O Plano Diretor Estratégico (PDE), aprovado em julho de 2014 e que orienta as mudanças urbanas na cidade, definiu diversas áreas para habitação social em todas as áreas de São Paulo. Mas várias delas não chegarão se quer a sair do papel. Entenda o dilema das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e os problemas em efetivar o instrumento para tornar São Paulo uma cidade mais justa e menos segregada.
Na histórica avenida São João, bem onde o Minhocão faz a curva, pode-se encontrar um novo empreendimento imobiliário, o Cosmopolitan. Dentro do esquema atual das incorporadoras de produzir apartamentos cada vez menores para um público solteiro e profissional liberal aos moldes do que é feito em grandes metrópoles do mundo como Nova York, o Cosmopolitan oferece espaços entre 35m2 e 50m2. Serão 240 unidades, 12 apartamentos por andar em 20 andares, com uma suíte e uma vaga na garagem cada. Para quem prefere não morar em frente a um viaduto onde passam cerca de 70 mil carros diariamente de acordo com a CET, não há preocupação. Os apartamentos começam depois de seis andares de garagem e lojas no térreo, dentro do que é chamado fachada ativa. A vista do primeiro andar onde se pode morar, então, ficará bem acima do Elevado Costa e Silva. “O que eu mais queria ver é o Minhocão virar um lindo gramado, com árvores e áreas de lazer”, confessa a corretora. Cada metro quadrado no novo empreendimento gira em torno de R$ 9.600, com direito a áreas comuns como um espaço para animais de estimação e um grande salão gourmet. “Você está procurando para morar ou como investimento?”, indaga a corretora na primeira abordagem a um potencial cliente. De acordo com as previsões da própria incorporadora, o apartamento terá uma valorização entre 30% a 40% na data de entrega, prevista para 2018. O metro quadrado, então, ficaria entre R$ 12.480 e R$ 13.450.
Logo atrás de onde será erguida a torre para o Cosmopolitan, há o antigo Lord Palace Hotel, inaugurado em 1958, desativado em 2004 e ocupado pela Frente de Luta por Moradia (FLM) em 2012. Hoje, moram cerca de 320 famílias espalhadas pelos 16 apartamentos em cada um dos 11 andares. A estrutura do prédio conta com 3 porteiros, 3 ascensoristas e 3 responsáveis pela limpeza. Cada família contribui com R$ 150 por mês para manter tudo funcionando. Jaqueline dos Santos, 48, que hoje mora na ocupação, trabalhou no antigo hotel enquanto ainda operava. “Eu morava no prédio ao lado, pagando aluguel inteiro, e vinha trabalhar aqui no hotel. Muita gente famosa se hospedava aqui, como o time do Palmeiras, Hebe Camargo, Garrincha. Quando eu vi a Hebe, queria ir lá pedir um autógrafo, mas fiquei com vergonha. Só a vi meio de longe, mantendo distância.” No fundo do hotel, há um espaço comum grande, onde antes ficavam estacionados os carros dos visitantes. “Às vezes a gente faz um churrasco com todo mundo aqui, como nas festas de fim de ano”, conta Jaqueline, mostrando o jardim que durante praticamente o ano inteiro fica sem atividades. Ao andar pelos corredores, é visível a quantidade de crianças que moram na ocupação. Diversas portas dos quartos do hotel tiveram desenhos e escritos feitos por elas celebrando a família coladas nas entradas de cada domicílio. A coordenadora da FLM, Maria do Planalto, 59, explica que elas passam a manhã nas escolas e, depois, vão para um dos prédios da Porto Seguro na região. “Elas almoçam nas escolas e jantam lá na Porto Seguro. Assim, as família não precisam se preocupar com a alimentação das crianças. E quando alguém pensaria que seus filhos iriam estudar em uma escola na Paulista?” Nesse meio tempo ou nos fins de semana, ela conta que às vezes levam as crianças até a praça Marechal Deodoro brincar, mas é muito raro. Maria do Planalto é taxativa quando diz que o problema das moradias está também na má administração de verbas públicas. “A corrupção no Brasil está no Judiciário. Cada um deles, além do salário, ganha R$ 4.337 como auxílio moradia e cerca de R$ 7 mil para auxílio-escola de seus filhos. Se tirar R$ 500 apenas dos juízes e promotores, já seria o suficiente para garantir moradia para a gente.” Sobre a polêmica sobre o uso futuro do Minhocão, Maria é bem mais realista que a vizinha corretora: “Acho que o desmonte não dá, né? A referência da cidade é o Minhocão. As questões dos apartamentos de frente são um grande problema, mas se precisa investir é nas periferias. Não há projeto cultural, não há investimento nenhum lá. Aqui no centro tem muito prédio que não exerce sua função social. Precisa-se de vontade pública para que famílias de baixa renda possam ocupar esses edifícios abandonados”.
O ponto de conexão entre o novo empreendimento Cosmopolitan e a ocupação da FLM, além de ser vizinhos, é que ambas as áreas foram definidas como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) pelo mais recente Plano Diretor Estratégico (PDE) aprovado em julho de 2014. Como explica o site para discutir a Revisão da Lei de Zoneamento, ZEIS “são porções do território destinadas, predominantemente, à moradia digna para a população da baixa renda por intermédio de melhorias urbanísticas, recuperação ambiental e regularização fundiária de assentamentos precários e irregulares, bem como à provisão de novas Habitações de Interesse Social (HIS) e Habitações de Mercado Popular (HMP) a serem dotadas de equipamentos sociais, infraestruturas, áreas verdes e comércios e serviços locais, situadas na zona urbana.” Em outras palavras, ambos os espaços deveriam ter parte de seu terreno destinado às habitações sociais.
A corretora do Cosmopolitan nunca tinha ouvido falar que a área daquele empreendimento em que o metro quadrado custa R$ 9.600 deveria destinar unidades ao público da baixa renda. E, na verdade, ele não precisa. A incorporadora MAC protocolou o pedido de construção da área no dia 25 de março de 2014, quatro meses antes do PDE ser aprovado. Naquela época, a área era definida como Zona Mista, o que garante a construção de um novo empreendimento. “Isso acontece muito. É só definirmos quais são as áreas para habitações sociais que as incorporadoras correm para protocolar uma nova construção, antes mesmo que consigamos aprovar as zonas de interesse especial”, explica a vereadora Juliana Cardoso (PT). Para que haja negociação com os movimentos de moradia, as áreas destinadas às ZEIS são publicadas antes de ser incorporadas definitivamente ao PDE para ser votado e aprovado. É um meio de manter a participação dos movimentos, mas também abre para que as empresas do mercado imobiliário ajam rapidamente para garantir com que empreendimentos mais rentáveis do que as HIS sejam realizados.
Na teoria, as habitações sociais são mecanismos para garantir com que os bairros da cidade não sejam extremamente segregados, ou seja, com populações de apenas uma classe social. Além disso, garante com que a população de baixa renda tenho o direito à cidade e não seja exilada nas periferias do centro urbano.
Hoje, grande parte dos projetos habitacionais visam a aquisição da propriedade, em que o morador assume um financiamento a longo prazo para ter a escritura de determinado imóvel. Isso, porém, não é garantia de evitar a segregação. “Em ZEIS 2 e 3, centrais sujeitas a intensos processos de valorização imobiliária, há a necessidade de diversidade das formas de acesso à moradia. A aquisição da propriedade não garante a permanência dos mais pobres, em função sobretudo dos processo de revenda. Em curto a médio prazo, o subsídio público seria repassado para famílias de maior poder aquisitivo. Para garantir a eficácia do instrumento, como o acesso e a permanência da população de menor renda, precisamos de políticas alternativas, como locação social, propriedade coletiva ou fundos comunitários de terra”, explica a arquiteta e urbanista Simone Gatti.
O instrumento que garante as habitações sociais, recém-reformulado para o PDE de 2014, ainda nem conseguiu ser aplicado de forma eficaz e já pode sofrer uma mudança. Neste ano, o prefeito Fernando Haddad (PT) encaminhou à Câmara Municipal de São Paulo o projeto de lei 157/2015, que estabelece que as incorporadoras do mercado imobiliário podem pagar à prefeitura para não construir as habitações sociais em determinada área definida como ZEIS. O dinheiro arrecadado seria destinado ao Fundo Municipal de Habitação, que ficaria responsável por criar as habitações em outra ZEIS, mas dentro de um mesmo perímetro (como em uma mesma subprefeitura). “Isso é um absurdo! Abrir a brecha para essa aprovação pode gerar um precedente para que isso se instale no novo Zoneamento (já que o PL define que esta flexibilização é válida para projetos aprovados na vigência do zoneamento de 2004, que está sendo revisado) ou se criem novas leis semelhantes no futuro. O que está sendo proposto é uma flexibilização sem tamanho e entra em total desacordo com os princípios da ZEIS construídos pelo PDE e desmantela todo o trabalho de construir territorialmente a reserva de área para HIS. A ZEIS deve atuar como garantia de permanência e atendimento dessa população no seu local de origem. Se um empreendedor resolve construir em terrenos ocupados por cortiços e doar outra área para HIS, o que acontece? Essas famílias vão ser deslocadas de todos os seus vínculos (emprego, escola dos filhos, vizinhança, etc) — isso se forem atendidas”, avalia Gatti.
Um manifesto, assinado por diversos institutos e movimentos de moradia, contra o PL já foi publicado e aponta seis motivos para ser contra o projeto. Entre os argumentos, está a ameaça às ocupações já feitas, a redução do número de áreas para habitações sociais, a falta de participação popular na questão, e a retirada de responsabilidade social do mercado imobiliário na construção de uma cidade mais justa e inclusiva.
O PL já passou pela Comissão de Finanças e teve uma audiência pública no dia 17 de junho. A vereadora Juliana Cardoso acredita que o PL deverá ter um substitutivo, contemplando alguns pedidos dos movimentos de moradia: “A troca das HIS por contribuição ao Fundo Municipal de Habitação deve ser extinguida e em seu lugar deverá entrar a doação de terrenos em áreas que não eram ZEIS anteriormente, mas sim Zonas Mistas. Dessa forma, o número de áreas de habitação social deverá ser equilibrado, já que no PL original elas poderiam ser cortadas pela metade ou mais.” O PL agora entrará na pauta da Câmara para aprovação ou não.
Enquanto isso não se resolve, os investidores em imóveis podem garantir a sua oportunidade com lucros após três anos girando entre 30% a 40% do valor investido. A ocupação da FLM, porém, espera o resultado de um edital, que já teve a publicação dos resultados adiada diversas vezes, para garantir com que as 320 famílias continuem morando na região.
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