Logo nas primeiras páginas de Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa nos fala da mandioca mansa que torna-se brava e mata, pois vai tomando as peçonhas, veneno da terra, indaga: “e o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo?”

Não conheceu, o Rosa em suas veredas, a floresta e o cerrado em forma tão crua à companhia dos mitos e regras aos povos do centro do Brasil. A terra revirada, nua de árvores e diversidade, cria uma estética de infinito mosaico, pequenos retângulos verdes entre os campos de soja e bois esparsos. Sabia ele que homens são como porcos. Em tardes tão azuis, chuvas fortes surpreendem nós brancos triviais em águas turvas, o rio mudou a cor de suas águas. Sigo sim meus amigos entre barcos e canoas. Busca-se o alimento e a saúde, histórias entranhadas nas redes, suas comidas em poesia de nutrição tradicional e a consequência da assimilação do óleo, açúcar e sal no cotidiano das casas. A mudança no modo de viver, trabalhar e se alimentar, evidencia novos hábitos em desequilíbrio e vai-se abrindo a porta para doenças com nossos alimentos industrializados.

O espírito da mandioca está triste e se recolheu para a floresta em descontentamento. O manto do mato fraqueja sua fertilidade perante a mudança do clima. O rios sedimentam as mágoas e as mulheres da aldeia estão em dúvida. Dívidas com as regras tradicionais da segurança alimentar e o trabalho comunitário abalado pelas tecnologias eletrônicas que seduzem e viciam, expondo outros riscos entre novas carências.
Porco é bicho de gula selvagem e em bando não respeita a fome dos outros. Se em todo o entorno da grande área contínua da Terra Indígena do Xingu e ao território Kayapó vai-se impondo uma micose que despela o virgem mato e lentamente alisa e lambe o solo desse chão, intensificando as lavouras aos quatro cantos onde a carne do gado é rica, mas fraca rói os ambientes das roças, insetos e aves desaparecem e mamíferos buscam refúgio na retomada da mata que resta ao Xingu.

Solidifica-se o agronegócio e grandes empreendimentos no povoamento ocidental das terras tradicionais. Os olhos dos porcos, afoitos, recolhem-se aos parques demarcados às etnias, em voraz vontade de sobreviver, aperreando os índios que vivem ao labor de suas roças de mandiocas. Nas águas os peixes vertem lágrimas entre futuros assoreamentos que dificultam a pesca e desencontra o apetite indígena.

Das chuvas também se diz, na aldeia plena entre marimbondos bravos, que tudo raleia entre as nuvens e a terra, pois dois anos de consecutivas secas e grandes incêndios reduziram os estoques de polvilho. Acabou o beiju entre muitos e a carência de alimentos tradicionais entre as famílias se expõe às etnias. Os mais velhos e seus anciões sabem também que o celular é um osso novo lançado entre as regras e tradições. A forte ocidentalização e nosso modo de viver, tal gripe a contaminar no passado, impõem-se.
Em sua própria terra olho à volta do grande círculo de casas dos Ikpeng. Crianças fluem, raios entre as nuvens anunciam que a vida paira e resoluta quer seguir sua sina. A grande área do Xingu resiste entre as nascentes desmatadas, as Pequenas Centrais Hidrelétricas e o monstro perpetrado de Belo Monte na Volta Grande.

Pode ser que o lugar nosso, aquilo que é uma nação, ainda não encontramos. Sim, os povos originários ainda buscam e velam seus segredos. Atônitos ainda nos descobrimos e se reinventam eles em novos códigos. As escolas, a rede de celulares entre todos e a televisão já assimilada, são velhas armadilhas, mas também novas armas ao desafio, defesa e senda dos povos originários.
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