Palavras de José “Pepe” Mujica, ex-presidente do Uruguai, em ato promovido pela central sindical PIT-CNT de Montevidéu em apoio a Dilma Rousseff e contra o golpe no Brasil, no dia 31 de agosto de 2016.
Tradução livre de Eduardo Mejía Toro ([email protected]) e Marcos Paulo T. Pereira ([email protected])
Eu acho que, fundamentalmente, nós, uruguaios,
temos uma tarefa: informar bem, curtinho,
ao pessoal com quem falamos.
Porque tem muitíssimo ruído, mas pouca informação.
Não é para confundirmos barulho com criação de pensamento. O que temos que transmitir ao povo uruguaio, em primeiro lugar, é a motivação mecânica deste golpe.
A motivação mecânica – não a motivação profunda – consiste na existência de um senhor, Eduardo Cunha, ex-presidente do parlamento brasileiro. Ao que parece, alguém que passou pela Suíça lhe deixou 5 milhões de dólares em seu nome, mas ele não sabe quem foi… Como isso vazou, o próprio parlamento começou a investigá-lo. Esse senhor, para se defender, foi falar com a presidenta e pediu para ela que o pessoal do PT não apoiasse a comissão investigadora.
Entretanto, o PT decidiu respaldar a comissão investigadora. Então, esse senhor lembrou-se que numa gaveta tinha arquivado um requerimento, de três advogados que tinham estudado o último orçamento e que tinham encontrado elementos para fazer uma acusação jurídica. Ao que ele falou: “se me entregam na comissão eu vou estourar isso”.
E qual foi o “erro” do PT e da presidenta?
Não comprar a ideia dele de esconder um ninho de corrupção.
Isto é o que está em primeiro lugar: esta mulher está sendo
condenada por não ter entrado na corrupção.
É claro, esta é a motivação mecânica de como aconteceram as coisas. Havia muito mais por detrás: as derrotas eleitorais, as reformas sociais, a redistribuição da renda que tinha acontecido durante treze anos e a chegada a um momento de crise pela situação mundial, que limitava a economia brasileira… Então tinham que conspirar por baixo.
Simplesmente, derrotados nas eleições, certos grupos não aceitaram a realidade política de sofrer uma derrota e ir preparar os seus respectivos partidos para a próxima disputa eleitoral. Não…
Cuspiram na cara da democracia!
O que demonstra, mais uma vez, que são democratas quando lhes convém, nem tanto quando não lhes convém – em primeiro lugar está o bolso, querido.
Naturalmente, é um processo que tem muitas lições e isso também tem que ser dito. A companheira Dilma não teve como entrar no jogo para negociar e, sobretudo, desagradou muitas pessoas da sua militância, porque quis aliviar o peso da crise econômica com algumas medidas econômicas relativamente conservadoras, sem discutir primeiro com seu povo. Quer dizer, uma resposta técnica demais e pouco política. Para além disso, ela não era dada a conversar com a oposição, parece que Dilma não é simpática com os seus opositores, contrariamente a Lula, um cara que consegue lidar com qualquer um. Mas a velha experiência sindical de negociador de Lula é outra história.
Mas estes são fatores de segunda ordem, que têm que ser aproveitados para aprender que nunca se pode acreditar que por que se ganhou uma eleição e se tem o apoio da maioria, se tem o controle absoluto do poder. E é também uma demonstração de que estas questões não são um problema de gerenciamento técnico, não é que seja possível desprezar a qualidade técnica e o seu gerenciamento, mas é necessário que a política ajude nas decisões técnicas.
Vimos, queridos companheiros,
a consumação de um GOLPE DE ESTADO,
que já tinha sido anunciado faz tempo.
Aqui veio o chanceler do Brasil, há pouco tempo, e disse para nós, com todas as letras, que estava decidido, quer dizer, que todo esse debate parlamentar foi uma grande encenação, a decisão já estava tomada, num outro lugar. Fizeram todo um cenário de trapaçaria para a opinião pública e o olhar geral, com toda a aparência de um julgamento, mas desde o primeiro momento tudo já estava decidido. Daí, quando os companheiros falam de um golpe de estado, é um golpe de estado mesmo! E, se não for um golpe de estado, é como aquela charada, de que tem patas, tem isto e tem aquilo … parece que é, e se não é, é como se fosse.
É, também, uma decisão política da direita de agredir este governo… Quer dizer, uma escolha política que procurou reacomodar o arcabouço jurídico para poder se apresentar ante a opinião da cidadania e, sobretudo, do mundo. Como disse o presidente do senado: “Se nós erramos, que nos corrija a democracia!”. Parece que no subconsciente sabia, tinha bem claro, a trapaça que estava fazendo. Existe um quê subconsciente no pessoal que votou essa decisão, porque isto tinha um segundo capítulo, uma segunda intenção, que não era outra senão proibir a atividade política da presidenta por anos, mas muitos não tiveram a cara para participar desse crime.
Não tenho dúvidas que isto é uma perda imensa
para a América Latina.
Tenho algumas ideias, companheiros, acredito que a integração da América Latina está na frente de tudo … que nunca teremos massa crítica para lutar no mundo que a gente vive se não conseguimos a integração! Mas a integração não é apagar as fronteiras, nem apagar o hino, nem mudar a bandeirinha da pátria, nem nada disso, a integração é ter força coletiva como sociedade para poder dizer alguma coisa e ter peso no mundo em que vivemos!
Em todos estes anos, apostamos, sem conseguir, que o Brasil, pelas suas dimensões e, por isso, pela sua responsabilidade que tem com América Latina, congregaria essa integração, porque ela só se dará com a Amazônia ou não se dará. E sem integração não se tem massa crítica para fazer desta América um mundo melhor.
Já tivemos, companheiros, há mais de cem anos, a discussão acerca da construção do socialismo num país só. Já a tivemos, já assistimos essa fita, já sofremos com ela, temos que aprender com a história. Se acreditarmos que no mundo de hoje, com a explosão tecnológica, seja possível para os pequenos países conseguir um sinal libertador, que permita chegar perto do socialismo, estamos mais que sonhando. Então, o primeiro problema é a integração das nossas universidades, de nosso conhecimento, porque ali se está formando o que vai ser a classe trabalhadora do futuro.
O desenvolvimento tecnológico do mundo vai impor uma qualificação para os trabalhadores do futuro, necessariamente de tipo universitária, não por vontade do mundo capitalista, mas por uma necessidade tecnológica. Essa massa que está ingressando nas faculdades da América hoje é, potencialmente, revolucionária. Nossa luta pela integração é uma luta por integrar a inteligência latino-americana. Ter um sistema de pesquisa nosso e ter uma consciência universitária que pertencem às aflições do continente.
Tenho visto muita poesia,
muito fervor revolucionário,
e tenho visto muitos castelos de ilusão caírem no solo.
Não quero mentir para as novas gerações, não, a humanidade está na frente de um desafio do tamanho que o homem nunca viu acima da terra. O homem tem que demonstrar, como espécie, se é capaz, deliberadamente, de criar uma sociedade melhor ou não. Ou sucumbir. É isso o que temos, companheiros, a luta gigantesca, extremamente volumosa e difícil, e não vamos conseguir com quatro gritos. Precisamos de uma profissionalização de nossas vidas, de nossa entrega, da construção de times, de um sentido de compromisso com uma humanidade melhor. Não é fácil porque o mundo está se globalizando e aparecem para nós contradições por todas as partes.
A companheira falava contra as multinacionais, dentro em pouco vamos estar arrasados pelo populismo das direitas da Europa, que também estão contra as multinacionais, mas são fascistas. Nada podemos esperar desse ultranacionalismo, o de Trump, o de Le Pen, o que liderou o processo da Inglaterra… Esses não são nossos companheiros.
Então, é bem claro que a luta pelo Brasil não é só um questão de solidariedade, é uma questão de tremendo interesse como latino-americano.
O problema não é só do Brasil é um problema nosso. Nós estamos jogando com a história, o futuro da Amazônia, por quê? Porque sem Brasil não teremos jamais massa crítica para poder negociar no mundo que virá. Vocês podem imaginar, compatriotas, negociar com esse continente que se chama China, ou Índia, ou Estados Unidos (com a sua terra prometida de costas para o Canadá), ou com a Europa que, apesar de tudo, são setecentos milhões de cidadãos com desenvolvimento do primeiro mundo.
Nós os latino-americanos isolados num monte de repúblicas vamos poder equilibrar essa balança? Não, companheiros, isto tem que ser compreendido por todos: para atuar no jogo diplomático se precisa de massa crítica, tem que ter peso para que as suas razões tenham validade, tem que ter o peso da massa por trás de capacidade socioeconômica, de capacidade científica, para que seja possível ganhar o direito de defender alguma coisa ou impor alguma coisa… Não é simples. É possível? Não sei, os fatos demonstrarão…
É belíssimo, temos que lutar por isso… Temos que dar conteúdo a nossa existência! A gente não pode construir uma sociedade de escravos, conscientes de que somos determinados pelo que passa no mundo rico, sem ter capacidade de sermos nós mesmos. Acredito nas possibilidades do continente, nos desafios do continente, por isso o pedido feito aos companheiros: este não é um problema da Dilma, do Brasil ou do PT, é um problema de todos nós! E nossa também é a luta da Bolívia, do Equador, do povo argentino, temos que começar a ficar cientes de que cada vez mais precisamos pensar como espécie, com dimensões de espécie, para defender a vida, ali onde se apresenta e onde houver que a defender.
E temos que considerar que temos que ser inteligentes, que precisamos de aliados, e que os aliados não somos nós mesmos, os aliados têm diferenças, mas sem aliados não se pode fazer política transcendente. Porque isso é o que fazem os orgulhosos, viciados no poder. Ter aliados é tentar procurar buscar – ao máximo – aqueles setores da sociedade que, sem pertencer a nós, tem contradições com esse mundo. Temos que ver quais são esses grupos, esses setores que às vezes estão afetados e que vivem sem as distintas formas de propriedade de nossos países, que também são vítimas. E não é para dá-los de presente (aos adversários), por esquematismos, multiplicando a força deles, multiplicando seus aliados potenciais somente por medo, porque não têm que ter medo, os pequenos comerciantes, não ter que ter medo as camadas da classe média, da América latina, do Uruguai…Não é essa a luta! A luta é outra, a luta é contra a gigantesca concentração de riqueza no mundo contemporâneo, onde a taxa que gera capital a nível mundial é mais importante que a taxa de crescimento da economia mundial. O que demonstra que a riqueza está se multiplicando, mas se está concentrando muito mais do que se multiplica.
Por isso, essa luta do Brasil é nossa.
Vamos acompanhá-la!
Eu tinha aqui um envelope, uma carta do Lula que chegou para mim antes de ontem, que tornei pública. Curiosamente não apareceu na imprensa…acontece … não tive sorte. Esse é nosso problema. A resposta é o boca a boca, é o comunicarmos entre nós! Há uma parte importante do nosso povo que está confundida ou que pode estar confundida pela enorme pressão que tem uma informação distorcida, que mais que dizer verdades diz meias-verdades. É um jeito de torturar não dizendo verdades. As partes fundamentais deste drama não aparecem… Aparecem seus sucessos, mas não as partes fundantes do drama e acredito que é papel dos companheiros tratar de difundir a verdade.
Finalmente, companheiros, sem derrotismos. Temos veteranos aqui … que podem ter sido enganados, e certamente o foram, mas que se lembram de quando estávamos no caralho da ditadura, lembrem-se! Não vão conseguir tão fácil. Para eles também não vai ser simples, porque apesar do orçamento, da manipulação da mídia, tem uma coisa que está presente: eles não têm razão, no fundo não têm razão, pelo enorme egoísmo que contém este conjunto de escolhas. E nossa luta tem razão, apesar dos erros, dos sonhos, das utopias, e das bobagens que fazemos, porque não podemos deixar pelo caminho as limitações da nossa condição humana.
O que tem de maior valia em nós não é nem nosso talento, nem o grau de verdade, senão a razão histórica, por razões da generosidade de acreditar que o homem tem capacidade de criar, apesar de todos os pesares, um mundo melhor.
A nossa visão não é genocida do homem, pois não acreditamos que o homem pode ser o lobo do homem. O homem pode ser a expressão da solidariedade, no conjunto da humanidade. O homem é o fator criador de civilização. Reconhecemos essa quota de egoísmo que todos levamos, mas nossa luta é por aprender a dominar esse egoísmo que levamos para conseguir criar uma civilização melhor do que a nossa. Este é nosso senso: nunca vamos tocar o céu com as mãos e ter um mundo perfeito… Vamos subir escadas civilizatórias numa humanidade melhor. Não somos deuses, temos que administrar nossas contradições e aprender a direcioná-las, porque precisamos de civilização e da sociedade. Isto é o que eles não têm, porque estão fechados num egoísmo desesperado para justificar e aumentar a riqueza, é bom que percebamos isto, porque não é que sejamos bons, mas porque bom é o caminho que escolhemos para viver sem atrapalhar aos outros.
Obrigado.
Montevidéu, 31 de agosto de 2016