejam se casar”. Na capital do país que já foi palco da Revolução Russa (1917), o ato recolheu apenas 500 assinaturas em uma moção de repúdio às declarações do deputado e que também exigiu que o Ministério Público o condenasse por crime previsto no artigo 282 do Código Penal: “declaração de ódio a um grupo social”.

Nesse mesmo período, o Opera Mundi noticiou que a primeira-ministra da Austrália, Júlia Gillard, pediu desculpas pelas adoções forçadas realizadas entre as décadas de 1950 e 1970, quando centenas de “mães solteiras” foram dopadas, atadas às camas de hospital e forçadas a assinar os papéis de adoção sem poder ver seus filhos, que eram entregues sem documentos a outros pais.  Na Irlanda a situação também caminha para uma desculpa oficial, de acordo com a agência de notícias AFP. Recentemente, o Secretário de Estado de Educação, Ciaran Cannon, pediu a abertura de uma investigação sobre a descoberta de quase 800 esqueletos de crianças, enterradas sem caixão em uma fossa comum, ao lado de um antigo convento católico de Tuam, que abrigou entre 1925 e 1961 jovens “mães solteiras”. Essas jovens eram obrigadas a ter seus filhos nessas instituições, a trabalhar feito escravas em lavanderias e, na maioria dos casos, a entregar o filho para adoção. Segunda a historiadora Catherine Corless, as crianças que ficavam nos conventos, como o de St. Mary, em Tuam, serviram de cobaias para testes de vacinas da multinacional GlaxoSmithKline (GSK).

Essas matérias retratam, junto a outros tantos exemplos em vários países, a história recente de privações e humilhações de toda sorte contra a mulher que é mãe e chefe de família e domicílio, genericamente (des) qualificada de “mãe solteira”. Termo que não compreende a pluralidade dos arranjos familiares contemporâneos, pois a ausência de um cônjuge\pai pode ser por opção ou por ocasião: viuvez, divórcio, abandono. Aqui, onde se canta não existir pecado do lado de baixo do equador, nossos arquivos públicos estão cheios de códices documentais que retratam trajetórias e estratégias de sobrevivência, desde os tempos coloniais, de mulheres sozinhas com filhos que sobreviveram valendo-se da construção de redes de apoio para criar seus filhos, enquanto muitas outras mulheres viram-se obrigadas a deixarem seus filhos nas rodas dos expostos ou entrega-los à adoção forçada. Histórias que ainda precisam ser contadas, aliás.

De lá para cá, do nosso período colonial até hoje, o mundo felizmente mudou – como demonstram algumas desculpas oficiais mencionadas acima, mas aqui no Brasil algumas questões em relação à mulher, sobretudo em relação à mulher mãe chefe de família (monoparentalidade feminina) ainda permanecem ocupando alguns corações e mentes na chave da (i) moralidade ou da piada com aquilo que não se consegue resolver na realidade. Um passeio rápido pela internet e encontraremos dezenas, centenas de páginas que pregam ódio às mães solteiras e nos transformam em mercadorias de segunda mão, chegando ao absurdo de uma página com o título “quer sexo rápido ainda hoje? Escolha uma mãe solteira e boa foda” – com uma galeria de fotos de mulheres com seus filhos.

Mas a misoginia, o machismo e o preconceito tem muitas faces, como sabemos. Em matéria de junho de 2011, por exemplo, a Revista TPM, uma publicação que se pretende descolada e moderna, publicou uma reportagem intitulada “Namore uma mãe solteira”. Nela, as autoras, duas mulheres(!), sugerem a criação de uma campanha “divertida e descontraída” para homens namorarem “mães solteiras”, pois há vantagens para eles, os homens: a mãe solteira não tem pressa para casar; a mãe solteira não tem pressa para ter filhos e a mãe solteira não tem tempo para “grudar no pé do homem”. E tudo isso porque a mãe solteira já tem filhos.

Na lógica machista, misógina e perversa das autoras, esses filhos serão “assumidos” pelo novo companheiro da mulher mãe, desconsiderando a multiplicidade de arranjos familiares contemporâneos em que todas as crianças das famílias monoparentais femininas já têm pai: alguns moram em casas separadas e mantem contato com seus filhos; outros moram em estados diferentes e mantem contato na medida de suas possibilidades; muitos abandonaram suas companheiras durante a gravidez ou assim que a criança nasceu e agem, com o aval da sociedade brasileira, como se a paternidade de uma criança em gestação ou nascida fosse uma escolha, uma opção.

Assim, para as autoras, essa multiplicidade de arranjos familiares não é uma questão a ser considerada, pois a verdadeira “natureza” da mãe solteira é ter qualidades para agradar o homem que, ao se relacionar com ela, irá a um só tempo restituí-la socialmente da “imoralidade” de seu estado civil (divorciada, viúva ou abandonada) e “resgatar” a criança do pecado de sua condição de “bastarda”. Cumpre destacar que esse termo infame – bastardo – pode designar tanto uma filiação adulterina, uma filiação entre pessoas solteira, quanto a “degeneração da espécie”, no sentido de não ser “puro” em relação à espécie a que pertence.

Felizmente, esse termo caiu legalmente em desuso aqui no Brasil no Código Civil de 2003. No entanto, algumas pessoas insistem em reabilitá-lo em contextos diversos. Por ocasião do debate sobre a redução da maioria penal, em 23 de abril de 2015, o psicanalista Contardo Calligaris, escreveu no jornal Folha de São Paulo: “A ideia de que a redução da maioridade penal seja um instrumento de dominação de classe é um estranho disparate. Alguém acredita que a delinquência seja um efeito da pobreza?”. Mais adiante, ele mesmo responde à sua indagação, argumentando que a delinquência juvenil é um efeito da “degenerescência moral” na qual muitas crianças brasileiras são criadas: pobreza somada às implicações de crescer em uma família “desestruturada”, na imensa maioria das vezes sem pai presente. Cumpre destacar que o psicanalista que elabora esse tipo de ideia já declarou na grande imprensa ter se casado sete vezes, tido alguns filhos e não convivido com a maioria deles porque veio morar no Brasil.

O que o psicanalista desconsidera é que a condição econômica (baixa) adjetiva e criminaliza a família chefiadas por mulheres sozinhas. Mais recentemente, o posicionamento política também. Por ocasião das manifestações contra a corrupção brasileira nas quais algumas pessoas usaram roupas com as cores da bandeira nacional e gritaram palavras de ordem racistas, xenófobas, preconceituosas e cheias de ódio, um estudante de jornalismo chileno fez um vídeo em que ele entrevistou várias pessoas da manifestação ocorrida no Rio de Janeiro, em 16 de agosto de 2015. Entre os entrevistados, um senhor elaborou a seguinte ideia sobre o que ele considera ser comunista e petista: trata-se de um grupo de pessoas que cresceu sem a figura paterna em casa, pois todos eles foram mortos pela ditadura civil e militar brasileira. Assim, sem a “força” da autoridade do pai em casa e criados apenas pelas mães, são pessoas “degeneradas”, corruptas por natureza e perigosas. Pessoas que devem ser “eliminadas” do país, segundo esse senhor.

Infelizmente, essas não são as únicas demonstrações de preconceito, ódio e maneiras de criminalizar as mães chefes de família ainda hoje, mas os exemplos aqui citados nos ajudam a pensar algumas questões urgentes. A primeira delas é que o nosso estado civil – mães solteiras, viúvas, divorciadas, abandonas – é contingencial, de maneira que ele não pode nos qualificar como mulheres mães chefes de famílias, pois podemos alterá-lo a qualquer momento e assim que quisermos. Isso tem uma implicação relevante em relação às reportagens/campanhas como a das autoras na Revista Trip: nosso maior desafio está longe de conseguir um/uma companheiro/companheira para nos redimir socialmente – até porque não precisamos de redenção moral por nada.
O nosso maior desafio é a desconstrução por séculos da imoralidade e bastardia que pesam sobre nós e nossos filhos. Não precisamos de marido, mas precisamos de respeito por nossas escolhas, contingências e, sobretudo, por nossas crianças. Precisamos de escolas acolhedoras e empáticas em relação às novas e múltiplas configurações familiares na contemporaneidade. Precisamos também e sobretudo de políticas públicas que nos garantam condições de autonomia para criarmos nossas crianças com dignidade e acesso amplo e irrestrito à educação, saúde, moradia e cultura de qualidade.

A segunda questão é que de acordo com os dados do IBGE/PNAD (Plano Nacional de Amostra Domiciliar), ambos de 2013, a monoparantalidae feminina responde por 53% dos arranjos familiares brasileiros e mesmo assim as mulheres negras e chefes de famílias ainda são o setor de maior vulnerabilidade social do país, pois a maioria das companheiras mulheres mães também fazem parte das estatísticas dos processos de feminização e racialização da pobreza no Brasil, e muitos de seus filhos fazem parte das estatísticas carcerárias e de adoção no Brasil.
Trata-se de um problema social que teve sua origem no escravismo brasileiro por mais de três séculos e no racismo até os dias de hoje. Dados recentes do IBGE e do PNAD demonstram que a feminização e a racialização da pobreza diminuíram nos últimos 13 anos em razão das políticas públicas compensatórias e com contrapartidas, mas ainda assim permanecem como o setor de maior vulnerabilidade social do país. Problemas sociais estruturais como esse requerem um país com uma Democracia forte e políticas públicas de reparação na longa duração, sem cortes no orçamento e nem reformas na Previdência e na CLT, que acabarão jogando mulheres e crianças na miséria absoluta.

Por isso, ter ou não um homem ao nosso lado é o menor dos nossos problemas. Precisamos nos organizar e lutar contra todo tipo de preconceito que pesa sobre nós e nossos filhos e lutar diariamente por políticas públicas específicas para romper esse longo processo de vulnerabilidade social ao qual muitas mulheres estão submetidas.

Acontece amanhã em Salvador – Bahia a Audiência Pública pela Comissão da Mulher, com o tema “Políticas Públicas e a monoparentalidade feminina.”

*Patrícia Valim é Professora Adjunta de História do Brasil Colonial na Universidade Federal da Bahia. É, sobretudo, mãe de Ana Carolina (24), Maria Eduarda (20) e Bento (quase 5 anos), e avó de Maria Antônia (3 meses). É militante na Monoparentalidade Feminina desde que engravidou de Bento e não quis vincular maternidade e matrimônio.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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