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Política

Os meninos não morreram por falta de alvará, foi o dinheiro

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POR FERNANDO BRITO · 08/02/2019

Os meninos do Flamengo não tiveram uma morte horrenda por “falta de alvará”. Falta de alvará não pega fogo em alguns segundos, falta de alvará não impede que garotos daquela idade, atletas,não tenham chance de fugir de um incêndio que se inicia, falta de alvará não transforma aqueles adolescentes no que viraram, mercadoria estocada em contêineres para ser vendida, daqui a pouco, a peso de ouro.

Pois foi isso que matou os moleques bons de bola: serem bons de bola e o fato de o Brasil ter voltado a ser um exportador de commodities humanas, cavadas por toda a parte e “peneiradas” por uma associação entre clubes de futebol e “empresários” picaretas, à procura do que possa dar lucro, lucro grande, milionário, com meninos que. com sete, oito anos, são privados da infância porque, além de representarem esta possibilidade, representam também a possibilidade, decerto a única, de tirar a família da pobreza.

Sob os olhos complacentes da mídia, este garimpo se desenvolveu. Distribuíram-se “franquias” de “escolinhas de futebol” pelas periferias e pelo interior, com pouco ou nenhum interesse desportivo ou educacional, mas sempre atentas a um garoto que “pode dar caldo”. De lá, acabam indo para as “peneiras finas”, como a que se incendiou na madrugada de hoje.

Semana passada, por acaso, dirigindo, escutei um programa na CBN onde o ex-jogador Zé Elias e dois psicólogos do esporte falavam da pressão sobre os garotos que vão ser filtrados. E como tudo o que importa é o “corte” que faz, de cem, virarem três ou quatro. Em nenhum momento se destacou a formação de guris que eram pré ou adolescentes, exceto pelo que tentavam administrar, cheios de medo, das relações com dinheiro e ambições. Escola não era um elemento significativo nas narrativas.

Nada contra o talento, ainda mais para quem, desde criança, embora sem tê-lo nos pés, sempre gostou do futebol bem jogado. Mas tudo em favor dos adolescentes, que não podem ser tratadas assim. Não podem ser apartada das famílias, de seu ambiente cultural, de suas âncoras de formação da personalidade.

Não pode haver o “colégio interno de boleiros”.

A falta de alvará e as 30 autuações do “Ninho do Urubu” só importam por revelarem a cumplicidade com que são tratados os grandes clubes de futebol, porque isso nunca foi notícia, porque a ninguém interessava indispor-se com um grande clube, assim como não havia quem fosse se indispor com a Vale.

O que matou os meninos, está evidente, foi morarem dentro de um contêiner de porta minúscula, forrado de plástico que “lambeu” como o papel fino de um balão japonês.

Não faltavam, na construção do “Ninho do Urubu”, profissionais e técnicos que dissessem o quanto aquilo era inseguro. Mesmo que fosse para tratar adolescentes como mercadorias preciosas que eram, para os donos da bola.

Se são preciosos, não podiam ser empilhados sem zelo.

Sem o amor e o cuidado que toda criança merece.

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31 Comments

31 Comments

  1. Samuel Santos

    10/02/19 at 13:33

    Parabéns pela seriedade, verdade, jornalismo sério e respeito com a vida dos meninos e com seus pais, um alerta a sociedade que não foi roubo de orgaos humanos mas desrespeito a dignidade com a complacência da CBF

  2. Paulo Andrade

    10/02/19 at 15:08

    Eles eram ainda muito novos pra ficarem um tomando conta do outro.

  3. Claudio Manoel do Nascimento

    10/02/19 at 15:23

    Boa tarde ! Eu penso que depois da Lei Pelé fez ainda mais transformar jovens promessas em mercadorias , ainda em containers como se fosse contrabando.
    Digo pois o Flamengo sim tem que ser responsabilizado como exemplo á outros clubes principalmente quando se falavem categiria de base.
    Antes o nosso desejo era poder ser médico, arquiteto, engenheiro , etc.
    Mas pelo que se vive o país, com suas misérias o sonho se volta principalmente ao futebol ou outros esportes de Elite .
    Garotos que sonham tirar suas familias da escuridão da miséria e levá -los aos holofotes do sucesso promissor.
    Jovens que precisam desde cedo a saber a verdade desde o inicio para que nao queime como uma simples folha de papel o realizar do sonho de sua vida.

  4. Lúcia Rodriguez Seara

    10/02/19 at 16:46

    Muito bem expressado a verdade deste país na qual a ganância prevalesce.

  5. Régis Ludwig

    10/02/19 at 17:39

    *Estou tentando entender…*

    Você coloca dez “crianças” em contêineres, com um ar condicionado gambiarra, em uma área da empresa Flamengo, que deveria ser um estacionamento, que não tinha alvará para construir alojamento algum, sem multas do ministério do trabalho (extinto), carbonizando dez vidas promissoras, que eram inclusive empregados do grupo. E a mídia coloca *#forçaflamengo*?!!
    Seguindo a lógica deveria eu agora colocar *#forçavale?!*
    Este país é um país muito, muito errado!
    Este país precisa é de mais Justiça!!!

    • Leticia

      11/02/19 at 8:03

      Regis, entendo e compartilho da sua revolta! Mas eu prefiro ver o #forçaflamengo como um apoio às familias dessas crianças que são flameguistas assim como à todoa os torcedores! O Flamengo é muito gigante para que a gente pense só na diretoria! Ao contrário, para esses que venha a punição merecida!!!

  6. Eduardo faia

    10/02/19 at 17:41

    Pura verdade/realidade nesse mundo do esporte como um todo. Não só no futebol como em todas as modalidades . Ocorre o mesmo pra formação de atletas. Inclusive a mídia/permissiva que temos , chega ao ponto de criar histórias, anos antes da pessoa despontar como profissional (para depois vir com a historinha. Vcs lembram de fulano?
    – pois é há anos atrás mostramoss “ele” assim…..
    Cabe a nós mero mortais ORAR por essas mortes prematuras, e clamar a DEUS por uma justiça que castigue a todos envolvidos em formato parecido.

  7. Ederson

    10/02/19 at 17:48

    Até que enfim alguem disse algo coerente sobre esse crime que matou 10 criancas

  8. Andresa tasinaffo

    10/02/19 at 18:08

    Muito serio, agora q aconteceu essa tragédia eles coloca a família em um hotel, porq ñ colocou esses meninos de ouro , ñ só de futebol mas ouro para seus pais heranças ñ avia valor nesse amor.Agora destruiu as familia manchou esse clube com sangue inoncentes, ñ valia apena .País antes de deixar seus filhos em algum lugar é bom ver antes.

  9. Fábio Fonseca

    10/02/19 at 18:13

    Excelente texto.

  10. Berenice Angélica

    10/02/19 at 18:31

    Parabéns pelo texto tocou fundo na ferida

  11. Luluzinha

    10/02/19 at 20:51

    Absurdo, com pode deixar esses garotos em um contêiner, Flamengo time milionario, ganancioso, poderia ter colocado em um local digno para esses garotos, a justiça tem q punir severamente esse clube, lamentável.

  12. Aline Nunes

    10/02/19 at 21:11

    Parabéns pelo texto, não vemos isso na mídia sensacionalista que só pensa em dinheiro também. A verdade é que no mundo de hoje tudo é movido pelo dinheiro, “infelizmente”.

  13. Tatiele Rocha Sena

    10/02/19 at 21:12

    PARABÉNS pelo texto, só li verdades.
    Triste realidade.

  14. José Antonio Ferraz

    10/02/19 at 21:37

    Aquele lugar era um canteiro de obras, cheio de material de construção, de longe parecia um alojamento, principalmente de atletas ,o que é pior um grande clube.

  15. Neide Aparecida de Moura Bomtempo

    10/02/19 at 22:02

    Cláudio Manoel do nascimento..faço minha suas palavras!

  16. Artur Moret

    11/02/19 at 0:35

    Belo texto.
    No futebol aconteceu agora, na natação uma atleta denunciou abuso sexual, quantas histórias, quantos mal trato com a juventude.
    Atletas, ou aqueles que querem se-lo, passam sufoco; a história do estudante que estudava dedent do banheiro de um posto de gasoliba. Sao histórias, sao problemas de um pais injusto que não tem futuro para aqueles que não tem berço.

  17. Filomeno Rodrigues

    11/02/19 at 1:09

    Verdade, bem colocado todos os pensamentos, vivemos em um mundo, em que a ganância é sempre maior que o respeito pelo ser humano.

  18. Rosimere França Marinho Augusto

    11/02/19 at 1:21

    Como flamenguista meu total repúdio à falta de humanidade e respeito por esses meninos. Que a justiça seja feita e que a diretoria do clube seja severamente punida.

  19. Verônica Lopes

    11/02/19 at 3:54

    Revolta total! Flamengo matou essas crianças que sonhavam brincando e brincavam sonhando. Infelizmente não vejo nenhuma punição para esse ou outros clubes desse nível já que no nosso Brasil o “poder, fama e dinheiro” falam mais alto.

  20. Jôze

    11/02/19 at 6:46

    Compartilho da sua opinião, ótimo texto.

  21. João Pedro de Almeida Silva

    11/02/19 at 6:54

    Parabéns… Ótima reportagem, posicionamento imparcial…

  22. Flávia

    11/02/19 at 7:12

    Vi pais e familiares dizendo “a única coisa que ele queria era dar um futuro melhor para seus pais”. Todos viam esses meninos como fonte de renda.
    É hipocrisia culpar os apenas o clube. Temos um problema muito sério na natureza do brasileiro: nos faltam princípios.

  23. Jaqueline Silva da Rocha

    11/02/19 at 8:19

    Verdade! Não havia um adulto ali, janelas com grades, imagina o desespero …

  24. Eduardo Rafael

    11/02/19 at 8:52

    Eu tenho plena certeza que se fosse um clube aqui do nordeste, hoje estaria interditado, embargado ou até mesmo extinto pela justiça brasileira, mas como se trata do time do flamengo a mídia trata como uma fatalidade.

  25. Renato

    11/02/19 at 8:54

    O repórter Sabiá manda perguntá, tinha disjuntor no circuito dos aparelhos de ar condicionado? Os crimes dos poderosos no Brasil são tratados pela mídia como tragédias! A cadela do fascismo está sempre no cio. O muro fica cada vez mais estreito, tão fino que em breve nele só caberá a pequenez dos covardes.

  26. Mercia

    11/02/19 at 9:02

    Depois de tudo ainda tocaram o hino do time no enterro e colocaram a bandeira sobre o caixão. Homenagem à irresponsabilidade? Futebol é negócio dos grandes, há muito dinheiro em jogo.

  27. Joao

    11/02/19 at 9:36

    Esse oba oba, que a empresa fica com o flamengo de time rico do país. Só que o clube está caindo os pedaços. Pura propaganda enganosa, como sempre foi.

  28. Aline Cunha

    11/02/19 at 10:26

    Parabéns pela ética e justiça prestada nessa matéria! Ver os noticiários prestando solidariedade aos assassinos e milhares de pessoas colocando fotinho e hastag ridícula e sem vergonha desejando “força Flamengo”, me revoltaram! Que haja justiça contra esses assassinos, que é o nome correto! #CrimedoFlamengo

  29. Renata Netto

    11/02/19 at 11:07

    Concordo em parte com o texto. Mas também não podemos deixar de comentar e até informar que para toda e qualquer obra é necessário um responsável técnico, que geralmente é um arquiteto. Ele, o arquiteto é responsável inclusive por especificações de sistema construtivo para cada situação, em atendimento as normas brasileiras ( que vem sendo esquecidas sem fiscalização eficiente), Plano Diretor e Código de obras. Tanto a prefeitura, o clube e os bombeiros tem sua parcela de culpa sim. Projetar com segurança é uma prevenção contra situações como essa. Fico extremamente chateada em ver que em nenhum jornal que li ou assisti não tenham chamado o CREA ou o CAU para um debate mais aprofundado sobre esse tema que tem passado despercebido. A boate Kiss foi uma prova de negligência total… No projeto do especialista deve haver sim a especificação perante normas vigentes do que é necessário por tipo de edificação. São vários os problemas que temos hoje com a falta de fiscalização ou corrupta, das incorporadoras que fazem do ofício técnico civil uma vergonha quando comparado a padrões mínimos de desempenho de edificações e componentes delas. Para se ter uma ideia, hoje existe padrão de desempenho para portas, inclusive portas com certificação. Onde pela NBR 15575 é exigida e nos empreendimentos, até mesmo considerados de luxo, são compradas com nenhum desempenho e se tiver, com o mínimo. Utilizam várias artimanhas para burlar a norma, muitas vezes comprando produtos sem certificação existente no mercado, para comprar um subproduto mais barato e apresenta laudo, podendo ser considerado um crime. E os maiores prejudicados como sempre… Consumidor final, ou seja, você, eu…
    Até quando a arquitetura e urbanismo será levada como matéria de decoração ?

  30. dionatan

    11/02/19 at 22:03

    Muito bem colocado, excelentes palavras, força para os familiares…😧😧

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Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

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Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

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#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

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Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

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Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

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Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

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