MAIS UM DOMINGO DE CRISE

Foto de Lula Marques em 30/3/2017

ARTIGO 

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

 

 

9 de junho. Novamente, o noticiário político brasileiro foi sacudido. Em pleno domingo, no final da tarde, quando os brasileiros e brasileiras, preguiçosamente, se preparavam para a segunda-feira. Os que estão empregados, é claro. Pros 13 milhões de desempregados não faz muita diferença se é domingo, segunda ou quinta-feira.

Não foi a primeira vez. Quem aqui não lembra do 8 de julho de 2018, outro domingo, quando todos acordamos com a notícia de que Lula seria solto, sob ordem de Rogério Favreto, desembargador plantonista do TRF 4?

E o 26 de maio de 2019, quando a base orgânica de Jair Bolsonaro foi às ruas defendê-lo, se mostrando nada desprezível em termos quantitativos e apresentando relevante capacidade de mobilização e engajamento?

Talvez no futuro alguém escreva a história dos domingos de crise. Seria algo interessante de se ler.

Domingo, 9 de junho de 2019. É esse domingo que interessa aqui.

O jornalista norte-americano Glenn Edward Greenwald, editor-chefe do “Intercept”, publicou material recebido de “fonte anônima”, reunindo comunicação privada entre operadores da Lava Jato, com destaque para o procurador Deltan Dallagnol e para o ministro, e ex-juiz, Sérgio Moro.

Greenwald diz ter nas mãos arquivo gigantesco, algo maior e mais revelador que as fontes publicadas por Edward Snowden no mais que conhecido escândalo do Wikileaks.

O material é mesmo tão bombástico a ponto de alterar substancialmente a correlação de forças e dar início a uma nova fase na cronologia da crise brasileira? Ou tudo não passa de um blefe lançado estrategicamente para mobilizar a militância de esquerda, já excitada pelas mobilizações recentes e envolvida na construção da greve geral agendada para 14 de junho?

Só o tempo dirá. Fato mesmo é que a simples divulgação do conteúdo das supostas conversas entre Moro e Dallagol foi o bastante para mexer com o mundo político.

A classe política acompanha com atenção. A mídia corporativa correu para defender a Lava Jato, denunciando a ilegalidade do vazamento e da publicação.

Mas o que temos de concreto até aqui?

O material traz a público a conspiração envolvendo Dallagnol, Moro e outros integrantes da Operação Lava Jato, com o objetivo claro de interferir nas eleições presidenciais de 2018, impedindo a candidatura de Lula e boicotando a campanha do PT.

Dallagnol demonstra dúvidas em relação às provas disponíveis, sugerindo serem insuficientes para condenar Lula. Sérgio Moro orienta o trabalho do Ministério Público, apontando onde estariam provas mais robustas.

Os envolvidos não negaram o conteúdo do material divulgado, o que sugere que o Intercept, de fato, tem o controle de um arquivo de grande importância jurídica e política.

O conteúdo revelado é grave? Gravíssimo!

O Estado democrático de direito não admite a inviolabilidade do processo legal. A coisa funciona mais ou menos assim: o MP, atuando como advogado da sociedade, identifica um indivíduo como suspeito de ter lesado os interesses públicos. O advogado de defesa, por sua vez, defende seu cliente. Todos têm direito à defesa, até mesmo os réus confessos.

O juiz deve ouvir as duas partes com atenção, de forma imparcial, e assim julgar. Se o processo for inconclusivo, cabe ao juiz absolver o réu, pois mais vale um culpado impune do que um inocente indevidamente condenado. O marco civilizatório está fundado nestes valores.

Quando o juiz conspira com o Ministério Público, o jogo é desequilibrado. É como se o árbitro vestisse a camisa de um dos times. O processo legal foi fraudado e o réu passa a ser vítima.

Cá entre nós, leitor e leitora, é possível que alguém minimamente atento à cronica política brasileira não soubesse que essa conspiração estava acontecendo? É importante ter a comprovação, sem dúvida, mas não temos aqui nenhuma novidade.

E vou além: quem no Brasil se importa com o devido processo legal?

A crise é, exatamente, a crise das instituições. Dilma foi golpeada mesmo depois que o áudio de Romero Jucá e Sérgio Machado foi divulgado. Ali, falava-se abertamente que o impedimento era motivado pelo corporativismo dos parlamentares, que viam em Michel Temer a possibilidade de controlar da Operação Lava Jato.

“A solução é botar o Michel, pra estancar a sangria.”

O áudio foi divulgado, ficamos todos escandalizados e a processo de impedimento continuou, como se nada tivesse acontecido.

O áudio foi divulgado em maio de 2016. Dilma foi afastada definitivamente no final de agosto. Três meses do áudio revelador, da impressão digital do golpe parlamentar, ressonando nos quatro cantos do país. A farsa continuou, soberbamente.

Nada sugere que com a divulgação do dossiê da Lava Jato será diferente, pelo menos não com o que foi publicado até aqui, até o momento em que escrevo este texto.

O conteúdo tem pouco poder de desestabilização.

Os nichos ideológicos já formados na opinião pública não vão se movimentar porque agora temos a comprovação de que Moro e Dallagnol conspiraram para que Lula fosse preso e retirado da corrida eleitoral.

Aqueles que estão convencidos de que Lula é corrupto, toleram sem nenhuma dificuldade o desvio ético de Moro e Dallagnol. Pelo contrário: estão ainda mais convictos de que os dois são super-heróis, o Batman e Robin que vão regenerar a República. Os fins justificam os meios.

Os que estão convencidos de que Lula é inocente e sua prisão faz parte de um golpe de Estado em curso desde o impeachment de Dilma, agora têm provas cabais pra compartilhar nas redes sociais e nos grupos de família, gritando o desopilador “Eu avisei!”.

A maioria da população, que mesmo tendo dúvidas a respeito da inocência de Lula seria capaz de votar nele numa eventual eleição, ficará onde está, observando com relativo desinteresse o desenrolar dos acontecimentos. Tá faltando comida no prato. As pessoas estão ocupadas.

Porém, os desdobramentos institucionais do dossiê podem ser bastante relevantes, a depender do que venha por aí. Não creio que Lula será solto, pois os generais sabem que isso significaria desestabilizar ainda mais o já frágil governo de Bolsonaro. Mas não podemos esquecer que há juristas e políticos que só precisam de motivos para passarem como trator por cima dos menudos de Curitiba.

Tem gente muito poderosa em Brasília babando de vontade para pegar os operadores da Lava Jato na ilegalidade. O que não falta no material já divulgado pelo Intercept é prova de que a Lava Jato feriu a legalidade. A OAB já se manifestou, solicitando que Moro e Dallagnol se licenciem de seus cargos, até que os possíveis desvios legais sejam investigados.

Gilmar Mendes liberou para apreciação da segunda turma do STF o pedido de habeas corpus apresentado pela defesa de Lula, que estava retido desde janeiro, quando Moro assumiu o Ministério da Justiça. A segunda turma é formada por Carmen Lúcia, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandovsky e Celso de Mello. Duvido muito que se forme maioria a favor do ex-presidente, mas a abertura da discussão, em si, sinaliza que os antilavajistas passam a ter trunfo importante na manga.

Tem também o constrangimento político, que não é pequeno.

E se nos próximos dias vazarem declarações de Moro ofendendo outras autoridades,como parlamentares e ministros da Suprema Corte? A vaga no STF, a aprovação do pacote anticrime e sua própria atuação como ministro da Justiça ficariam bastante dificultadas, talvez inviabilizadas.

O cargo de ministro da Justiça é essencialmente político. Um ministro bloqueado pelo Congresso Nacional, que tem suas ações questionados pelo STF, não serve pra nada, não faz nada.

Enfim, o conteúdo divulgado até aqui ainda é tímido, surpreende pouco, apesar de todo o barulho. A ver o que vai acontecer nos próximos dias. Ao que parece, o 9 de junho, outro domingo de crise, está longe de terminar.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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