“O que se vislumbra é violência e desespero”: as vidas interrompidas pelo golpe na Bolívia

Manifestação pró-Evo Morales na sexta, 8, dois dias antes da renúncia (FOTO: Murilo Matias)

Por Murilo Matias, de La Paz, publicado originalmente no Diário do Centro do Mundo 

Vinte dias após as eleições que haviam confirmado o quarto triunfo do presidente Evo Morales, o primeiro indígena a governar o país renunciou ao cargo interrompendo o projeto popular que estava à frente da nação há quase 14 anos.

O golpe contra a proposta de esquerda representa mais um duro revés ao campo progressista de toda a América Latina, incendiada nos últimos meses por manifestações em diferentes nações com repressão e registro de mortes.

Tentando evitar um derramamento de sangue, Evo, o primeiro indígena a chegar à presidência, anunciou que deixaria o cargo para o qual havia sido eleito na tarde deste domingo, decisão seguida pelo vice Álvaro Garcia Linera e pela presidenta do senado Adriana Salvatierra, todos do Movimento ao Socialismo (MAS), que deveriam assumir o mandato por estarem na sequência da linha sucessória.

O cenário é de incerteza na arena política e de muita apreensão nas ruas.

“Estamos preocupados. Antes de tudo isso éramos o país mais estável da região com crescimento econômico recorde e inclusão social”, comenta Mari Ayuca, vendedora na cidade de Oruro.

“Agora o que se vislumbra é violência, distúrbios e um vazio de líderes reconhecidos e respeitados nacionalmente”.

Os registros de saques, roubos e confrontos na cidade de Al Alto na noite de domingo deixam claro que a Bolívia ainda está distante de recuperar sua normalidade institucional, mesmo após o pleito da oposição ser atendido em relação a renúncia de Evo e seu grupo mais próximo.

O destino do presidente também levanta dúvidas, assim como de seu partido, o MAS, cujos militantes e líderes têm denunciado perseguição por parte de setores radicais da oposição.

Na sequência da queda do governo, a presidente do Supremo Tribunal Eleitoral, a indígena Maria Choque, foi presa, demonstrando que a caça às bruxas pode ser uma constante a partir da troca de comando.

“Queremos que essas pessoas enfrentem a justiça e sejam responsabilizadas por quererem se eternizar no poder a todo custo”, exalta-se a médica Cristiane Borda, que junto à sua categoria, está em greve há mais de dois meses, dificultando um dos principais projetos recentes impulsionados por Morales, o Sistema Único de Saúde (SUS), desenhado para atender mais da metade da população boliviana e que agora deve ser arquivado.

Além dos setores policias e militares, o descontentamento das classes médias e altas urbanas foram decisivas para desestabilizar o governo e colocar em xeque o processo eleitoral.

Camacho (ao centro) leva uma Bíblia ao Palácio do Governo na Bolívia

Os chamados “desclassados” pelo socialismo agregam estudantes, profissionais de altos salários e a elite branca, inconformados com o governo de Evo Morales, que pela primeira vez colocou nos cargos de decisão da máquina pública indígenas, campesinos, mineiros.

“Infelizmente, hoje o racismo falou mais alto e vivemos um dia triste. Foi um erro confiar à Organização dos Estados Americanos a auditoria das eleições. Esse grupo sempre esteve alinhado à direita e não seria diferente aqui na Bolívia. Não sei o que será de nosso futuro”, afirma uma dirigente do MAS que pediu para não ter seu nome citado, referindo-se à presença da OEA e concordância do então presidente Evo em receber a instituição, alinhada no cenário externo ao conservador Grupo de Lima.

Internamente, Luis Fernando Camacho, presidente do comitê cívico de Santa Cruz, capital econômica, é a figura que emerge como principal nome da oposição diante do impasse nas últimas três semanas e da exposição proporcionada pelos meios de comunicação.

O empresário garante que não será candidato nas próximas eleições que devem ser convocadas ao longo da semana que entra, mas nem seus apoiadores acreditam nessa promessa.

“Camacho deverá concorrer à cadeira presidencial, mas não sei até que ponto os bolivianos estão dispostos a ter novamente um branco no principal posto da nação. Os indígenas exigem representação e a troca do governo não significará necessariamente o refluxo dos movimentos sociais, que por aqui são muito fortes”, comenta o jornalista Cristian Gabriel.

A posição de coletivos campesinos e sociais que apoiavam Evo e refutam Camacho e Carlos Mesa, candidato derrotado da direita nas eleições, pode ser um dos pontos de resistência a ser observado nas próximas horas e dias.

A apreensão que paira sobre o país somada à sensação generalizada de descontrole e repleta de focos de tensão fizeram o estado de crise retornar à Bolívia.

A ver as reações pelos próximos dias diante dos bloqueios de estradas, greves e manifestações realizadas pelas oposição frente à força governista cujo novo mandato se estende de 2020 a 2025.

Marcha de mineiros em La Paz (FOTO: Murilo Matias)

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS