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Política

“Não vamos abrir mão de direitos duramente conquistados”, afirma Sérgio Mamberti

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Em cartaz há seis meses com a peça “Visitando o Sr. Green”, que fala sobre intolerância e redenção e na interpreta um judeu, o ator Sérgio Mamberti, está preocupado com os rumos do país. Durante entrevista exclusiva aos Jornalistas Livres, ele narrou um episódio recente que, para ele, serve de comprovação sobre o clima de intolerância atual. Mamberti estava na Rede Globo e o motorista que foi buscá-lo na emissora vestia uma camisa que fazia referência ao Partidos dos Trabalhadores (PT). Pois o rapaz foi ‘proibido’ por um segurança da Globo de entrar no estacionamento. “A entrada só foi permitida depois que ele trocou de camisa. O rapaz precisou trocar de camisa!”, contou, estarrecido. “Sei que isso não é orientação da emissora, mas mostra como as pessoas [não] estão lidando com a divergência no campo político”. Mamberti, um dos fundadores do PT, não poupa críticas ao partido, mas clama por uma agenda mais propositiva e menos reativa por parte da legenda e da oposição. Confira a entrevista:

Jornalistas Livres — Como você avalia o atual momento político que o país atravessa?

Sérgio Mamberti — Vivemos um momento preocupante. Muito mais pela condução das discussões e da crise política do que pela crise econômica. A situação do Brasil está muito melhor hoje do que quando o Partido dos Trabalhadores ascendeu ao poder. Quando chegamos ao governo a situação do país era bastante grave. Havia uma inflação muito maior do que a de hoje, e as reservas eram de US$ 38 bilhões. Em um ano tiramos os Brasil da lista de devedores do Fundo Monetário Internacional e hoje temos reservas de mais de US$ 370 bilhões. Foi um governo muito positivo para o país. Mas houve um acirramento da crise econômica internacional e agora, vemos informações totalmente manipuladas, criando o quadro de que PT e seus membros são os únicos culpados pelo momento crítico que vivemos e ignorando totalmente a crise internacional. De repente parece que é preciso achar um culpado único, e a verdade é que o Brasil é um país classista, especialmente a região Sudeste, então o governo ser do Partidos dos Trabalhadores, é um agravante e o torna o alvo perfeito. Fiz parte do governo por 12 anos e reconheço que cometemos erros, mas se compararmos o avanço do Brasil com o PT com outros governos que tivemos, na verdade, não dá para comparar.

Sérgio Mamberti — Qual o papel da internet no cenário do debate político brasileiro?

Jornalistas Livres — Em 13 anos de PT, a internet passou a fazer parte da vida das pessoas e neste período as redes passaram a ter um papel importante na formação de opinião. A internet tem que ser livre, sou um entusiasta das redes sociais, mas as pessoas precisam ter consciência do quanto o que elas dizem lá [nas redes sociais] tem impacto na vida pessoas. Eu mesmo já fui vítima do julgamento apressado, agressivo e irresponsável das redes sociais, quando usaram um discurso meu totalmente fora do contexto para me atacar, me chamando de defensor de bandido. Ora, quem conhece a minha história sabe que fui acusado injustamente. Da pior forma possível, eu percebi que as pessoas estão sendo culpabilizadas sem comprovação de dolo, simplesmente por terem opinião. Isso é o mais grave deste momento que vivemos.

Jornalistas Livres — Como você enxerga a crise política que governo da presidenta Dilma atravessa?

Sérgio Mamberti — A presidenta Dilma ainda não conseguiu governar. A oposição e até mesmo as forças aliadas ao governo não mediram consequências para imobilizar o governo. E justamente os meios de comunicação, ao invés de criarem um ambiente propício para se fazer uma análise clara da situação e debater a crise econômica e política, tomam partido — e não de forma clara, que fique registrado — , prejudicando o sistema eleitoral que nós lutamos tanto para reestabelecer. Custamos tanto a estabelecer um espaço de crítica, mas agora ele não é usado! Não está satisfeito com o governo, vá para ruas, proteste, exija. Isso faz parte da normalidade democrática. Mas impedir a governabilidade e enfraquecer as instituições democráticas é uma irresponsabilidade. Dessa forma, vejo que a cultura, a internet e a mídia são os fatores que podem reequilibrar esse debate de forma a qualificá-lo. Há forças políticas que querem impeachment e isso é muito grave. Voltaríamos a ser república das bananas. Onde disseram que quase 55 milhões de votos podem ser ignorados dessa forma? Hoje, somos a sétima economia do mundo, a presidenta está abrindo a conferência das Nações Unidas. Querem fazer aqui o fizeram no Paraguai do presidente Lugo, que foi deposto e instalaram um governo de conveniência. Mas o Brasil não é o Paraguai, e nem tem o mesmo peso econômico e político que o Brasil no mundo. Então, estou junto com as forças que lutam pela institucionalidade e o respeito ao voto. Luto por uma articulação que debata a crise de forma propositiva, que sugira saídas para crise, mas que respeite o processo democrático. Não abriremos mão de conquistas conseguidas a duras penas.

Jornalistas Livres — Você falou sobre um espaço de autocrítica. Onde você acha que o governo eleito errou ou o governo anterior e o próprio Partido dos Trabalhadores errou na hora de comunicar o seu projeto?

Sérgio Mamberti — Há anos que a gente vem lutando por uma comunicação democrática, mas ela ainda não existe. A comunicação do Brasil é um monopólio de famílias e, de uma certa maneira, as informações passam a ser manipuladas para favorecer interesses de grupos específicos e não do país como um todo. Eu acho que o governo deu pouca importância à democratização da comunicação e eu acho também que as forças de esquerda democráticas realmente não tiveram um empenho no sentido de mostrar as conquistas que obtivemos. Eu vejo que a cidadania passa pelo acesso à cultura e a liberdade democrática, e o processo democrático real se constrói a partir de uma cultura forte, institucionalizada, junto à educação, ou seja, a educação é a sistematização de todo esse conhecimento e de todos esses valores dos quais hoje sentimos falta. E aí, a informação democrática pode fazer com que a sociedade usufrua desses conhecimentos. É somente a partir de informação democrática e de qualidade que a população pode tomar posições qualificadas e inteligentes. Eu acho que houve um descuido com a informação e com a educação. Quando a gente pensa que nós emancipamos economicamente mais de 50 milhões de pessoas, ao mesmo tempo eu olho e vejo que uma boa parte dessas pessoas, hoje, estão sendo cooptadas pelo consumo, pelo sistema. E não estão percebendo que essa conquista foi histórica e que não foi de graça. Foi uma conquista árdua que até hoje é questionada. Quando você pensa que as grandes bandeiras sociais como o Bolsa Família são questionadas até hoje, como soluções clientelistas, que criam uma dependência do Estado. Quando a gente pensa no ataque virulento que a Petrobras sofreu, num momento em que o próprio petróleo sofreu uma desvalorização no preço do barril de R$ 100 pra R$ 45, percebe que as pessoas estão sendo manipuladas. E a gente sabe a importância social do pré-sal e a ambição das grandes petroleiras no sentido de voltar a ter controle sobre estas reservas. Quando a Dilma fez a mudança no sistema de exploração, houve uma medida que penalizou extremamente o governo porque certamente o petróleo, por mais que as pessoas digam que é uma energia suja, ultrapassada, ainda é o que move a economia do mundo. E eu não posso esquecer que passei por 64 e sei que as articulações internacionais também estão presentes aí nesse processo. Eu não sei em que nível isto acontece realmente, a gente sempre acaba sabendo muito depois, mas eu percebo que há uma tentativa de desmoralização de todos os governos de esquerda da América Latina. Absolutamente coordenada. O Evo Morales é chefe de contrabando, o filho da Bachelet é corrupto, a Cristina Kirchner é ditadora, a Venezuela é isso, aquilo. Ou seja, há uma tentativa de desmoralização de todas essas grandes lideranças que conquistaram uma institucionalidade democrática aqui na América do Sul e se uniram fortemente na defesa dessa institucionalidade. De uma certa maneira, querem fazer com que a gente volte pra uma situação anterior a que, absolutamente, historicamente, não podemos mais voltar. Esse retrocesso não existe. Eu não acredito que a gente possa retroceder para como era a América Latina até a década de 90.

Jornalistas Livres — A sua peça atual, Visitando Sr. Green, fala sobre intolerância e a redenção das pessoas em torno dessa intolerância. Qual você acredita que pode ser a redenção para o momento tão agressivo politicamente que vivemos hoje no país?

Sérgio Mamberti — Veja bem, eu acredito sempre que a cultura pode prestar um serviço muito importante. Eu tenho certeza que as pessoas que assistem o Sr. Green saem daqui muito mais enriquecidas, e com a sensação de que o respeito às diferenças é fundamental. É muito importante que a questão religiosa, a questão da diversidade sexual, tenha uma visão de alinhada com aConvenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. O Brasil é signatário, são mais de 150 países do mundo que são signatários dessa convenção. E ela prevê justamente isso, que as questões ligadas a idade, à orientação sexual, aos direitos conquistados, o respeito ao processo democrático, e principalmente o respeito à diversidade cultural passam a ser elementos fundamentais. porque quando se fala de diversidade cultural, a gente tá falando de tudo isso. Então, eu acredito que a cultura pode ter um papel muito importante no sentido de fazer com que as pessoas compreendam e possam se entender melhor. Claro que isso tem que estar aliado a políticas públicas que consolidem a convenção, já que somos signatários.

Jornalistas Livres —E como você vê o fato de que o Congresso aprovar, dentro de uma comissão especial, a definição de que uma família só pode ser formada por um homem e uma mulher, e exclui qualquer outro tipo de formação, seja mãe solteira, seja pai divorciado, sejam casais homossexuais…

Sérgio Mamberti — Eu acho um retrocesso absolutamente inaceitável, num momento em que o mundo civilizado inteiro, de alguma maneira, já superou e resolveu este debate. Países como Uruguai e outros países têm adotado políticas públicas, no sentido de defesa justamente desse alargamento de conceitos, antes muito restritivos, e sempre dentro de um processo democrático de fato. Infelizmente, nós elegemos no último pleito um congresso extremamente conservador e que está legislando em função, inclusive, dessa visão de mundo estreita e maniqueísta. Um retrocesso até com relação aos governos anteriores. Eu tenho 76 anos, desde os anos 60 que o mundo vem lutando justamente pela abertura e pelo alargamento desses horizontes. Então, eu vejo este como um momento muito difícil. Mas também vejo a sociedade em vários aspectos muito mobilizada. Então, separar e romper os princípios do governo atual não vai ser tão simples, como foi anteriormente. Porque você não vai abrir mão de conquistas históricas, nem eu. Eu acho que os movimentos sociais não vão poder aceitar que a gente tenha um retrocesso nesse nível. É o que eu espero, sinceramente.

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Jornalistas Livres —E você acha que a resistência dos movimentos sociais aliada à panela de pressão política que a gente tem vivido, pode terminar em enfrentamento mais agressivo?

Sérgio Mamberti — O enfrentamento já tá aí. Eu acho que a gente já tá enfrentando. A gente já tá num processo de enfrentamento. Eu acho que precisa ver como que a gente vai conduzir isso. Mas eu acho que as posições estão muito claras e muito firmes. Quem tem uma posição de abertura e uma posição democrática tá defendendo essa posição como eu estou defendendo aqui. E não é pouca gente. O problema é ver com que você vai estabelecer um diálogo que permita que a gente chegue a uma solução. É isso. E eu diria que é mais que tolerância, porque a tolerância ainda tem um caráter arrogante. “- Eu tolero.” Não. É aceitação mesmo. É você aceitar a diferença, é você aceitar o outro e as outras posições. E você perceber que todos têm direito de se expressar. É claro que as atitudes que cerceiam essa liberdade certamente terão que ser combatidas. Então todas as posições que, de uma certa maneira, estreitem essa abertura que foi conquistada não podem ser aceitas. Elas vão restringir a liberdade, e por isso eu acho que a gente tem todo o direito, inclusive, de lutar pra que essas conquistas sejam mantidas e que haja realmente uma livre expressão.

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Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

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Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

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#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

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Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

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Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

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Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

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