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Cinema

Na igreja Bola de Neve, Profeta Kevin previu que Roberto Alvim comandaria a Nação

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Profeta Kevin profetiza que Roberto Alvim comandará a Nação. Um mês depois, ele foi demitido por associação com o nazismo

 

“Deixa eu pedir uma coisa pra vocês. Vocês que filmaram, não postem, porque isso é a vida privada [da Igreja]”, pediu o Apóstolo Rina (é assim que Rinaldo Luis de Seixas Pereira, marqueteiro e dublê de surfista prefere ser chamado), a uma multidão de milhares de fiéis da Bola de Neve Church, em sua sede no bairro da Lapa, em São Paulo. O Apóstolo Rina foi quem criou a Bola de Neve, em 2000, igreja famosa por colocar uma prancha de surfe em cima do altar, seja lá o que isso queira dizer.

 

A “vida privada” a que se referiu Rina foi um mega-culto ministrado pelo americano Kevin Leal, também “apóstolo”, mas que gosta de ser chamado de “profeta”. Na ocasião, o Profeta Kevin homenageava Roberto Alvim, ex-secretário Nacional da Cultura de Jair Bolsonaro. Roberto Alvim, como se sabe, é o sujeito que lançou um tal Prêmio Nacional das Artes numa encenação grotesca que incluiu a reprodução ipsis literis de partes de discurso do Ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels.

 

A homenagem a Roberto Alvim ocorreu há pouco mais de um mês, quando o ex-secretário da Cultura ainda não havia “incorporado” Joseph Goebbels. Mas o que se via lá já não prenunciava coisa boa. Roberto Alvim ajoelhou, fechou os olhos, recebeu a unção dos óleos com ares de comoção, ergueu as mãos como se estivesse em louvor e adoração, enquanto o Profeta Kevin gritava-lhe em inglês, imediatamente traduzido para o português, também aos gritos:

“Vocês trabalham para o presidente, mas servem a um Rei”.

 

A platéia delirava.

 

Era só o começo.

 

Ah, nem é preciso dizer que o pedido do Apóstolo Rina, diante dos fiéis, para que o culto não fosse postado nas redes… Bem, o pedido foi ignorado e o vídeo é o que está embaixo deste texto (o pedido de Rina, para que o vídeo não fosse colocado nas redes está no último minuto do vídeo).

 

Quem é o Profeta Kevin?

"Palavra de Deus" ensinada pelo Profeta Kevin - apenas 3 dólares

“Palavra de Deus” ensinada pelo Profeta Kevin – apenas 3 dólares

Em 1971, servindo na Força Aérea americana, Kevin “foi salvo e cheio do Espírito Santo”, conforme consta em seu currículo. Logo descobriu seu dom profético e profetizou para centenas de pessoas em reuniões de dois ou três dias. Nos anos 1980, ele uniu seus dons de profecia a uma nova missão, que lhe teria sido passada diretamente pelo Espírito Santo e se transformou num formador de quadros evangélicos. Presidente do Kevin Leal Ministries e do Key Ministries, ele ensina para líderes de igrejas evangélicas do mundo todo como conquistar e permanecer com as chaves de acesso aos corações dos fiéis. Em outras palavras, Kevin é um consultor de igrejas. Ajuda a construir equipes de liderança, ensina e treina pastores e quadros dirigentes das denominações religiosas que atende, produz livros para serem usados em escolas de ministério, além de obras de auto-ajuda, como “Detox Espiritual” (veja ao lado o anúncio) e “Expansão dos Negócios”. Também é o criador de um programa da “mentoring”, chamado Headlights, que será instalado em sua propriedade, onde funciona a igreja Jubilee International Ministries em Pensacola/Flórida.

 

O Brasil está no foco das atenções do Profeta Kevin. Ele é presença frequente nas sedes da Bola de Neve e da Rede Águias e Leões (REAL), liderada pelo Apóstolo Maurício Cundari Marques, da qual é um dos conselheiros.

 

Com esse currículo todo, coube ao Profeta Kevin a tarefa de (como não?) profetizar, vaticinar, prever o futuro que caberia ao então secretário Nacional de Cultura, Roberto Alvim. E o profeta não fez por menos, já que estaria falando por inspiração divina ou, mais sério ainda, sendo a própria voz de Deus.

 

Para Roberto Alvim, o profeta profetizou, falando bem de perto e tocando no rosto do ex-secretário, como se fosse o Todo Poderoso:

“Você trabalha para o presidente, mas serve a um rei. Eu te faço como Daniel na casa do Brasil. Todo o teu preparo acadêmico todo o teu treinamento, agora está nas mãos do Senhor. E você será o conselheiro sábio, não somente para este governo, mas para outros governos. Dê a eles a sua sabedoria. Você será uma voz para a próxima geração. Você vai ver o futuro do Brasil e vai influenciar muitos políticos. Você vai influenciar as leis do Brasil, porque eu te dei o meu maior dom: a Sabedoria para a Nação. E você vai sentir a presença de Deus sobre ti. Você vai sentir algo sobrenatural sobre ti. Receba agora a Sabedoria para comandar uma Nação.”

 

Uau! Comandar uma Nação!

 

O Profeta Kevin pediu aos milhares de fiéis que cantassem enquanto oravam por Roberto Alvim, no que foi obedecido com devoção.

“Eu quero dizer para as pessoas no Brasil. Só porque você teve uma eleição, isso não determina o resultado final. Deus comanda que o povo continue orando pelos seus líderes, oração é a mão de Deus no Brasil. Então, quando a música começar a tocar, eu quero que vocês orem por eles. Para que eles sejam fortalecidos pelas orações que vêm de dentro.”

 

O Apóstolo Rina também foi grandioso:

 

“Em sua presciência o Senhor determinou que, nesta hora, o Brasil viveria mudanças que primeiro começariam nas regiões celestiais, que foram geradas por oração, por intercessão, e que agora estão se materializando. São mudanças que também dizem respeito à área cultural. E nós estamos diante de pessoas que o Senhor gerou, treinou, preparou e condicionou para esta hora [n.r. estavam diante de Roberto Alvim, o que copiou frases nazistas]. Tudo o que eles viveram de bom e de ruim os capacitou para aquilo que eles precisam enfrentar. O nosso papel como corpo de Cristo, como igreja é interceder por eles… Que o Senhor lhes dê intrepidez, unção para que, dirigidos pelo Espírito Santo, eles possam fazer o melhor trabalho que essa Secretaria, que esse Ministério já fez nesta Nação. Porque aquilo que é Belo, aquilo que é alimento espiritual para povo, também é cultura. Dai-lhes graça, diante de Deus e diante dos homens. E que toda a arquitetura das Trevas seja dissipada. Que tudo o que eles façam tenha a Tua benção e a Tua aprovação. Para a glória e honra do nome de Jesus.”

 

 

Coincidência estranha:

 

Fachada do Cine Nacional na inauguração, em 1950: monstros e nazismo

Fachada do Cine Nacional na inauguração, em 1950: monstros e nazismo

 

A igreja Bola de Neve, onde essas cenas “proféticas” ocorreram, localiza-se na rua Clélia, 1.517, na Lapa (zona oeste de São Paulo). Lá, no mesmo local, em 1950, foi inaugurado o luxuoso Cine Nacional, com capacidade para 3.300 espectadores sentados nas confortáveis poltronas Cimo, as melhores que havia para grandes casas de espetáculos. Foi um acontecimento. Uma edição especial do jornal “Cine-Repórter” saiu no dia 15 de abril, inteiramente consagrada à inauguração do “imponentíssimo palácio da cinematografia”, que pertencia ao Circuito Serrador. De página inteira, um anúncio da British Films do Brasil, oferecia seus produtos aos exibidores. E eles pareciam instigantes. Em um filme, chamado “Ilha Desconhecida”, mostrava-se a luta do homem moderno contra criaturas pré-históricas. O outro, com título em forma de pergunta, atiçava os fantasmas: “Acontecerá de Novo?” -prometia cenas inéditas com Adolph Hitler, Eva Braun e “todos os nazistas em pessôa”. A sessão inaugural do novo cinema exibiu o filme “Monstro de um Mundo Perdido”. Parece que eles estão voltando… Acontecerá de novo?

 

 

VEJA O VÍDEO (há partes com o áudio cortado devido a reclamação de direitos autorais por parte da gravadora Onimusic, que diz ser “proprietária” do hino de louvor cantado durante o culto)

 

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7 Comments

7 Comments

  1. Ricardo dos Santos

    20/01/20 at 6:57

    Porcos. É a Bola de NAZIS a serviço de um “deus” que odeia, manipula, domina e mata. A manada gosta pq é cega e insiste pq já estão corrompidos pela maldade. Triste isso. Eu tenho nojo de quem está por trás de tudo isso.

  2. Marilene Ap.Gonsalves

    20/01/20 at 7:27

    Se cumpriu na vida do ministro a profecia…se ele buscasse ao Senhor Jesus..É certo q teria a sabedoria vinda do alto..foi afastado pois errou..porém o Pastor e a Igreja fizeram a sua parte…Sirvo ao REI na Batista…mas admiro e respeito a Igreja Bola de Neve

  3. Dinei Rinaldi

    20/01/20 at 8:14

    meus Deus, que aberração!

  4. Ricardo Fernandes Braz

    20/01/20 at 9:34

    Eu estou alerta e não permitirei o Nazismo e suas extensões no nosso país. Os idiotas daqui acham que os Nazistas aceitarão latinos em suas frentes. São tão burros que não sabem que não não há conversão para o Nazismo. Nazistas se entendem uma raça superior e os idiotas daqui, dentre eles os bolsonazis, são apenas restos serviçais.

  5. moa

    20/01/20 at 21:28

    LIXO, só um subpaís para permitir que qualquer religião que seja, ainda mais sendo essas maluquices evangélicas – as piores, em sua maioria – se misturem com politica. que queimem no inferno, falsos profetas e adoradores dos diabos

  6. Marcello

    21/01/20 at 9:12

    Seria bom ver estes cinemas e teatros que se tornaram cenários para cenas de charlatanismo e exploração econômica de fieis voltassem a cumprir a função de espaços culturais. Este tipo de igreja é um câncer que está destruindo Brasil.

  7. Olheiro do BDN

    05/09/20 at 1:39

    Profeta Kevin é bizarro, só fala besteira… ele disse no congresso do bola de neve… que 2020 seria o ano inesquecivel kkkkkkk… Acho ele mto falastrão e falta humildade pra querer um titulo de profeta… kkkkk o cara é de sao juan puerto rico… ja veio no brasil mais 50x e precisa de interpretes kkkkk …..

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Cinema

Por um Cinema de ocupação

Rua Augusta 1029, documentário curta-metragem registra os momentos iniciais de uma ocupação. Gravada em 2015 no ato Abril Vermelho em que 6 mil famílias ocuparam 18 prédios sem função social na cidade de São Paulo.

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Por André Okuma

Em 1968 durante as filmagens de “O Bandido da Luz Vermelha” Sganzerla, diretor do filme, escreveu um manifesto chamado “Cinema-fora-da-lei”, no qual seu trecho final dizia:

O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.”

(Rogério Sganzerla)

Passados mais de meio século depois muita coisa aconteceu, tanto no cinema como na história política do país. Entretanto, o Brasil atual de certa forma, é um eco cacofônico daquele fatídico 1968, não por acaso, a citação acima ainda faz sentido mesmo depois de 52 anos, e com a exceção dos “personagens medrosos”, o documentário de Mirrah Iañez é a incontestável prova da atualidade do manifesto de Sganzerla. “Rua Augusta, 1049” é um cinema-fora-da-lei, instável como nossa sociedade na iminência (e da necessidade) de explodir pra não “sobrar quem estiver de sapato”i.

O filme nos mostra os primeiros momentos de uma ocupação por famílias em um prédio abandonado no centro de São Paulo, lutam contra o tempo enquanto a polícia vai cercando o local. No escuro a câmera tateia o espaço, registra os procedimentos iniciais e atua também como mecanismo de proteção contra as arbitrariedades da polícia, os sons desencontrados nos inserem na tensão do momento, cinema e ativismo se fundem em uma imagem imprecisa e cirurgicamente potente, pois, ao mostrar pouco, revela muito.

Na urgência da luta por moradia, a câmera de Mirrah ocupa politicamente não só este ato, mas o próprio cinema, em crise, em muitos casos vazio e elitizado, a imagem em movimento e sons estabelecem aqui a sua função social, não que o cinema deva necessariamente ter essa função, mas estes tempos exigem, assim como o déficit de moradia diante de tantos prédios abandonados exige a ação e questionamento por parte dos movimentos de luta por moradia.

“Rua Augusta 1049”, portanto, como um cinema de ocupação, se realiza na necessidade, no ato político de questionamento do status quo, na luta por justiça social, na coletividade, na coragem e na ousadia de pensar um novo mundo comprometido com a luta de trabalhadores, antifascista e anticapitalista.

Porém sem ser panfletário, ancorado não no discurso retórico mas na dialética das relações de afeto entre pessoas de luta, que para além de números estatísticos e narrativas espetaculares, mostra um cinema feito por nós, para nós, sem hesitar. Em um dos diálogos do filme:

-O meu olho tá doendo – diz um menino pré-adolescente depois de ter inalado gás de pimenta.

-Isso aí é normal, A nossa luta é isso aí. – diz sua mãe enquanto estende a bandeira da F.L.M.

-Eu sei. – responde o menino ajudando a mãe a amarrar a bandeira.

No último plano do filme, quase despercebido, numa irônica coincidência, uma revista Exame perdida na entrada do prédio cuja capa fala sobre especulação imobiliária é endereçada a Delfim Netto no endereço da ocupação, Rua Augusta 1029. Delfim, é importante lembrar, foi dentre outras coisas ministro da economia durante a ditadura militar (em 1968 enquanto Sganzerla escrevia seu manifesto e participou da criação do AI-5) e é sua a célebre frase “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, uma ironia aguda demais que coroa o acaso e a relevância de um filme feito literalmente na guerrilha em uma sociedade que não divide apartamentos abandonados com quem não tem onde morar numa cidade que cresceu mais do que um bolo superfermentado.

Quem não luta, tá morto!

Sobre o filme:

Rua Augusta, 1029 (2019)

Sinopse: Na madrugada de 13 de Abril de 2015, 6 mil famílias ocuparam 18 prédios sem função social. O Ato, ABRIL VERMELHO, serviu para atentar o governo sobre a falta de vontade política para sanar os problemas de habitação.

Brasil (SP) | 10 min. | Documentário | 14 anos

com: F.LM.
direção e fotografia: M.I.
som: A.T.
montagem: E.L.
cartaz: G.M.E.

O filme pode ser visto no link: https://www.cinefestgatopreto.com.br/ entre os dia 03 e 07 de novembro

i Diálogo do filme “Bandido da Luz Vermelha” (1968)


André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-S

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Cinema

As caminhadas do curta-metragem

Peripatético, curta-metragem de 2017, é um dos mais emblemáticos filmes para se perceber o novo caminhar do cinema no Brasil. Até o dia 19 de outubro estará disponível para ver gratuitamente em uma Mostra online de Cinema Brasileiro Contemporâneo no site do Itaú Cultural.

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Por André Okuma | Jornalistas Livres

O curta-metragem é um formato enxuto em diversos sentidos e sua viabilização não depende fundamentalmente de leis de fomento e patrocínios (ainda que sejam absolutamente importantes), como ocorre com os longas-metragens de maneira geral. O curta em sua essência é um produto audiovisual menos burocrático, em que o realizador possui maior liberdade de experimentação artística e produtiva, não precisando necessariamente de grandes recursos, o que consequentemente propicia ao filme de curta duração a possibilidade de ser um grande laboratório de pesquisa e experimentação de linguagens e poéticas. 

Sem dúvida, este formato, principalmente com o advento do digital, é uma espécie de espaço privilegiado para se perceber o que pode ser o futuro do Cinema, seja no surgimento de novas possibilidades de linguagem, de produção e principalmente de novos cineastas. 

Paralelamente, com o surgimento de oficinas e cursos livres de cinema digital, alguns deles em territórios descentralizados durante a última década, principalmente na cidade de São Paulo, é possível perceber um aumento significativo de cineastas periféricos e com narrativas para além das até então difundidas pelo cinema hegemônico. 

Novos corpos e novas perspectivas periféricas desvelaram-se simultaneamente às lutas identitárias, sejam de pretos, mulheres, indígenas e LGBTQIA+ entre outros. Inevitavelmente a produção audiovisual recente se insere nesta perspectiva, principalmente o curta-metragem, dada a sua acessibilidade.

Sendo assim, ao seguir o caminhar do cinema através dos filmes curta-metragem que vem se destacando nos últimos anos, podemos entender e refletir sobre o cinema, e sobretudo a sociedade contemporânea. 

E agora neste momento de pandemia e desmonte de instituições e políticas públicas audiovisuais em que o cinema tem sido drasticamente afetado, paradoxalmente, graças a uma série de Mostras e Festivais de Cinema realizadas de forma online, é possível ver de casa o que há de melhor do universo dos curtas-metragens enquanto propostas e respiros de outros possíveis cinemas na iminência de um futuro incerto. 

Neste contexto tão atípico, portanto, é possível ver “Peripatético”, curta-metragem de ficção vencedor de diversos prêmios na época de seu lançamento, incluindo o Festival de Brasília em 2018.  “Peripatético” de alguma forma é um exemplo bastante relevante das colocações acima, apresentando um cinema contra hegemônico, dirigido por Jéssica Queiroz, uma mulher preta e periférica, gravado na Zona Leste de São Paulo com personagens diretamente conectados a este lugar de fala. Um olhar desatento poderia deixar passar a relevância e transgressão disto, pois, se antes a periferia era retratada sempre pelo olhar de um diretor homem heteronormativo branco de classe média, aqui se abre uma fresta para um novo ponto de vista, de baixo para cima e de dentro para fora.

O resultado é um filme bastante vigoroso ao retratar temas já bastante abordados nas artes e no cinema em outros momento, como a passagem da adolescência para a vida adulta, o mundo do trabalho, as desigualdades sociais e o racismo. 

Entretanto, Jéssica Queiroz propõe um outro imaginário sobre a periferia, colocando em xeque o clichê da periferia suja, violenta, de tons ora azulados ora pastéis, com faces cheias de dor, sofrimento e melodrama. “Peripatético”, ao contar a história de três jovens amigos moradores da periferia e seus planos e medos para o futuro, apresenta uma periferia pop com uma fotografia iluminada e cheia de cor, com diálogos cheios de referências a animes japoneses, “Ilha das Flores”, banalidades e reflexões existenciais, tudo ritmado por uma edição bastante dinâmica, porém, sem deixar de lado temas como a violência, a desigualdade social e o racismo, o que muda é a maneira como isto é tratado. 

Há uma inventividade lúdica no filme que surpreende a cada cena, desde graffitis animados em diálogo com os pensamentos em voice over da personagem sobre o trabalho, a explicação da meritocracia mostrando nadadores e não nadadores em uma piscina competindo e a cena da abordagem policial violenta encenada por crianças brincando de polícia e ladrão. Jéssica consegue em suas alegorias, mesmo não explicitando a violência e o sofrimento, potencializar imagens carregadas de crítica e afeto que transbordam um “real” que encontra identificação instantânea com quem também vive em regiões periféricas, coisa que filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, por exemplo, não atingem nem de longe. 

“Peripatético” não é o primeiro e nem o único filme que traz estas questões, mas é um dos mais relevantes ao trazer um frescor narrativo em contrafluxo do até então cinema tradicional (branco de classe média) produzido até aqui, sem deixar de ser popular e muito menos de ignorar as questões que atravessam seu contexto. 

Se no filme, no qual jovens entram na fase adulta cheio de incertezas, o cinema brasileiro em crise entra também em uma nova fase. Creio que uma saída possível é caminhar junto com essa nova geração, observando-os e (re) aprendendo com elas e eles, e assim, será possível amadurecermos enquanto cinema e sociedade.

Sobre o filme: 

Peripatético (2017)

Sinopse: Simone, Thiana e Michel são jovens moradores da periferia de São Paulo. Simone procura o primeiro emprego, Thiana tenta passar no vestibular de medicina e Michel ainda não sabe o que fazer. Em meio às demandas do início da fase adulta, um acontecimento histórico em maio de 2006 na cidade de São Paulo muda o rumo de suas vidas para sempre.

Brasil (SP) | 15 min. | Ficção | 12 anos

Direção: Jessica Queiroz

Roteiro: Ananda Radhika Meron

Produção: Bia Medina, Nayana Ferreira

Fotografia: Luiz Augusto Moura

Direção de Arte: Dicezar Leandro

Animação: Ananda Radhika Meron, Renato Pereira Sousa

Montagem: Ana Julia Travia

O filme pode ser visto no link: https://www.itaucultural.org.br/secoes/videos/peripatetico-mostra-projecoes-cinema-brasileiro-contemporaneo-2 disponível até o dia 19/10/2020. Ou neste outro link (SescTv): https://sesctv.org.br/programas-e-series/curtas-juventudes/?mediaId=253f65d33ea37cab831d0650bcee3dff 
Mais informações sobre a mostra em https://www.itaucultural.org.br/mostra-online-apresenta-producoes-cinema-brasileiro


André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-SP

Mais do autor:

https://jornalistaslivres.org/perifericu-no-centro-do-cinema-brasileiro/

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Cinema

O encantado cinema indígena contemporâneo

Mãtãnãg, a encantada é um curta-metragem de animação produzida pelo povo Maxakali, e vem se destacando no circuitos de festivais de cinema. Ele está online até o dia 15 na Mostra Cine Flecha de cinema indígena contemporâneo.

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Por André Okuma | Jornalistas Livres

Ao mesmo tempo em que, neste contexto de pandemia, muitos projetos culturais e artísticos tenham sido paralisados, no circuito audiovisual diversas Mostras e Festivais de Cinema optaram por realizar suas edições de forma online, permitindo que filmes restritos a eventos locais pudessem ser vistos de qualquer parte do mundo. 

Neste cenário atípico, e como nunca antes, é possível assistir muitos curtas-metragens (formato pouco comum em plataformas on demand) inéditos e recentes, que oferecem em geral uma maior ousadia e algum frescor em experimentações de linguagem e técnica, além de visibilizar produções independentes e marginais com outras narrativas além das até então difundidas pelo cinema hegemônico. 

Atualmente, o cinema no Brasil vem também passando por processo de transformação no qual, o cinema negro, feminista, LGBTQIA+ e periférico vem ganhando (a partir de muita luta) cada vez mais espaço, e neste bojo, o cinema indígena contemporâneo. 

Se este cinema de guerrilha, mais identitário e político é ainda uma vertente do cenário audiovisual brasileiro que orbita nas margens do “mainstream”, o cinema indígena está ainda mais à margem, ao mesmo tempo em que, desde o revolucionário projeto “Vídeo nas Aldeias” idealizado pelo indigenista Vincent Carelli lá em 1986, a produção cinematográfica de nossos povos originários cresceu de maneira exponencial, mas ainda que circulado apenas em espaços restritos a filmes etnográficos. 

Imagem: Divulgação/Pajé Filmes

É sob esta perspectiva que está em cartaz a 1ª Mostra Cine Flecha, exibido na plataforma VideoCamp e que está disponível gratuitamente até o dia 15 e outubro. Nela é possível ver 25 filmes brasileiros e 1 boliviano. Dentre eles, a animação “Mãtãnãg, a encantada”.

O curta narra uma história tradicional do povo indígena Maxakali situado no município de Ladainha (MG) que, mesmo tendo contato com os brancos por séculos, tentam preservar sua cultura mantendo sua língua e sua cosmologia, e já há alguns anos, utilizam o cinema como ferramenta para tal. 

Animação no Cinema Indígena

A animação, fruto de uma oficina, foi roteirizada e ilustrada pelos próprios indígenas, a direção é de Shawara Maxakali e Charles Bicalho, este último não é um Maxakali mas é um parceiro deles há décadas, e foi o mediador entre o projeto dos Maxakali e editais de fomento.  

Outra característica importante sobre o curta é que ele é todo falado em Maxakali com legendas em português.  O filme retrata a história da índia Mãtãnãg, que segue o espírito de seu marido, morto por uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos. Nesta jornada eles superam os obstáculos que separam o mundo terreno do mundo dos Yãmiy (dos espíritos).

Entre cantos que evocam essa história e a mistura de desenhos de cada participante, a animação nos faz imergir em um universo onírico e novo, de outra temporalidade, outras noções de narrativa a partir de outras percepções de mundo. 

Em uma negociação entre tradição e modernidade, os Maxakali se conectam com sua cultura, se afirmando e fortalecendo seus laços enquanto povo, corroborando com a afirmação de Krenak em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”:

“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos (…) E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”.

(Ailton Krenak)

Adiando o fim do mundo, os Maxakali mostram uma animação naturalmente decolonial, difícil de descrever de maneira eficiente em palavras “coloniais”. Tem que assistir, assim como os outros filmes que compõem esta mostra imperdível. E ainda parafraseando e citando Krenak, Filmar, “Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial”.

Mais relevante politicamente do que isso, neste momento em que territórios indígenas e tribos estão sendo dizimados enquanto o Brasil arde em chamas, só a destituição deste governo. 

Sobre o filme: 

Mãtãnãg, a Encantada (2019)

Sinopse: Mãtãnãg, a Encantada acompanha a trajetória da índia Mãtãnãg, que segue o espírito de seu marido, morto por uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos. Juntos eles superam os obstáculos que separam o mundo terreno do mundo espiritual.

Brasil (SP) | 14 min. | Animação | Livre

Direção: Shawara Maxakali e Charles Bicalho

Pesquisa e Roteiro: Pajé Totó Maxakali Charles Bicalho

Produção: Charles Bicalho, Cláudia Alves, Marcos Henrique Coelho

Tradução: Charles Bicalho, Isael Maxakali, Sueli Maxakali

Consultoria Cultural: Isael Maxakali, Sueli Maxakali

Direção de animação: Jackson Abacatu; Ilustração: Alexandre Maxakali, Ariston Maxakali, Cassiano Maxakali, Eliana Maxakali, Erismar Maxakali, Evaldo Maxakali, Gerente Maxakali, Mamei Maxakali, Marcinho Maxakali, Marco Maxakali, Paulinho Maxakali, Shawara Maxakali

Montagem: Charles Bicalho, Jackson Abacatu, Marcos Henrique Coelho

O filme pode ser visto no link: https://www.videocamp.com/pt/campaigns/539?playlist_id=88 

disponível até o dia 15/10/2020.Mais informações sobre a mostra em https://www.videocamp.com/pt/playlists/mostra-cineflecha


 André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-SP

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