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Política

‘Não há nada mais desmobilizador hoje do que 2018. Entre nós e 2018 há um abismo’

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Postado inicialmente por Sul21

Marco Weissheimer

“O golpe em curso no Brasil se insere no processo internacional da contrarrevolução neoliberal que está construindo estados constitucionais não democráticos pelo mundo inteiro. Os golpistas estão divididos e enfrentam dificuldades para lidar com a crise de legitimidade decorrente do golpe, mas estão unificados programaticamente. E esse programa põe em questão princípios fundamentais do pensamento democrático do pós-guerra, gerando um cenário de instabilidade , ódio e intolerância”. A avaliação é do cientista político Juarez Guimarães, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que aponta graves conseqüências desse quadro nos planos nacional e internacional. “Os valores fundamentais da paz, da liberdade, dos direitos humanos, do pluralismo e da tolerância estão em questão e é por isso que falo que estamos vivendo uma crise civilizacional”, diz o cientista político em entrevista ao Sul21.

Juarez Guimarães analisa os acontecimentos recentes da vida política brasileira sob a perspectiva de uma linha histórica mais longa, aponta um déficit de consciência da esquerda sobre o que está acontecendo no Brasil e no mundo, defende a centralidade da campanha por Diretas Já e adverte sobre os riscos de depositar todas as esperanças em 2018 para a superação da crise atual. Para ele, quem achar que estamos vivendo apenas um intervalo no processo de normalidade democrática, pode avaliar, por exemplo, que a sentença do juiz Sérgio Moro contra o ex-presidente Lula deve ser reformada em segunda instância, uma vez que não tem base jurídica nem provas. No entanto, diz, estamos vivendo um estado de excepcionalidade onde a exceção é a regra. “Moro é corrompido politicamente e está exercendo seu mandato de juiz de forma partidária”. E acrescenta:

“Qualquer pensamento político que se estreitar no plano da legalidade jurídica estará cometendo um gravíssimo erro. Com o STF, tal qual está funcionando, com a Constituição tantas vezes violada como foi, qual a dificuldade em praticar mais uma violação? Não há nada mais desmobilizador, hoje, do que 2018, porque entre nós e 2018 há o abismo. Se não enfrentarmos a possibilidade do abismo corremos o risco de ser tragado por ele”.

“Os valores fundamentais da paz, da liberdade, dos direitos humanos, do pluralismo e da tolerância estão em questão”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Sul21: Diante de uma conjuntura extremamente instável, que muda rapidamente, como, qual a sua avaliação sobre a situação política que o Brasil está vivendo? 

Juarez Guimarães: Estou trabalhando com a ideia de uma contrarrevolução neoliberal, que dialoga com elaborações que estão sendo feitas pela ciência política brasileira. A ciência política brasileira, majoritariamente, se posicionou, através da Associação Brasileira de Ciência Política e da Associação Latino-americana de Ciência Política (Alacip), caracterizando o que aconteceu no Brasil como um golpe. O cientista político sênior do Brasil, Wanderley Guilherme dos Santos, escreveu o livro “A democracia impedida. O Brasil no século XXI” (FGV Editora), cujo título deve ser bem entendido.

A “democracia impedida” contém a denúncia do que ele chama de golpe parlamentar, que é uma figura nova na ciência política. Em regimes democráticos representativos, forças políticas utilizam-se de aparatos previstos na Constituição, reinterpretando-os de forma ilegítima, forçando o sentido previsto na Carta Constitucional, para promover um golpe parlamentar. Esses golpes são ditos parlamentares, diz Wanderley Guilherme dos Santos, porque os atores são parlamentares que necessitam de uma cobertura de legitimação do Judiciário. Eles são, por natureza, instáveis e carecem de legitimidade, razão pela qual procuram a via anti-democrática.

O autor acrescentou o subtítulo “O Brasil no século XXI” por entender que esse golpe parlamentar não é um ser estranho na atual conjuntura das democracias ocidentais, embora ele não queira fazer, do que ocorreu no Brasil, um paradigma. Está apenas chamando a atenção para o fato de que existe uma crise das democracias ocidentais e que fenômenos semelhantes, de captura da soberania popular e de um encaminhamento anti-democrático das instituições a partir de seu próprio interior encontra alguma tipicidade, hoje, no funcionamento dessas democracias. Ele revisita Karl Polanyi, recuperando a oposição dramática entre democracia e capitalismo para pensar esse novo contexto.

As forças capitalistas empoderadas estariam retirando dimensões fundantes da democracia. O autor opõe essa visão a de T.H.Marshall, autor de “Cidadania, Classe Social e Status”, que via uma relação mais virtuosa entre democracia e capitalismo, o que levaria a um aprofundamento crescente das condições de cidadania até se chegar a um ponto em que a própria ideia de classe social estaria subsumida a um status de igualdade que seria construído. Wanderley Guilherme dos Santos reivindica a ideia de que as democracias representativas, tais como nós as conhecemos, são eventos recentes na história ocidental, eventos do pós-guerra, mergulhados hoje em um processo de grande tumulto e instabilidade.

Trata-se de um livro muito importante e é preciso chamar a atenção sobre ele. A mídia brasileira praticamente o ignorou. O principal cientista político do país, que estuda a democracia há quase cinco décadas, escreve um livro importante como esse e ele é ignorado pela mídia brasileira. Nós estabelecemos uma afinidade com essa interpretação e também com a interpretação do cientista político Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília, que caracteriza o que nós estamos vivendo como uma situação de exceção. Foi rompida a Constituição e estamos numa situação marcada pelo arbítrio, onde os fundamentos constitucionais de 1988 já não estão valendo. Nesta situação, o Executivo funciona de uma forma ilegítima, o Legislativa funciona com uma alienação de representação, de um modo absolutamente autonomizado em relação à sociedade, e o Judiciário emite jurisprudências arbitrárias de forma seqüencial. Cada caso é um caso, dependendo das conveniências e dos interesses políticos envolvidos.

Luis Felipe Miguel, concordando com essa avaliação de que houve um golpe parlamentar, elabora a ideia de uma crise do estado democrático brasileiro, onde os três poderes estão trabalhando em um regime de exceção. Nós dialogamos com esses dois conceitos – golpe parlamentar e estado de exceção – para trabalhar a ideia de uma contrarrevolução neoliberal.

Sul21Quais seriam as características desta contra-revolução neoliberal?

Juarez Guimarães: Esse conceito parte da ideia de que, para pensar a conjuntura brasileira na sua imprevisibilidade e elevado grau de arbítrio, é preciso recorrer à história longa, ao processo inacabado e interrompido de construção de uma república democrática no Brasil e aos impasses históricos dessa construção. Ao inserirmos a narrativa do golpe de 2016 na história brasileira, não pretendemos interpretar esse golpe a partir do que ocorreu em 1964. O que queremos é identificar uma reiteração de sentido, isto é, a incapacidade das classes dominantes brasileiras de conviver com a democracia naquilo que ela tem de substantivo, como a distribuição de poder e riqueza e de alargamento de sua base social.

“O sentido do golpe de 64 está sendo reiterado agora, com uma grande diferença”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Revisitamos, por essa via, os clássicos de interpretação do Brasil, principalmente o livro “A Revolução Burguesa”, de Florestan Fernandes, que interpretou 1964 como uma revolução burguesa brasileira que conjugou capitalismo selvagem e autocracia. As classes dominantes brasileiras, muito prematuramente, viveram o dilema distributivista pela pressão das classes populares em um espaço restrito de manobra, em função de sua dependência em relação às classes dominantes internacionais. Pressionada desde baixo e com um espaço restrito de manobra, ela optou historicamente por conjugar capitalismo com autocracia e essa é a história da ditadura militar.

Sul21Na sua opinião, qual a relação que existe entre a narrativa do golpe de 2016 e a do golpe de 1964?

Juarez Guimarães: O sentido do golpe de 64 está sendo reiterado agora, com uma grande diferença. Além dessa pressão dos de baixo para conseguir um alargamento da distribuição de poder e das riquezas, e do fato de a economia brasileira ser hoje muito mais associada ao capitalismo internacional do que era em 64, temos uma mudança epocal da tradição liberal. Essa tradição liberal é responsável pela formulação dos princípios civilizatórios dominantes no mundo. No entanto, esses princípios, nas últimas quatro, cinco décadas, passaram por uma grande mudança em nível global.

O neoliberalismo já tem uma história e já há uma literatura especializada sobre esse tema, em grande parte desconhecida pela esquerda brasileira, que estuda esse fenômeno epocal e suas consequências no sentido de desconstruir o princípio da soberania popular nas democracias ocidentais. O livro “Undoing the Demos”, de Wendy Brown, trata dessa revolução discreta do neoliberalismo. Estamos falando, portanto, de uma época histórica, não de uma conjuntura específica. O que está ocorrendo no Brasil seria a atualização das classes dominantes nacionais se colocando contemporaneamente nesta revolução epocal do neoliberalismo. Essa revolução epocal reduziu o chamado liberalismo social a uma nota de pé de página dos livros que hoje compõem o paradigma econômico dominante.

Se estamos identificando uma época, é necessário também identificarmos as conjunturas no interior dessa época de quatro ou cinco décadas. Esse golpe no Brasil é a expressão de um terceiro período epocal do neoliberalismo. Se formos olhar sua história, o neoliberalismo teve uma proto-origem nos anos 30 e passa por um primeiro período de acumulação no pós-guerra. Ele alcançou, pela primeira vez, o governo de dois estados centrais, Estados Unidos e Inglaterra, no final dos anos 70, construindo, em nome da liberdade, uma agenda do Estado mínimo nos anos 80. Essa é a primeira fase de irrupção do neoliberalismo na vida política do Ocidente.

Nos anos 90, houve então uma reação, uma tentativa do Partido Democrata, dos Estados Unidos, originário do New Deal e a favor de um keynesianismo, e também da socialdemocracia europeia. Neste processo, ocorre uma absorção da agenda do neoliberalismo tanto pelo Partido Democrata norte-americano como pelo chamado novo trabalhismo de Tony Blair. Aí temos um primeiro momento de fusão do Brasil com esse novo movimento, através do governo Fernando Henrique, que tentou conectar o país nessa ideia de terceira via. Essa terceira via já não era, então, algo intermediário entre o liberalismo e o socialismo, mas sim entre liberalismo e neoliberalismo. O que resultou dos anos 90 foi uma desconstituição das bases programáticas e identitárias tanto do Partido Democrata norte-americano quanto das tradições socialdemocratas europeias, inclusive do Partido Trabalhista inglês.

“Contrarrevolução neoliberal está construindo estados constitucionais não democráticos”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Entramos neste século vivendo uma terceira fase do neoliberalismo, uma fase mais predatória, onde suas dimensões antidemocráticas ficam mais evidentes. A partir de 2008, quando as dívidas financeiras foram estatizadas, a contradição entre a gestão da dívida pública e as democracias vai para o primeiro plano. Vemos, então, essa dimensão antidemocrática do neoliberalismo irromper de forma mais evidente. O golpe no Brasil se insere nesta narrativa de uma contrarrevolução neoliberal que está construindo estados constitucionais não democráticos. Não são estados militarizados, como na época da guerra fria, mas estados constitucionais não democráticos.

Sul21Do ponto de vista do pensamento político de esquerda, quais seriam as principais implicações dessa contrarrevolução neoliberal, tanto no plano nacional como internacional?

Juarez Guimarães: Há muitas questões interpretativas sobre essa nova realidade que desafiam os marxistas. A primeira é como entender que o neoliberalismo tenha saído mais forte da crise de 2008. Muitos marxistas e outros intérpretes do neoliberalismo previram ali o fim do neoliberalismo e da globalização neoliberal. Este foi o segundo fim proclamado do neoliberalismo. O primeiro foi com a derrota dos governos conservadores de Reagan e Thatcher para alianças socialdemocratas nos anos noventa. Também aí se teorizou, de modo impressionista, que o neoliberalismo estava no fim. No entanto, ele ressurgiu com mais força. Como entender isso? A grande resposta a isso estaria em estudos feitos sobre a tradição neoliberal que se perguntam, no sentido gramsciano, se o neoliberalismo é apenas um evento superestrutural da política ou se ele já é expressão da constituição de uma classe capitalista transnacional. Isto é, se ele já é a expressão de uma vontade política classista que se organiza para além dos estados nacionais.

Há um artigo muito interessante de William Carroll e Jean Philippe Sapinski sobre esse tema, que utiliza os conceitos clássicos de Marx, de classe-em-si e classe-para-si, para abordar esse fenômeno. De 1970 a 2008, assinalam os autores, as exportações de mercadorias cresceram 6,9% no mundo. De 1970 a 2000, os investimentos globais diretos se multiplicaram 48 vezes. Já os empréstimos bancários internacionais, entre 1977 e 2008, se multiplicaram 55 vezes. Isto é, empoderou-se muito a financeirização do mundo. Esses autores dizem que esse período é de expansão da classe-em-si, um momento de expansão dos interesses financeiros que estavam alargando os seus espaços de reprodução.

A partir da crise de 2008, do acúmulo de suas vitórias e de expansão do setor financeiro, estaria ocorrendo a passagem da classe-em-si para a classe para-si. Essas classes transnacionais já estariam sendo capazes de formular um projeto de uma ordem internacional capaz de submeter estados nacionais aos paradigmas por ela formulados.

A Mont Pèlerin Society reúne, através da Atlas Economic Research Foundation, quatrocentos think thanks, articulados internacionalmente. (Reprodução: Muckety – Mapping connections of the rich, famous & influential)

Os autores se perguntam: qual o lugar dessa passagem da classe-em-si para a classe-para-si? Onde esses capitalistas estão ganhando essa consciência mundial e formulando um programa internacional de dominação? No Estado norte-americano, fundamentalmente, desde a época Clinton, mas também durante a era Obama, e no processo da unificação europeia. Nestes dois lugares estatais está se dando a formação dessa consciência política nova de uma classe capitalista transnacional. Eles também se pergunta pelos locais onde se organiza essa vontade política. A resposta é que isso se dá, fundamentalmente, em três lugares. Em primeiro lugar, na Organização Mundial do Comércio (OMC), que reúne 133 países e é o espaço onde se resolvem disputas, se produzem consensos estratégicos e se estabelecem regulações comuns.

O segundo lugar seria o Fórum Econômico Mundial de Davos, onde as mil corporações mais importantes do planeta comparecem anualmente. O papel do Fórum de Davos é formular e hierarquizar as agendas políticas. E o terceiro é a Mont Pelèrin Society, organização criada em 1947 para promover valores e princípios liberais e pode ser considerada como a origem do neoliberalismo. Essa sociedade reúne, através da Atlas Economic Research Foundation, quatrocentos think thanks, articulados internacionalmente para organizar a cobertura intelectual desse paradigma.

Sul21Em que medida, esse movimento internacional já estabeleceu raízes no Brasil também?

Juarez Guimarães: Quando estudamos o caso brasileiro e constatamos as contradições no interior da coalizão golpista, vemos que por trás de um Temer há um Maia e que por trás do Maia há um outro e por trás desse outro há um programa que unifica todos os golpistas. Os golpistas estão divididos e enfrentam dificuldades para lidar com a crise de legitimidade decorrente do golpe, mas estão unificados programaticamente. Essa unificação programática e esse background internacional torna possível fazer operações de reposição política como ocorreu recentemente na França. Lá, tínhamos uma direita derrotada eleitoralmente e uma social-democracia derrotada na sua identidade. De repente, surge um outro, que repõe o fundamento político desse programa e recompõe uma maioria parlamentar. Que milagre político é esse?

“O que está em jogo é um princípio de civilização que reorganiza os fundamentos da vida em comum”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Esse milagre político só pode ser entendido a partir de uma visão integrada dessa contrarrevolução neoliberal. Estamos vivendo uma espécie de abalo sísmico civilizacional. O que está em jogo é um princípio de civilização que reorganiza os fundamentos da vida em comum. O liberalismo keynesiano expressa uma visão de sociedade que tem como referência a ideia de soberania popular e é um lugar onde se disputam e se forma os direitos dos cidadãos. É esta ideia civilizacional que está em questão com essa contrarrevolução neoliberal.

Sul21Como vê as possibilidades de resistência e de enfrentamento desta contrarrevolução?

Juarez Guimarães: A insuficiência de consciência leva a uma desorganização da vontade política. A direita está à frente da esquerda em função disso. Ela está mais contemporânea e mais unificada programaticamente do que a esquerda, em nível internacional. O que a direita brasileira fez foi se amparar neste novo paradigma internacional para, com base nele, quebrar um acúmulo sincrético da esquerda brasileira. O que resulta desta contrarrevolução neoliberal não são nem regimes estáveis no plano nacional nem uma ordem internacional estabilizada, pelo contrário. O que temos visto como fenômeno intrínseco a este desmantelamento dos fundamentos de pactuação das democracias ocidentais é um grau crescente de ilegitimidade e de instabilidade política no centro dessas democracias. Então, essa contrarrevolução neoliberal não gera estabilidade, mas instabilidade permanente e um processo de degradação política.

Temos que entender melhor o que significa essa erosão dos fundamentos da soberania popular. A erosão da soberania popular pode se dar através da erosão da soberania de estados nacionais com a transferência para organismos internacionais de decisões que deveriam ser tomadas soberanamente pelos povos. Além disso, ataca-se os fundamentos democráticos da competição eleitoral através de um grau de financeirização inaudito das eleições. Hoje, por exemplo, a probabilidade de reeleição de um membro do Congresso norte-americano está em torno de 93% ou 94%. Isso significa que o sistema político já está de tal maneira oligarquizado, já se desprendeu do controle popular de uma tal maneira que ele não diz mais respeito ao cidadão comum ou diz muito pouco. Ele se reproduz no seu próprio processo de financeirização.

Junto com isso temos um processo de degradação profunda da formação da opinião pública democrática nestes países, inclusive nos Estados Unidos onde mais existiam leis anti-trustes, que proibiam a verticalização. Em 1996, houve um ato que reviu esses fundamentos de regulação e hoje a mídia norte-americana está concentrada em sete grandes empresas. Isso provoca um processo de corrupção da opinião pública. O que ocorre no Brasil em termos de concentração midiática não é uma excentricidade, mas algo que se verifica inclusive nos Estados Unidos.

“Sérgio Moro é um juiz corrompido politicamente que exerce seu mandato de juiz de forma partidária”. (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil)

Ao invés do pluralismo, o que vemos hoje é o crescimento de uma cultura do ódio e da intolerância. Os fundamentos da vida pública democrática em comum estão sendo erodidos. Isso está levando a uma situação de grande instabilidade e a fenômenos como a eleição de Trump. Vemos hoje também uma profunda desorganização das relações internacionais e a configuração de um contexto global onde o cenário de guerra não se tornou apenas possível, como provável. Os paradigmas de regulação estão em crise. A própria ONU está impotente. Estamos lidando com o crescimento potencial de conflitos bélicos. Isso deve fazer parte da imaginação da esquerda contemporânea. Os valores fundamentais da paz, da liberdade, dos direitos humanos, do pluralismo e da tolerância estão em questão e é por isso que falo que estamos vivendo uma crise civilizacional.

Sul21Falando da conjuntura mais de curto prazo, a sua vinda a Porto Alegre coincidiu com o anuncio da sentença de condenação do ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro. Na sua avaliação, como esse fato impacta o atual cenário político do país? Ele provoca alguma mudança qualitativa na atual conjuntura ou é apenas mais um capítulo do processo do golpe?

Juarez Guimarães: A resposta depende da consciência que você tiver. Há quem trabalhe com a ideia de que o que está ocorrendo no Brasil é apenas um intervalo irregular de uma normalidade democrática, uma espécie de cicatriz no corpo da democracia brasileira. Seguindo essa ideia, poderíamos avaliar que a sentença de Moro, como não possui nenhuma base jurídica, certamente seria revertida na segunda instância. Mas eu penso que não é disso que se trata. Acho errado chamar Moro de juiz parcial. Isso é conceder muito a ele. Na verdade, é um juiz corrompido politicamente. Ele está exercendo o seu mandato de juiz de forma partidária, contra a Constituição e contra o povo brasileiro. É um juiz corrompido e deve ser assim chamado publicamente. A corrupção mora ali em Curitiba. Eu fico indignado quando as pessoas falam da “República de Curitiba”. Não há nada de República ali, mas sim o contrário. É o princípio da corrupção da República que está organizado ali.

Então, se eu achasse que o que está acontecendo fosse apenas uma cicatriz no corpo da democracia brasileira, poderia ter esperança de que esse juízo tão corrompido fosse revertido numa segunda instância. No entanto, eu penso que nós estamos vivendo um período de excepcionalidade onde a exceção é a regra. Portanto, a decisão da segunda instância dependerá da correlação de forças políticas que se estabelecer quando ela for julgar. Qualquer pensamento político que se estreitar no plano da legalidade jurídica estará cometendo um gravíssimo erro, pois nós estamos em um estado de exceção. Com o STF, tal qual está funcionando, com a Constituição tantas vezes violada como foi, qual a dificuldade em praticar mais uma violação?

“A decisão da segunda instância dependerá da correlação de forças políticas que se estabelecer quando ela for julgar”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

O fundamento da lógica do golpe é que não deve haver mais democracia nem soberania popular no Brasil e que a esquerda não deve mais ser competitiva em eleições. A candidatura do Lula pode ser impugnada de diferentes maneiras. Ele pode levar uma pena leve de dois anos em prisão domiciliar, com perda de direitos políticos, por exemplo. Eles podem argüir a inelegibilidade de Lula, compondo com qualquer tipo de sentença ou podem simplesmente mudar a regra eleitoral.

Nós não estamos trabalhando em um período de normalidade democrática. Se não soubermos capturar o tempo dos golpistas, eles utilizarão o tempo contra nós. É aí que entra a questão das Diretas que foi decidida no último congresso do PT e que frequenta o discurso dos movimentos sociais brasileiros e de outros partidos como o PSOL e o PCdoB. Mas esse discurso ainda não se tornou uma campanha. É como se a esquerda brasileira estivesse, ao mesmo tempo, denunciando o golpe, dizendo “não queremos Maia”, mas não organizando uma campanha pelas Diretas.

Alguém poderá dizer que o fato desta campanha não ter deslanchado é um limite do povo brasileiro. Eu acredito, porém, que os limites fundamentais estão no grau de consciência da esquerda. Esse grau de consciência ainda aponta: calma, ainda haverá eleições em 2018; é preciso ter um pouco de paciência; vamos aguardar e acumular para 2018. O problema é que entre hoje e 2018. Não nada mais desmobilizador, hoje, do que 2018, porque entre nós e 2018 há um abismo. Se não enfrentarmos a possibilidade do abismo corremos o risco de ser tragado por ele.

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2 Comments

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  1. jorge silva

    17/07/17 at 10:51

    Bah.

  2. José Herculano da Silva

    19/07/17 at 22:32

    Só a união e a luta de todas as forças democráticas e populares que lutam pela construção de outro modelo de sociedade sem guerras e sem violência contra quem quer que seja, em harmônia com a natureza e sem exclusção social pode barrar a ditadura do capital financeiro-mono-oligopolista, que não dispensa alianças com neo-nazifascistas, em ações dos pilares da destruição Pentágono-OTAN.. Não esquecer a destruição da Iugoslávia e a construção da base Bond Steel em Kossovo e a morte de Slobodan Milosevic na prisão, o golpe na Ucrânia e o Batalhão Azov, as guerras no Afeganistão e no Iraque, a “primavera árabe”, o desmantelamento da Líbia e o assassinato e mutilação de Muammar Khadaffi, a destruição da Síria e os ataques com armas químicas para culpar o governo sírio, o apoio a governos e candidatos de ultra direita (Estônia, Polônia, Argentina, Peru), os golpes parlamentares em Honduras, no Paraguai e no Brasil. Com a grande midia cooptada pelo capital, existe a opção da Internet, mesmo que ela seja usada como arma também pelos inimigos da paz e da humanidade. Resistamos.

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Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

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Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

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#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

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Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

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Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

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Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

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