A decisão de demitir Mandetta por conta de medidas de distanciamento social é preocupante, mas não surpreendente. De acordo com o presidente, deixar a população trabalhar significa cuidar de seu bem-estar, algo que um Ministro da Saúde centrista não é bem equipado para supervisionar. O ex-bancário Rodrigo Maia, uma pessoa em teoria mais preparada para lidar com questões econômicas, fala de redistribuição de riqueza, enquanto Bolsonaro o ataca por não ter um coração verde e amarelo. Uma resposta mais “patriota” a essa pandemia seria acabar com o distanciamento e reduzir impostos para empresas que contratarem jovens (de 18 a 29 anos) e pessoas com mais de 55 anos. Em outras palavras, botar as pessoas para trabalhar.
Comparar o Brasil com os Estados Unidos é inevitável. Bolsonaro disse que não temos o luxo de não voltar ao trabalho, porque não somos tão ricos quanto os EUA e não podemos deixar que nossa dívida aumente mais um bilhão de reais. Maia, por outro lado, disse que o que não podemos permitir é que os erros dos EUA se repitam aqui, e que os índices de morte cheguem a tal nível.
Se há uma coisa que essa pandemia nos ensinou, é apreciar os dois aspectos mais essenciais da vida: comida e abrigo. Trabalho não é sinônimo disso, já que muitas pessoas trabalham e ainda não tem acesso a essas necessidades básicas. Os países ‘em desenvolvimento,’ que ‘ainda não chegaram a um ponto’ em que comida e abrigo sejam acessíveis a todos e todas, estão se preparando para quando a pandemia os atingir em cheio.
Talvez seja o nosso ‘subdesenvolvimento’ que nos prepara para lidar com uma crise sem acesso a recursos adequados ou apoio do governo, encontrando maneiras criativas de sobreviver nas paisagens mais áridas. Talvez desenvolvemos a capacidade de fazer gambiarra inevitavelmente, como soluções improvisadas de distribuição de alimentos a pessoas em situação de rua, ampliamos nossa rede e redirecionamos nossos recursos.
Mas há um aspecto da distribuição de alimentos que sempre foi inflexível e difícil de resolver — o que as pessoas querem comer?
De acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira de 2014, pelo Ministério da Saúde, a deficiência nutricional deve ser tratada ao lado de doenças causadas pelo excesso de sódio e gorduras animais. Em outras palavras, a desnutrição causada pela pobreza não pode ser mitigada com uma dieta desequilibrada que gira em torno de carnes e alimentos ultra-processados. Eles podem causar um novo conjunto de problemas, como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e até câncer. Portanto, toda a campanha que visa ‘alimentar o mundo’ precisa reavaliar o que significa passar fome hoje em dia, agora que comida se tornou acessível, mas mata.
Um dos pratos mais emblemáticos do Brasil é a feijoada. Vem dos tempos coloniais, quando os colonos comiam as partes mais ‘valiosas’ do animal, enquanto pessoas escravizadas recebiam os restos, pés e orelhas. Era uma época em que os escravagistas não queriam que as pessoas consideradas ‘propriedade’ morressem.
Hoje, a feijoada é para todas as pessoas, mas os pobres ainda estão recebendo as sobras dos ricos. O cachorro-quente, por exemplo, servido em molho de tomate salgado e processado é muito popular. São as sobras das indústrias de suínos, vacas e galinhas misturadas com conservantes, antibióticos e corantes, depois pasteurizadas, embaladas e distribuídas para as famílias de menor renda. Nesses agregados familiares, a ascensão social está geralmente e inconscientemente ainda ligada ao modelo colonial de distribuição de recursos, onde provar um pouco da ‘vida boa’ significa comer a ‘carne boa’. Isso significa que as ‘partes boas’ do animal geralmente são enviadas para o exterior, enquanto os restos são oferecidos a nós disfarçados de O Sonho Americano, uma imagem dos filmes de Hollywood, com um nome que nem podemos pronunciar adequadamente sem inventar vogais: ‘hotchi- dogui’.
Houve outra mudança nos últimos séculos: pessoas über ricas não querem mais que pobres sobrevivam.
Tornou-se aceitável permitir que pessoas pobres morram de diabetes, tuberculose, doenças cardíacas, overdose, covid-19 e assim por diante. Não há vídeos de partir o coração de pessoas violentamente magras que, com sua ajuda, serão poupadas da tortura da fome. Existem ‘pessoas pobres e gordas’ que estão doentes ou abusam de drogas devido a suas próprias ‘más escolhas’ e, silenciosamente, morrem aos milhões, sem causar o menor desconforto ao resto do mundo.
Agora que as academias estão fechadas, qual é o sentido de tirar selfies para colocar no aplicativo se não podemos sair de casa? Quem somos nós quando não estamos constantemente no corre, tentando sobreviver? 2020 está transbordando de angústia existencial, compreensivelmente, já que muito mais pessoas do que o normal estão sentindo a fome e a perda de moradia (e morte) se aproximando delas.
Podemos apostar nas iniciativas de apoio mútuo, organizar nossa comunidade, redistribuir recursos e alimentar pessoas em necessidade. Se elas pedem hotchi-doguis, é só responder com um emoji triste e cansado.
Mudar ideias profundamente arraigadas sobre o papel que a desigualdade desempenha em nossas vidas é muito mais difícil do que acessar recursos básicos. Temos os meios para produzir muitos alimentos saudáveis e diversos de forma eficaz, o que não conseguimos fazer é controlar o crescimento da monocultura, que é ineficaz, direcionada ao processamento pesado e à ração. Os alimentos ultra-processados são feitos para serem baratos e durar uma quantidade desconcertante de tempo, e sabemos há anos como são nocivos. Por que tantas pessoas ainda preferem esses alimentos quando recebem uma alternativa pelo mesmo preço?
A resposta instintiva é afirmar que os aditivos que melhoram o sabor e preservam os alimentos são viciantes, e há algumas evidências disso. Mas eu gostaria de focar no lado social das péssimas dietas, porque também há pesquisas para mostrar que “exclusão e marginalização social progressiva” é uma “característica comum do vício humano” (“Time to Connect: trazendo o contexto social para a neurociência do vício”, por Heilig, Epstein e Shaham). Se os aditivos colocados em alimentos baratos são viciantes, a marginalização torna uma pessoa pobre mais suscetível a esse vício do que a falta de acesso financeiro a alimentos mais saudáveis.
Alimentos ultra-processados afetam nossa cultura, tornando os alimentos frescos desinteressantes, especialmente para os jovens. Na página 45 do Guia Alimentar, esse impacto é descrito como:
“A promoção do desejo de consumir mais e mais para que as pessoas tenham a sensação de pertencer a uma cultura moderna e superior.”
Essa é a consequência da ideologia do consumismo, um modo de vida dos Estados Unidos que se infiltra em nossa psique tanto quanto se infiltra em nossos corpos. Ingerimos novos aditivos da mesma maneira que regurgitamos novos sons. Os Big Macs, por exemplo, são tão problemáticos para comer quanto para pronunciar; essas consoantes abertas inevitavelmente se transformam em ‘Bigui Méki,’ à medida que o ritual da refeição se transforma em porções rápidas e individuais para serem consumidas ‘on the go.’ Não há mais necessidade de ter cozinha, a habilidade de cozinhar, acompanhantes ou tempo. Existe apenas uma solução rápida e individualista por um preço baixo.
Tentar mostrar que os alimentos processados estrangeiros não são tão bons quanto os produtos locais é mais difícil do que apenas oferecer esses produtos locais aos pobres. Em escala nacional, nossa produção agrícola é em grande parte direcionada para a manutenção dos hábitos alimentares tradicionais do hemisfério norte (e incorporá-los como nossos), como se pudéssemos ‘comer’ dinheiro estrangeiro. O que não considera que nossa terra é propícia para a produção de alimentos muito mais interessantes do que o que os países europeus minúsculos e frios têm sido historicamente capazes de produzir, e estão atualmente interessados em comprar. Não precisamos viver de linguiça e pão branco como um açougueiro Alemão do século 18.
Este é o Brasil, temos frutas que a maioria das pessoas do hemisfério norte nem sabe que existem. Temos pelo menos meia dúzia de tipos de bananas amplamente acessíveis, abacates do tamanho de bolas de futebol americano, e conhecimento tradicional e milenar sobre relacionamentos sustentáveis com a terra e com o corpo. Pelo menos neste país, alegar que alimentos ultra-processados são mais baratos do que produtos frescos locais não tem base na realidade — ainda. A única maneira disso se tornar realidade é com o marketing mais agressivo dessas empresas, o que aumentará a demanda por esses produtos, tornando outros produtos menos disponíveis.
Uma das principais sugestões do Guia Alimentar é: não veja o marketing como fonte educacional. A “função da publicidade é essencialmente aumentar a venda de produtos, não informar ou, menos ainda, educar as pessoas” (página 120). As vendas de alimentos aparentemente acessíveis são vistas como um sinal de Desenvolvimento, como progresso para o país e para comunidades marginalizadas. Este ‘desenvolvimento’ não tem em mente o melhor interesse da população, tem em mente os lucros do mercado de ações.
A cultura tóxica que somos forçados a engolir é o mais difícil de enfrentar nas iniciativas de apoio mútuo. Mais difícil do que arrecadar dinheiro, distribuir recursos, aprender uma nova habilidade, arregaçar as mangas e sujar as mãos. É aquela coisa escondida nos cantos escuros da psique, esse padrão de comportamento que anos de terapia podem nunca alcançar. Ele sussurra: “Eu não quero que as coisas mudem tanto assim” e dá espaço para a publicidade continuar a nos mudar e a destruir os nossos corpos.
____ NOTAS
Este artigo em Inglês: abeautifulresistance.org/site/2020/4/6/thesystemicchangesneeded
Guia Alimentar 2014: http://www4.planalto.gov.br/consea/publicacoes/alimentacao-adequada-e-saudavel/guia-alimentar-para-a-populacao-brasileira-2014
Mirna Wabi-Sabi é
Militante descolonial, anarquista, e feminista interseccional. Editora de Gods and Radicals (abeautifulresistance.org), teórica política e professora.