Palavras de José “Pepe” Mujica, ex-presidente do Uruguai, em ato promovido pela central sindical PIT-CNT de Montevidéu em apoio a Dilma Rousseff e contra o golpe no Brasil, no dia 31 de agosto de 2016.
Tradução livre de Eduardo Mejía Toro (eamejiat@unal.edu.co) e Marcos Paulo T. Pereira (marcosptorres1@gmail.com)
Eu acho que, fundamentalmente, nós, uruguaios,
temos uma tarefa: informar bem, curtinho,
ao pessoal com quem falamos.
Porque tem muitíssimo ruído, mas pouca informação.
Não é para confundirmos barulho com criação de pensamento. O que temos que transmitir ao povo uruguaio, em primeiro lugar, é a motivação mecânica deste golpe.
A motivação mecânica – não a motivação profunda – consiste na existência de um senhor, Eduardo Cunha, ex-presidente do parlamento brasileiro. Ao que parece, alguém que passou pela Suíça lhe deixou 5 milhões de dólares em seu nome, mas ele não sabe quem foi… Como isso vazou, o próprio parlamento começou a investigá-lo. Esse senhor, para se defender, foi falar com a presidenta e pediu para ela que o pessoal do PT não apoiasse a comissão investigadora.
Foto por Leandro Taques
Entretanto, o PT decidiu respaldar a comissão investigadora. Então, esse senhor lembrou-se que numa gaveta tinha arquivado um requerimento, de três advogados que tinham estudado o último orçamento e que tinham encontrado elementos para fazer uma acusação jurídica. Ao que ele falou: “se me entregam na comissão eu vou estourar isso”.
E qual foi o “erro” do PT e da presidenta?
Não comprar a ideia dele de esconder um ninho de corrupção.
Isto é o que está em primeiro lugar: esta mulher está sendo
condenada por não ter entrado na corrupção.
É claro, esta é a motivação mecânica de como aconteceram as coisas. Havia muito mais por detrás: as derrotas eleitorais, as reformas sociais, a redistribuição da renda que tinha acontecido durante treze anos e a chegada a um momento de crise pela situação mundial, que limitava a economia brasileira… Então tinham que conspirar por baixo.
Simplesmente, derrotados nas eleições, certos grupos não aceitaram a realidade política de sofrer uma derrota e ir preparar os seus respectivos partidos para a próxima disputa eleitoral. Não…
Cuspiram na cara da democracia!
O que demonstra, mais uma vez, que são democratas quando lhes convém, nem tanto quando não lhes convém – em primeiro lugar está o bolso, querido.
Naturalmente, é um processo que tem muitas lições e isso também tem que ser dito. A companheira Dilma não teve como entrar no jogo para negociar e, sobretudo, desagradou muitas pessoas da sua militância, porque quis aliviar o peso da crise econômica com algumas medidas econômicas relativamente conservadoras, sem discutir primeiro com seu povo. Quer dizer, uma resposta técnica demais e pouco política. Para além disso, ela não era dada a conversar com a oposição, parece que Dilma não é simpática com os seus opositores, contrariamente a Lula, um cara que consegue lidar com qualquer um. Mas a velha experiência sindical de negociador de Lula é outra história.
Foto por Leandro Taques
Mas estes são fatores de segunda ordem, que têm que ser aproveitados para aprender que nunca se pode acreditar que por que se ganhou uma eleição e se tem o apoio da maioria, se tem o controle absoluto do poder. E é também uma demonstração de que estas questões não são um problema de gerenciamento técnico, não é que seja possível desprezar a qualidade técnica e o seu gerenciamento, mas é necessário que a política ajude nas decisões técnicas.
Vimos, queridos companheiros,
a consumação de um GOLPE DE ESTADO,
que já tinha sido anunciado faz tempo.
Aqui veio o chanceler do Brasil, há pouco tempo, e disse para nós, com todas as letras, que estava decidido, quer dizer, que todo esse debate parlamentar foi uma grande encenação, a decisão já estava tomada, num outro lugar. Fizeram todo um cenário de trapaçaria para a opinião pública e o olhar geral, com toda a aparência de um julgamento, mas desde o primeiro momento tudo já estava decidido. Daí, quando os companheiros falam de um golpe de estado, é um golpe de estado mesmo! E, se não for um golpe de estado, é como aquela charada, de que tem patas, tem isto e tem aquilo … parece que é, e se não é, é como se fosse.
É, também, uma decisão política da direita de agredir este governo… Quer dizer, uma escolha política que procurou reacomodar o arcabouço jurídico para poder se apresentar ante a opinião da cidadania e, sobretudo, do mundo. Como disse o presidente do senado: “Se nós erramos, que nos corrija a democracia!”. Parece que no subconsciente sabia, tinha bem claro, a trapaça que estava fazendo. Existe um quê subconsciente no pessoal que votou essa decisão, porque isto tinha um segundo capítulo, uma segunda intenção, que não era outra senão proibir a atividade política da presidenta por anos, mas muitos não tiveram a cara para participar desse crime.
Não tenho dúvidas que isto é uma perda imensa
para a América Latina.
Tenho algumas ideias, companheiros, acredito que a integração da América Latina está na frente de tudo … que nunca teremos massa crítica para lutar no mundo que a gente vive se não conseguimos a integração! Mas a integração não é apagar as fronteiras, nem apagar o hino, nem mudar a bandeirinha da pátria, nem nada disso, a integração é ter força coletiva como sociedade para poder dizer alguma coisa e ter peso no mundo em que vivemos!
Em todos estes anos, apostamos, sem conseguir, que o Brasil, pelas suas dimensões e, por isso, pela sua responsabilidade que tem com América Latina, congregaria essa integração, porque ela só se dará com a Amazônia ou não se dará. E sem integração não se tem massa crítica para fazer desta América um mundo melhor.
Já tivemos, companheiros, há mais de cem anos, a discussão acerca da construção do socialismo num país só. Já a tivemos, já assistimos essa fita, já sofremos com ela, temos que aprender com a história. Se acreditarmos que no mundo de hoje, com a explosão tecnológica, seja possível para os pequenos países conseguir um sinal libertador, que permita chegar perto do socialismo, estamos mais que sonhando. Então, o primeiro problema é a integração das nossas universidades, de nosso conhecimento, porque ali se está formando o que vai ser a classe trabalhadora do futuro.
O desenvolvimento tecnológico do mundo vai impor uma qualificação para os trabalhadores do futuro, necessariamente de tipo universitária, não por vontade do mundo capitalista, mas por uma necessidade tecnológica. Essa massa que está ingressando nas faculdades da América hoje é, potencialmente, revolucionária. Nossa luta pela integração é uma luta por integrar a inteligência latino-americana. Ter um sistema de pesquisa nosso e ter uma consciência universitária que pertencem às aflições do continente.
Tenho visto muita poesia,
muito fervor revolucionário,
e tenho visto muitos castelos de ilusão caírem no solo.
Não quero mentir para as novas gerações, não, a humanidade está na frente de um desafio do tamanho que o homem nunca viu acima da terra. O homem tem que demonstrar, como espécie, se é capaz, deliberadamente, de criar uma sociedade melhor ou não. Ou sucumbir. É isso o que temos, companheiros, a luta gigantesca, extremamente volumosa e difícil, e não vamos conseguir com quatro gritos. Precisamos de uma profissionalização de nossas vidas, de nossa entrega, da construção de times, de um sentido de compromisso com uma humanidade melhor. Não é fácil porque o mundo está se globalizando e aparecem para nós contradições por todas as partes.
A companheira falava contra as multinacionais, dentro em pouco vamos estar arrasados pelo populismo das direitas da Europa, que também estão contra as multinacionais, mas são fascistas. Nada podemos esperar desse ultranacionalismo, o de Trump, o de Le Pen, o que liderou o processo da Inglaterra… Esses não são nossos companheiros.
Então, é bem claro que a luta pelo Brasil não é só um questão de solidariedade, é uma questão de tremendo interesse como latino-americano.
O problema não é só do Brasil é um problema nosso. Nós estamos jogando com a história, o futuro da Amazônia, por quê? Porque sem Brasil não teremos jamais massa crítica para poder negociar no mundo que virá. Vocês podem imaginar, compatriotas, negociar com esse continente que se chama China, ou Índia, ou Estados Unidos (com a sua terra prometida de costas para o Canadá), ou com a Europa que, apesar de tudo, são setecentos milhões de cidadãos com desenvolvimento do primeiro mundo.
Nós os latino-americanos isolados num monte de repúblicas vamos poder equilibrar essa balança? Não, companheiros, isto tem que ser compreendido por todos: para atuar no jogo diplomático se precisa de massa crítica, tem que ter peso para que as suas razões tenham validade, tem que ter o peso da massa por trás de capacidade socioeconômica, de capacidade científica, para que seja possível ganhar o direito de defender alguma coisa ou impor alguma coisa… Não é simples. É possível? Não sei, os fatos demonstrarão…
É belíssimo, temos que lutar por isso… Temos que dar conteúdo a nossa existência! A gente não pode construir uma sociedade de escravos, conscientes de que somos determinados pelo que passa no mundo rico, sem ter capacidade de sermos nós mesmos. Acredito nas possibilidades do continente, nos desafios do continente, por isso o pedido feito aos companheiros: este não é um problema da Dilma, do Brasil ou do PT, é um problema de todos nós! E nossa também é a luta da Bolívia, do Equador, do povo argentino, temos que começar a ficar cientes de que cada vez mais precisamos pensar como espécie, com dimensões de espécie, para defender a vida, ali onde se apresenta e onde houver que a defender.
E temos que considerar que temos que ser inteligentes, que precisamos de aliados, e que os aliados não somos nós mesmos, os aliados têm diferenças, mas sem aliados não se pode fazer política transcendente. Porque isso é o que fazem os orgulhosos, viciados no poder. Ter aliados é tentar procurar buscar – ao máximo – aqueles setores da sociedade que, sem pertencer a nós, tem contradições com esse mundo. Temos que ver quais são esses grupos, esses setores que às vezes estão afetados e que vivem sem as distintas formas de propriedade de nossos países, que também são vítimas. E não é para dá-los de presente (aos adversários), por esquematismos, multiplicando a força deles, multiplicando seus aliados potenciais somente por medo, porque não têm que ter medo, os pequenos comerciantes, não ter que ter medo as camadas da classe média, da América latina, do Uruguai…Não é essa a luta! A luta é outra, a luta é contra a gigantesca concentração de riqueza no mundo contemporâneo, onde a taxa que gera capital a nível mundial é mais importante que a taxa de crescimento da economia mundial. O que demonstra que a riqueza está se multiplicando, mas se está concentrando muito mais do que se multiplica.
Por isso, essa luta do Brasil é nossa.
Vamos acompanhá-la!
Eu tinha aqui um envelope, uma carta do Lula que chegou para mim antes de ontem, que tornei pública. Curiosamente não apareceu na imprensa…acontece … não tive sorte. Esse é nosso problema. A resposta é o boca a boca, é o comunicarmos entre nós! Há uma parte importante do nosso povo que está confundida ou que pode estar confundida pela enorme pressão que tem uma informação distorcida, que mais que dizer verdades diz meias-verdades. É um jeito de torturar não dizendo verdades. As partes fundamentais deste drama não aparecem… Aparecem seus sucessos, mas não as partes fundantes do drama e acredito que é papel dos companheiros tratar de difundir a verdade.
Finalmente, companheiros, sem derrotismos. Temos veteranos aqui … que podem ter sido enganados, e certamente o foram, mas que se lembram de quando estávamos no caralho da ditadura, lembrem-se! Não vão conseguir tão fácil. Para eles também não vai ser simples, porque apesar do orçamento, da manipulação da mídia, tem uma coisa que está presente: eles não têm razão, no fundo não têm razão, pelo enorme egoísmo que contém este conjunto de escolhas. E nossa luta tem razão, apesar dos erros, dos sonhos, das utopias, e das bobagens que fazemos, porque não podemos deixar pelo caminho as limitações da nossa condição humana.
O que tem de maior valia em nós não é nem nosso talento, nem o grau de verdade, senão a razão histórica, por razões da generosidade de acreditar que o homem tem capacidade de criar, apesar de todos os pesares, um mundo melhor.
A nossa visão não é genocida do homem, pois não acreditamos que o homem pode ser o lobo do homem. O homem pode ser a expressão da solidariedade, no conjunto da humanidade. O homem é o fator criador de civilização. Reconhecemos essa quota de egoísmo que todos levamos, mas nossa luta é por aprender a dominar esse egoísmo que levamos para conseguir criar uma civilização melhor do que a nossa. Este é nosso senso: nunca vamos tocar o céu com as mãos e ter um mundo perfeito… Vamos subir escadas civilizatórias numa humanidade melhor. Não somos deuses, temos que administrar nossas contradições e aprender a direcioná-las, porque precisamos de civilização e da sociedade. Isto é o que eles não têm, porque estão fechados num egoísmo desesperado para justificar e aumentar a riqueza, é bom que percebamos isto, porque não é que sejamos bons, mas porque bom é o caminho que escolhemos para viver sem atrapalhar aos outros.
A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.
Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena
No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.
Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes.
A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial
A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.
“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.
Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán—, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.
O novo ciclo
A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.
O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.
Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.
A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.
Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.
Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)
Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.
Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.
Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.
Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.
Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019,pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.
Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.
Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.
Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).
A LEI ATUAL
Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.
A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos. O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.
Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.
Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.
Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.
Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.
Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.
Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.
Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.
DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES Buenos Aires, 18 de outubro de 2020
Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia. Viva a Bolívia! Evo Morales