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Os caminhoneiros e o mercado

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Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com charge de Bira Dantas

Na última semana, todos assistimos o desenrolar de um novo capítulo da crise brasileira, talvez aquele que até aqui mais tenha feito a sociedade civil sangrar. Cada vez mais fica claro que golpe é aquele tipo de coisa que custa caro para todos, para golpistas e legalistas.

Os golpistas sofrem por serem golpistas e os legalistas por serem covardes. O golpe não é um evento. É um processo que ainda não terminou.

É óbvio que estou falando da “greve dos caminhoneiros”, que no país inteiro bloqueou as principais estradas e rodovias, causando um gravíssimo problema de abastecimento.

Hoje, quando o movimento dá sinais de esvaziamento, talvez seja possível visualizá-lo com mais clareza e compreender o seu lugar na crise brasileira contemporânea. É isso que tento fazer neste ensaio, reconstruindo a cronologia dos acontecimentos, analisando com cuidado as agendas que foram apresentadas, os interesses envolvidos.  

O que o tempo inteiro esteve em jogo foi a disputa pelo Estado. Nesse jogo, os caminhoneiros entenderam o poder que possuem sobre a sobrevivência material da sociedade. De posse desse poder, eles acuaram o governo o golpista, estrangularam a nação e venceram. Mas não foram os únicos vencedores.

O mercado também venceu, já que Pedro Parente, presidente da Petrobras e grande responsável pelo colapso energético que estamos vendo no Brasil, não teve o nome citado por aqueles que ocuparam as estradas brasileiras.

Sem dúvida, a grande derrotada foi a sociedade brasileira, que perdeu sorrindo, gozando. A sociedade brasileira comemorou a própria derrota, aplaudindo os caminhoneiros, num surto de masoquismo coletivo.

É importante acompanhar com cuidado a cronologia dos acontecimentos, fato a fato, passo a passo. Crônica factual é igual a canja de galinha: sempre ajuda.

Divido a greve dos caminhoneiros em três momentos distintos:

1° momento – O protagonismo da ABCAM

O marco inicial do movimento se deu no dia 18/5, uma sexta-feira, quando a Associação Brasileira dos Caminhoneiros (ABCAM) fez uma representação ao governo, exigindo o fim dos impostos sobre o diesel e agendando o início da greve para o dia 21/5.

Já há uns bons seis meses que estavam tensas as relações entre o governo federal e a ABCAM. Mas como o governo federal tinha problemas mais urgentes, como salvar o coro de Michel Temer das duas flechas disparadas por Rodrigo Janot, a poeira foi sendo varrida pra debaixo do tapete.

A atuação de Rodrigo Janot na crise brasileira ainda precisa ser estudada com mais cuidado. Não é isso que faço. Não aqui.

Não custa lembrar que a ABCAM apoiou o golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma. Ninguém apoia um golpe de Estado se não alimenta expectativas de ganhar algo com o novo regime de poder. O governo golpista de Michel Temer frustrou as expectativas da ABCAM.

No início, portanto, a “greve dos caminhoneiros”, tão celebrada à esquerda e à direita, foi conflito travado entre golpistas.

Percebam, leitor e leitora: a ABCAM, entidade que representa também os donos das transportadoras, protestou contra a carga tributária. Nada mais coerente e óbvio do que patrão protestar contra imposto.

A essa altura, não existia agenda política clara nas reivindicações do movimento. Não tinha “fora Temer”, não tinha “Lula Livre”. Também não tinha “intervenção militar já”. A pauta era pela redução de impostos. Apenas isso.

A ABCAM também não questionou a forma como Pedro Parente vem administrando a Petrobrás. A pauta era liberal e exigia redução de impostos.

Em 19 de maio, aconteceu mais um aumento no preço dos combustíveis, o que azedou ainda mais as relações entre a ABCAM e o governo.

Esse aumento já estava previsto no plano de operação da Petrobrás. Mesmo com uma crise grave, a empresa não mudou o plano. Segundo Pedro Parente, a estatal deve ser autônoma e agir por “motivações técnicas e não políticas”. Como se existisse motivação técnica que não seja também política.

Ou seja, para Parente, a empresa pública criada para controlar um setor estratégico para o desenvolvimento nacional deve obedecer às leis do mercado e não ao interesse público.

Isso gerou um problemão para o governo, já que exatamente no momento em que estava acontecendo a negociação com a ABCAM a Petrobrás, agindo por conta própria e obedecendo a “lei do mercado”, aumentou o preço do combustível.

É claro que Michel Temer tentou impedir o aumento, adiá-lo. Provavelmente telefonou para Pedro Parente e ouviu um sonoro “não se meta aqui no meu feudo”. Quando o governo é ilegítimo acaba não sendo respeitado nem pelos aliados.

É irônico que o governo que desregulamentou a Petrobrás tenha se tornado refém das “leis do mercado”. O mercado é ingrato com os seus provedores.

A ABCAM, então, radicalizou sua posição e a greve começou no dia 21 de maio. Ou melhor: até aqui não se tratava de greve. Era lockout mesmo.

2° momento – A horizontalidade do WhatsApp e o protagonismo das bases da categoria

Já no dia 21 de maio foram registrados bloqueios em estradas e rodovias em todo território nacional. Começaram os transtornos: falta de combustível nos postos e produtos nos supermercados.

Percebendo que a situação era grave, o governo decide sentar-se à mesa com aqueles que eram considerados os líderes dos caminhoneiros. Um acordo foi fechado, assinado, suas resoluções publicadas em edição extraordinária do Diário Oficial.

Pra “ajudar”, Pedro Parente autorizou um pequeno desconto no preço do diesel, deixando claro que era uma concessão pontual e que isso não voltaria a acontecer. Afinal, segundo ele, a Petrobrás deve atender às leis do mercado.

Os representantes dos caminhoneiros saíram da reunião dando-se por satisfeitos e prometendo o fim do movimento. O governo veio a público dizer que a situação estava resolvida.

As estradas continuaram bloqueadas e o desabastecimento se aprofundou. O governo ficou com cara de bobo, desmoralizado.

A essa altura, a ABCAM não pautava mais as estradas.

A ABCAM puxou o movimento, mas perdeu o controle sobre ele. A base se autonomizou e aprofundou suas reivindicações: diminuição dos impostos, redução dos pedágios e intervenção militar.

Não dá pra saber se a bandeira da intervenção militar estava sendo levantada por todos os caminhoneiros. Até acredito que não. Porém, é inegável que os grupos intervencionistas foram fortes o suficiente para vincular a greve dos caminhoneiros à narrativa da intervenção.

Parte considerável dos caminhoneiros se achou legítima para exigir a renúncia do presidente da República e reivindicar uma intervenção militar saneadora, assim, sem dialogar com o restante da sociedade.

Enquanto isso, a nação sofria o drama do desabastecimento: pequenos produtores perdendo a colheita, motoristas de uber perdendo a semana de trabalho, escolas e universidades sem funcionar. Hospitais tendo sua rotina prejudicada. A cadeia produtiva parada.

A ABCAM, rapidamente, se manifestou, criticando o clamor pela intervenção militar e solicitando que os caminhoneiros abandonassem essa pauta. Novamente, os caminhoneiros, ou aqueles que estavam no controle do discurso do movimento, deram de ombros.

Pedro Parente e sua gestão privatista, outra vez, passaram batidos, não foram sequer mencionados.

Nesse momento, estava acontecendo, de fato, uma greve relativamente independente do lockout inicial. Mas era uma greve diferente daquela que estamos acostumados a ver no Brasil desde o final da década de 1970. Dessa vez, não existia sindicato, como alguns caminhoneiros falavam, com algum orgulho, em entrevistas à imprensa.

“Isso aqui não é sindicato. Nós decidimos tudo na estrada”.

O país foi paralisado durante uma semana por homens organizados em grupos de WhatsApp.

3° momento – Negociação e refluxo do movimento

Em dia 28 de maio, finalmente o governo conseguiu negociar com as lideranças corretas e, completamente acuado, entregou até as cuecas. O acordo foi assinado e progressivamente os bloqueios foram sendo desfeitos e o abastecimento retomado.

Começou a violência.

Alguns grupos mais exaltados, que, segundo relatórios da Polícia Rodoviária Federal não pertencem à categoria dos caminhoneiros, começaram a atacar os trabalhadores que desejavam retomar suas atividades.

Não é que a violência, em si, seja um problema. Espero que ninguém aqui seja ingênuo o bastante para achar que reivindicação de trabalhadores pode ser feita sem alguma dose de violência.

De uns tempos pra cá, quando a classe média conservadora descobriu o caminho das ruas, sendo sempre tratada com docilidade pelas forças policiais, a violência se tornou um elemento de distinção entre as micaretas dos “cidadãos de bem” e os movimentos dos trabalhadores. Se não tem bomba estourando, gás de pimenta no ar, é porque a manifestação não é séria.

Mas a violência que estamos vendo nas estradas brasileiras é diferente, tem outro teor. O governo atendeu a pauta dos caminhoneiros. Esses que ainda estão nas estradas insistindo nos bloqueios querem outras coisas. Querem derrubar o governo.

Bom, querer derrubar o governo golpista eu também quero. Mas não sou inocente a ponto de achar que o inimigo do meu inimigo será sempre meu amigo. Não, de forma alguma.

Também não podemos esquecer que o golpe já conta dois anos.

Há dois anos Michel Temer governa o Brasil, alterando os fundamentos constitucionais do Estado brasileiro e sacrificando os mais pobres.

Já teve PEC dos gastos, já teve reforma trabalhista, o preço dos combustíveis subiu mais de 200 vezes.

Por que só agora, nas portas das eleições, parte dos caminhoneiros tenta derrubar Michel Temer com tanta volúpia?

O golpe não conseguiu construir uma candidatura viável capaz de defender nas urnas a agenda neoliberal imposta pelo governo de Temer. Até apresentador de TV o golpe tentou transformar em presidenciável.

Lula ainda lidera com folga as pesquisas eleitorais e se deixarem será eleito mesmo estando preso, mesmo sem fazer campanha.

A quem interessa a derrubada de Michel Temer a essa altura do campeonato? Justamente agora, quando ele é um cadáver político apodrecendo em praça pública.

Quem quer derrubar Michel Temer exatamente no momento em que o Congresso Nacional aprova uma PEC que regulamente eleições indiretas em caso de vacância da Presidência da República?

Ainda não está claro quem são essas pessoas que estão na estrada ameaçando caminhoneiros e impedindo a completa normalização da situação. Há quem diga que se trata de grupos vinculados à campanha de Jair Bolsonaro, que estariam tentando impulsionar uma candidatura que parece ter chegado no seu limite, ali, entre 13 e 15%.

Por enquanto, não dá pra saber. Mas sou um daqueles sujeitos que acreditam nas conspirações. Afinal, para que exista uma conspiração basta que pessoas poderosas estejam dispostas a conspirar. A ver o desenrolar dos acontecimentos.

Que tá estranho, ah tá….

Deixando as especulações de lado, estou muito convencido de que a crise de abastecimento provocada pelo movimento dos caminhoneiros demonstrou, na prática, que a crença neoliberal no livre mercado é falaciosa. É fictícia.

Os caminhoneiros tiraram do governo a promessa de que o preço nas bombas dos postos será fiscalizado. Nada contradiz mais o princípio do livre-mercado que o controle dos preços.

Fato, fato mesmo, é que não existe livre mercado em sociedades complexas. O que existe é a disputa pelo Estado: os grupos sociais querem Estado máximo para si e, como o cobertor é curto, isso significa impor Estado mínimo aos outros.

Nessa disputa, os caminhoneiros venceram.

O mercado também venceu, já que nenhum dedo foi relado no regime privatista que Pedro Parente vem impondo à Petrobrás.

Perdemos nós, a sociedade brasileira, pois como não existe mágica no orçamento, o dinheiro que vai subsidiar os caminhoneiros sairá da saúde, da educação, da segurança.

É possível resumir, portanto, o resultado da greve/lockout dos caminhoneiros em poucas palavras: Estado máximo para os caminhoneiros e para o mercado. Estado mínimo para o resto da nação.

O mais impressionante é que tudo isso aconteceu com o apoio da classe média conservadora e sob o entusiasmo de partes das esquerdas. A classe média conservadora olhava para as estradas e via ali um movimento saneador, de combate à corrupção. A esquerda via um movimento autônomo dos trabalhadores, um ato de resistência ao golpe.

Ambos os grupos, como já tinha acontecido em 2013, erraram porque têm o péssimo hábito de fetichezar as ruas, porque olham pra realidade e enxergam somente aquilo que querem. Quem enxerga somente aquilo que quer acaba não vendo coisa alguma.

Mas como a realidade é dura, teimosa, outra vez mostrou que nem tudo que reluz é ouro.

 

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2 Comments

2 Comments

  1. Abiael Franco Santos

    30/05/18 at 13:11

    Excelente análise! Texto para guardar. Mas, parece-me que a “sociedade perde” por decisão da Presidência da República, que diminui o preço dos combustíveis transferindo o custo para a sociedade. Poderia ser diferente, ainda que em tese.

  2. Hugo

    31/05/18 at 9:36

    Boa análise mas isso é fácil depois dos acontecimentos pra quem tem base, pois lembre-se que o povo não tem o poder de dissecar os fatos dessa forma. Concordo que neste país tudo gira na base da conspiração e oportunismos. Patriotismo zero!! Mas não concordo quando diz que a sociedade comemorou a própria derrota no surto de masoquismo coletivo. Olha, se há protesto o povo é manipulado, se NÃO há protesto o povo é omisso e covarde. O que você fez de 2013 pra cá?? Foi a algum manifesto? Ficou em casa assistindo tudo pela TV? Ou só criticou após os fatos? A culpa é sempre do povo e nunca do corrupto, então, qualquer resposta sua levará a omissão e/ou ter sido manipulado. Textos críticos e de teorias de conspirações e etc, eu vejo todos os dias. Mas textos que ajudem o povo, que levantem a moral do povo, que façam com que continuem na luta eu não vejo. Se calado e respirando o povo está errado, então, eu quero ver o povo na rua mostrando sua indignação. Já os efeitos colaterais são outros quinhentos. Infelizmente nada é perfeito.

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LUTA ANTIRRACISTA PRECISA ACERTAR A ‘CABECINHA’ DE WILSON WITZEL

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Há anos a tática sobre segurança pública no Rio se concentra em operações espetaculares que resultam, de tempos em tempos, em um derramamento de sangue, com direito a traficantes, moradores de comunidades e policiais mortos.

O roteiro todos já conhecem. Unem-se policiais de diversos batalhões, eles invadem determinada localidade com poder de fogo muito superior, e terminam matando principalmente a ponta da cadeia do tráfico, a base da estrutura das facções, enquanto seus líderes comandam tudo de longe ou de dentro dos presídios, e no dia seguinte um novo comando paralelo se instala no mesmo lugar.

É uma máquina de moer gente. Mata-se loucamente, e no dia seguinte é como se nada tivesse mudado.

A situação é esta porque em certos locais do Rio a única chance de um jovem criado em situação de miséria comprar um tênis da moda é segurando uma arma que ele não sabe atirar direito. A parcela da população favelada que sobra do espaço da cidadania, por motivos que vão desde abandono familiar, déficit educacional ou imposição de terceiros, é seduzida por uma rede comércio ilegal que promete dignidade no contexto da extrema exclusão e sacrifica a vida destas pessoas como copos descartáveis.

São quase sempre jovens negros, no tráfico, na polícia ou nas casas vizinhas ao confronto entre eles. E suas mortes não comovem nem de perto tanto quanto o cãozinho morto na porta do Carrefour.

É assim desde que a abolição foi seguida pela recusa em absorver os negros no mercado formal de trabalho e a imigração de estrangeiros brancos para substituí-los. A pobreza se perpetuou a partir da negligência em gerar oportunidades e condições de vida saudável, e nela a criminalidade floresceu desde sempre.

Se soubesse da história do Rio, Wilson Witzel, o novo governador eleito no estado, que repete a palavra matar o tempo todo para agradar os ouvidos de uma classe média tanto preocupada com roubos quanto é racista, adepta de praias segregadas, odienta do funk, do samba e de pagode, faria algo para interromper a espiral macabra que corrói sua sociedade por dentro.

Alteraria o atraso social com políticas públicas inteligentes de ensino integral, cooperativas de trabalho, reforma do sistema penitenciário, investimento em tecnologia da informação e preparo de suas polícias. Enfrentaria o racismo com mais educação e cultura, e não faria coro com privilegiados que gostam de se remeter aos negros com termos tipicamente usados para animais, como “abate”.

Em 2010, o Rio viu Sérgio Cabral vencer Fernando Gabeira aproveitando-se, em parte, da crença de que o adversário era veado e maconheiro. Dali seguiu-se uma bandalheira que resultou, nos últimos anos, no colapso total das contas públicas. Já não há mais espaço de tempo para novos demagogos. E nem a população suporta mais mentiras no lugar de competência. Algo melhor que matar precisa vir à cabeça do novo governador. E eu sugiro que superar o seu racismo entranhado seja o melhor começo.

Por: Rodrigo Veloso – Colaborador dos Jornalistas Livres morador do Rio do Janeiro formado em Relações Internações

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OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

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Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke

 

O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.

Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.

Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.

Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.

Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?

A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.

Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.

Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.

Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.

Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.

 

Rodrigo Janot

Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.

Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.

26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.

A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.

Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.

Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.

Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.

Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.

Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?

Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.

 

Rogério Favreto

Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.

“Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.

Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.

Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.

Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.

Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.

Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

 

Marco Aurélio Mello

Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.

1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.

É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.

Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.

Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.

Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.

2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.

Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.

A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.

Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.

 

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Armai-vos uns aos outros

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Por José Barbosa Junior
O presidente da República Fundamentalista de Vera Cruz (antigo Brasil – porque agora nada pode ser vermelho), decretou nesta terça-feira algumas flexibilizações na Lei que regulamentava a posse de armas, o que, na prática, significa que ele liberou geral. A proposta anterior, de no máximo duas armas por cidadão, passou para quatro armas, sendo liberadas outras mais, conforme a necessidade apresentada pelo futuro portador.
Em resumo, a barbárie está liberada oficialmente em nosso país. “Cidadãos de bem” agora vão poder, finalmente, matar os bandidos que lhe atormentam a vida. Por bandidos leia-se pobres, pretos, pardos e párias, que de já tão coisificados, tornaram-se sem valor e pessoalidade em sua existência.
O que mais me choca, porém, é que Bolsonaro foi eleito e é apoiado, inclusive e principalmente nesta questão, por gente que se afirma cristã. Isso mesmo! Gente que diz seguir aquele nazareno marginal que afirmou que “bem-aventurados são os pacificadores, pois eles serão chamados filhos de Deus”, aliás o mesmo que afirmou que “quem vive pela espada, morrerá pela espada”.
Parece estranho. E é.
Mais estranho ainda porque em toda a campanha do atual presidente, ele fez questão de repetir o versículo que diz “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
A verdade é que a liberação de armas só gerará mais violência num país que respira violência.
A verdade é que mais mulheres serão vítimas de feminicídio, já que seus maridos machões agora poderão ter suas armas para suprirem seus outros fracassos.
A verdade é que mais LGBT’s morrerão nas mãos de homofóbicos que disfarçam seus preconceitos em discursos machistas e religiosos.
A verdade é que agora fica mais fácil planejar o suicídio, endêmico numa sociedade cada vez mais doente e adoecedora, refém de um sistema que empurra pessoas à depressão (sem contar as depressões que independem de fatores externos) e num país onde adolescentes cada vez mais se matam por conta de bullying e outras coisas mais. Ah! E sem falar no alto índice de suicídio entre pastores, tema cada vez mais recorrente nos últimos anos.
A verdade é que as brigas de trânsito, de bares, de baladas agora serão resolvidas na base do “quem saca primeiro”, porque com essa liberação a ideia de que o outro possa estar armado será sempre evidente e, entre ele e eu, é melhor que eu saque antes dele.
A verdade é que temos um governo violento, que ampara e incita à violência, que não esconde o prazer na tortura e na morte dos inimigos. Isso legitima e legitimará a barbárie!
Em nome da verdade… no governo mais mentiroso que já temos! E eu aguardo o dia da liberdade! Ela virá… mais cedo ou mais tarde!

*Teólogo e Pastor da Comunidade Batista do Caminho em Belo Horizonte.

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