Diante da informação do novo (e também velho, já que comandou a cidade por dois mandados entre 2005 e 2012) prefeito de Uberlândia, “Coronel” Odelmo Leão, do PP, de que a prefeitura não teria dinheiro para pagar nem os funcionários públicos (veja em https://jornalistaslivres.org/2017/02/servidores-ocupam-o-plenario-da-camara-de-uberlandia/) quanto mais a infraestrutura do carnaval, parte dos vereadores decidiu chamar uma audiência pública na Câmara em 11 de janeiro. Parlamentares, pesquisadores, sambistas, povo do Congado e Moçambique e ativistas se revezaram nos microfones para contar a história de 64 anos de desfiles nas ruas da cidade. Jeremias Brasileiro, escritor e doutorando pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU, por exemplo, contou como o carnaval incorporou as figuras do rei e rainha do Congado, proibido no Rio de Janeiro no início dos anos 1880, como Mestre Sala e Porta-Bandeira. E depois como os desfiles das escolas de sampa permitiram que os negros, pela primeira vez, já na década de 1950, pudessem usar as calçadas do centro da cidade mais importante do Triângulo Mineiro, mas que ainda tem um traço marcante de racismo. Os ritmos e festas afro-brasileiras são, portanto, uma tradição de resistência cultural e racial no município.
O presidente da Associação das Escolas de Samba e Blocos Carnavalescos de Uberlândia – Assosamba, William Couto, veio na mesma toada. Entre elogios a vereadores que sempre participaram e apoiaram o carnaval, faz uma denúncia: do R$ 1.2 milhão aventado como verba cortada, apenas R$ 310.408,00 seriam destinados às escolas e sobre o restante, que seria consumido por infraestrutura, segurança e divulgação, “nunca se deu prestação de contas”. E mais, que o decreto de calamidade financeira do atual prefeito suspende as verbas para atividades festivas e comemorativas por 180 dias, o que significa que haverá dinheiro para a exposição agropecuária no final de agosto (“coincidentemente” aniversário da cidade) onde a elite irá se esbaldar por vários dias em shows de músicos sertanejos na sede do Sindicato Rural de Uberlândia: o Parque de Exposições Camaru (http://www.camaru.org.br). “Não tem dinheiro agora e terá em julho, porque em julho tem o repasse pro Camaru. Eles fazem o carnaval e recebem em julho, prefeito”, disse. Assim, apesar de afirmar que a falta de verbas seria uma oportunidade para “quebrar as correntes” e “privatizar o carnaval” pelo povo que faz a festa de fato, nas semanas seguintes a ideia inicial de manter os desfiles na rua mudou.
Na última segunda-feira, 27 de fevereiro, realmente houve o desfile de dois blocos e cinco escolas de samba numa área asfaltada e cercada dentro dos mais de 300 mil metros quadrados do complexo do Camaru. A divulgação prévia do evento, decidido de ultima hora, foi quase nenhuma. Havia coisa de cinco barracas de comida e bebida, alguns banheiros químicos, um pequeno palco com sistema de som e propaganda da rádio e TV representantes locais da Globo além da Ultragás, empresa distribuidora de derivados de petróleo cujo grupo original foi importante apoiador, inclusive financeiro, da ditadura iniciada em 1964, tendo entre seus principais executivos Henning Boilesen de Chaim Litewski, morto pelas guerrilhas de esquerda em 1971 depois de acompanhar pessoalmente diversas sessões de tortura de presos políticos na Operação Bandeirantes (veja documentário Cidadão Boilesen aqui https://www.youtube.com/watch?v=yGxIA90xXeY).
A plateia, quase que inteiramente composta pelos passistas dos grupos que se apresentaram e familiares, tinha de se espremer nas grades que a separava do espaço para as escolas e blocos para poder enxergar alguma coisa. Não havia uma arquibancada como nos sambódromos e nem calçadas, lojas e prédios onde pudessem subir para ver melhor os desfiles. Como não houve competição entre os grupos, a maioria decidiu levar poucas fantasias, alegorias e adereços. Apenas um bloco e uma escola apresentaram sambas-enredo preparados para o carnaval desse ano. O destaque foi a novata Garras de Águia, que teve a vereadora Pamela Volpi entre as passistas e pretende contar o desfile como oficial para somar no ano que vem quatro apresentações de modo a poder, pelas regras atuais da Assosamba, concorrer ao prêmio de melhor escola em 2019. Os demais decidiram guardar material e música para 2018 quando, esperam, a festa retornar à normalidade, ainda que itinerante. Afinal, como diz Jeremias Brasileiro: “O carnaval de Uberlândia sempre foi um carnaval sem lugar”.
Felizmente, não choveu, o que iria estragar completamente a festa. O único espaço coberto disponível para o evento além do palco onde não cabiam mais de 20 pessoas, era uma espécie de restaurante ou bar com vista para uma área fora dos limites dedicados ao carnaval. A entrada, contudo, era restrita aos policiais em serviço, para o merecido descanso nas cadeiras de plástico das dezenas de mesas onde podia comer e beber e onde provavelmente estava o comando da operação.
O forte do evento sem dúvida foi a segurança. Além dos guardas particulares do Camaru que revistaram todos que entraram em busca de bebidas de fora, armas e drogas, havia uns 200 ou 300 policiais e militares fortemente armados, sem contar os que faziam ronda na parte externa do Camaru. Dentro, eles caminhavam em grupos de dez, sempre com três ou quatro segurando ostensivamente os cassetetes em posição de ataque. Na área da plateia, grupos menores ficavam parados em círculos, de costas uns para os outros, de modo a não poderem ser surpreendidos por nenhum lado. Havia, ainda, grupos fixos nas cercas que delimitavam o perímetro a ser utilizado pelo evento, atrás dos banheiros e ao lado das barracas de comida.
Mais do que apenas resistência cultural e racial, o carnaval de Uberlândia em 2017 exemplificou bem os contrastes dessa sociedade. Enquanto nunca faltou dinheiro para a festa sertaneja, que sem dúvida impulsiona negócios no campo e na cidade, a verba para o carnaval é cancelada menos de dois meses antes da data. Em 2016, mesmo com a irmandade do Congado completando 100 anos de fundação oficial (na verdade existe desde antes da emancipação da cidade), e com um prefeito negro e do PT, Gilmar Machado, a prefeitura não tinha sequer um fotógrafo para cobrir o evento. Com o poder central retornando à oligarquia rural e industrial, a festa mais popular do país só poderia mesmo ser realizada sob forte vigilância em recinto fechado. Vai que os negros, pobres e sambistas resolvem “contaminar” as “pessoas de bens”.