ARTIGO
Alexandre Santos de Moraes, professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense
Tempo é uma das palavras mais usadas para a defesa da Reforma da Previdência. Os especialistas em números, em acordes apocalípticos, insistem que o colapso econômico do país seria uma questão de tempo. Explicam que o tempo de vida dos brasileiros e brasileiras aumentou, uma conquista que não pode passar impune. Viver mais é o crime que exige reparação: é preciso aumentar o tempo de trabalho, até porque a aposentadoria por tempo de vida será extinta. E, sob a pecha de evitar que o governo não fique, em curto ou médio prazos, sem dinheiro para pagar a aposentadoria e deixe milhões de aposentados na miséria, regulamentam o pagamento de aposentadorias miseráveis para os poucos que dela serão capazes de desfrutar.
Seria tentador usar os números para questionar essas contas, e muitos o fizeram com garbo e elegância. Poderíamos argumentar que outras fontes de recursos poderiam ser utilizadas para suprir o déficit atual da Previdência, que é de aproximadamente R$ 150 bilhões. No último parcelamento de débitos tributários, o governo Temer perdoou uma dívida de R$ 62 bilhões. Há pouco, voltou a circular o debate sobre o perdão de 17 bilhões de reais que o governo Bolsonaro pretende conceder a empresários rurais que sonegaram impostos. Com maior inteligência nas desonerações fiscais e com políticas públicas para estimular a geração de empregos formais, não seria tarefa demasiado árdua cobrir esse rombo que a tantos causa arrepio.
Ainda em respeito aos números, seria digno considerar, em conformidade com o que se pratica na maioria absoluta dos países, melhores práticas em relação à taxação de dividendos, grandes fortunas e heranças. Também seria possível auditar a dívida pública que hoje está na casa de R$ 3 trilhões, remunerada a uma taxa de juros indecente que só beneficia uma pequena elite de rentistas. Mas tudo isso são números, e quando se discute tempo, estamos falando não de números, mas de gente.
As discussões políticas podem ser comparadas a uma fotografia. Quem toma uma foto em suas mãos parece estar diante de um momento “congelado” da realidade, e fica com a impressão de que o motivo fotografado não poderia ter sido feito de outra maneira. O problema é que mesmo a mais simples fotografia é tirada a partir de escolhas que envolvem não apenas o ângulo, a luminosidade e os equipamentos utilizados pelo fotógrafo, mas também o seu desejo de tornar aquele instante, e não outro, alvo e objeto de um “clique”.
As discussões sobre a Reforma da Previdência estão sendo feitas assim, sob o signo de um discurso único, produzido pelo Império dos Números em que até mesmo o tempo não é mais o tempo da vida, o tempo das realizações, dos afetos, das vitórias e derrotas, em suma, das experiências, mas o tempo de vida, o tempo em que investimos o sacrifício diário da labuta, o tempo que dispendemos para gerar riquezas que quase nunca são nossas, o tempo em que trabalhamos apenas para garantir as condições materiais de existência, mas também a sanidade das contas públicas de um Estado que vive para servir quem menos precisa dele.
Não foi inocente que, ao longo de todo esse tempo, o debate tenha se concentrado nas contas públicas, e não na vida das pessoas. Não há aqui, obviamente, a ilusão de que um Estado endividado, incapaz de saldar seus compromissos, possa fazer de forma adequada o trabalho que deveria justificar sua razão de ser. Mas, nesse caso, a ordem dos fatores altera, sim, o produto. Diante de um suposto colapso econômico – em parte estimulado pelos que defendem a própria Reforma – não há como naturalizar que a usurpação do tempo de vida das pessoas seja a saída razoável para remediar problemas que teriam sido supostamente causados pela longevidade.
Não menos vil é postular que o tempo de vida é sempre o tempo do trabalho, recorrendo, nesse caso, ao discurso moralizante do caráter supostamente redentor dos esforços laborais, meios privilegiados de produção de virtudes que outros não promoveriam. O compromisso segue sendo exclusivamente com a produtividade irrefreada, da brutalidade capitalista que, como alertava o mestre Antônio Cândido, age como se o capitalismo fosse o senhor do tempo.
O tempo da Reforma não é o tempo da vida, tanto que a condenação a uma vida inteira de trabalho foi feita sem que se cogitasse qualquer medida compensatória, como diminuição das jornadas semanais ou aumento das semanas de férias. Não ousaram sequer escovar os dentes da besta para torná-la menos assustadora: deixaram-nos amarelados, com nacos de carne presos à gengiva e com aquele hálito de morte necessário para causar assombro. A Reforma foi proposta em favor dos números, e números não precisam de cuidados. Quem precisa de cuidados é gente.
Diz um ditado mexicano que “a morte está tão segura de sua vitória que nos dá toda uma vida de vantagem”. Somos feito de carne, osso, paixões e tempo. O tempo não é o que temos, mas o que somos, e não somos números para que nosso tempo seja apenas o tempo do trabalho.
O debate sobre a Reforma da Previdência envolve muito mais do que as formas de financiamento da seguridade social, os déficits malversados ou superávits desejados: ele tem a ver com a vida das pessoas que acordam todos os dias e vêem o tempo morrer diante de si, seja nos engarrafamentos em direção ao trabalho, seja na rotina sórdida que torna a chegada do fim de semana tão desejado. Essa deve ser uma discussão permanente, independentemente do resultado das futuras votações, pois uma hora será preciso recuperar a humanidade e devolver a política às pessoas, essa variável sordidamente ignorada na equação.