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Golpe

Lula tem de ser candidato, ainda que na condição de preso político

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O avançar do processo contra o presidente Lula traz consigo uma dialética inicialmente imprevista: na medida em que se aproxima o seu aniquilamento jurídico, crescem o apoio popular e o sentimento de que ele é, em verdade, vítima de persecução política.

Essa contradição se intensificou a partir do próprio movimento do real, ou seja, do desenvolvimento dos fatos: a crença inicial de que Lula, ao ser acusado de corrupção, responderia a um julgamento como qualquer outro cidadão, foi desmanchando-se no ar com o decorrer das ações penais.

Em consequência, quanto mais visível se tornava a politização do judiciário, maior era a politização por parte de Lula e movimentos sociais.

Assim, a linha política majoritária do PT, que defendia intransigentemente a independência, a autonomia e a credibilidade, foi sendo alterada ao longo desses anos.

Refiro-me ao período Eduardo Cardozo no Ministério da Justiça, quando um ideário republicano e conciliador orientava a ação de amplos setores das esquerdas e reduzia seus horizontes para o simples “fortalecimento das instituições”.

Cardozo era o símbolo máximo dessa estratégia.

Especialmente nas vésperas e logo após o golpe de Estado – ou seja, em momento dramaticamente tardio –, percebe-se uma guinada estratégica, em que, pela primeira vez, começa a tornar-se nítido no debate de tais setores de esquerda que, em verdade, estava havendo uma exasperação da luta de classes e que a institucionalidade era parte central daquela.

Depoimentos em juízo voltados à população e não apenas ao processo, coletivas de imprensa, e, finalmente, após a condenação em primeira instância, as Caravanas de Lula pelas regiões do país, surgem como mecanismo de mobilização popular e enfrentamento à perseguição jurídico-política.

Aquela crença original, que mesmo após 2014 permeava as mentes de setores das esquerdas (quanto a acreditar no funcionamento das instituições, na prevalência dos direitos e garantias individuais, da legalidade, nas possibilidades de novas composições e alternativas conciliatórias, em ser um golpe de Estado algo anacrônico), corroeu-se no tempo.

Agora, olhando retrospectivamente, até Reinaldo Azevedo admite: a Lava Jato atuou completamente fora da legalidade.

Condução coercitiva sem prévia intimação para depor; vazamento para a Rede Globo de áudios da presidenta da República – um crime, e contra a soberania nacional – com fins de criar a atmosfera política para o golpe de Estado; denúncia apresentada pelo Ministério Público através de um PowerPoint, em um hotel de luxo locado para o fim de apresentar o presidente Lula como chefe de organização criminosa que quebrou a Petrobrás, enquanto sua condenação se deveu ao Triplex do Guarujá, etc.

Tais elementos seriam suficientes para demonstrar a parcialidade do juízo em curso.

Mas cada um desses eventos, acumulados no tempo histórico, possibilitava novas interpretações da população que, ao balançar-se em favor de Lula, levava a Lava Jato a necessitar de nova radicalização.

E foi assim que o TRF-4, furando a fila de 257 processos, inclusive alguns relativos à corrupção.

O furo da fila, em pleno janeiro, antes do carnaval, não foi por acaso: era simbólico marcar a sua condenação para um ano após a morte de Dona Marisa, bem como era necessário apressá-la para impedir o desenvolvimento de sua antítese, a mobilização popular.

Lula e as esquerdas, mais uma vez, foram convocados a responder.

A resposta foi uma gigantesca mobilização em Porto Alegre, construindo uma atmosfera de mobilização popular pela cidade apenas vista nos Fóruns Sociais Mundiais, em contextos outrora completamente favoráveis.

O TRF-4, então, arriscou. Os desembargadores poderiam:

a) absolvê-lo;

b) condená-lo mediante placar de 2 x 1;

c) manter a condenação, mas reduzir a dosimetria da pena; ou

d) determinar o cumprimento da sentença apenas com o trânsito em julgado.

Ao final, escolheram outra alternativa: majoraram a pena para:

1) impedir Lula de beneficiar-se da prescrição retroativa quanto ao crime de corrupção passiva;

2) demonstrar, simbolicamente, que Moro não perseguiu ex-presidente, na verdade, teria sido “benevolente”. Ademais, o placar de 3 x 0 impede Lula de opor embargos infringentes e, pela Ficha Limpa, o impõe a condição de inelegível.

Por fim, determinaram o cumprimento imediato da pena, logo após julgado os possíveis embargos de declaração.

Ou seja, o presidente Lula pode vir a ser preso ainda antes do carnaval ou logo após.

Estes desembargadores – o relator, por sinal, consta na dedicatória do livro de Sérgio Moro e com ele cursou mestrado – desconsideraram que, nos embargos de declaração da defesa, Moro disse que em nenhum momento afirmou que a compra do triplex advinha dos contratos da Petrobrás.

Ora, se o processo foi mantido em Curitiba somente por envolver a Petrobrás, tal afirmativa necessariamente deslocaria a competência da ação para São Paulo, sede do tríplex.

Logo, Moro não é o juiz natural de tal caso.

Da mesma maneira, desconsideraram a inexistência de escritura pública ou mesmo posse do tal apartamento – que tem 85 m2, sem vista para o mar. Ou seja, nada à altura “do líder da organização criminosa”, segundo o Ministério Público.

Condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em nenhum momento se provou que Lula detém a propriedade ou gozou um dia sequer de tal apartamento, bem como qual ato executou, como presidente, para beneficiar diretamente a OAS.

Além disso tudo, a condenação se deu com base na delação de Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS.

Léo teve sua primeira delação travada, quando inocentou Lula. Ao mudar sua versão, conquistou agora no TRF-4 a redução de sua pena de dez anos para somente três.

Há tempos, portanto, saímos da legalidade burguesa.

Aliás, a história demonstra que assim o é quando as classes subalternas não aceitam o domínio burguês.

Para manter o ataque do capital contra o trabalho – consubstanciado nas reformas trabalhista, da previdência, na Emenda Constitucional do corte dos investimentos (EC95) –, o único caminho é desmontar as organizações dos trabalhadores e inviabilizar seus líderes.

Para responder ao ataque do capital, o único caminho para trabalhadores e trabalhadoras é fortalecer suas organizações e defender suas lideranças historicamente construídas.

E a condenação de Lula somente é compreensível neste contexto.

Acontece que a condenação tornou Lula inelegível, mas não o impede de registrar sua candidatura.

É uma condenação em âmbito penal, não eleitoral.

Em verdade, todos os prazos em âmbito da Justiça Eleitoral permitem que ele seja candidato, e eleito no primeiro turno.

Caso consiga alguma vitória no STF ou STJ, pode vir a ser empossado.

Caso não, o TSE pode cassar seu registro e terá de convocar novas eleições.

Estamos, portanto, perante em uma encruzilhada histórica: uma vez mais as esquerdas são convidadas a usar a institucionalidade para a organização, conscientização e avanço das classes trabalhadoras, ou a declinar e aceitar esta ditadura branda das elites nacionais e internacionais.

Aceitar o enfrentamento implica inclusive entrar em campanha eleitoral com seu candidato preso, demonstrando claramente que o julgamento foi uma farsa e que caberá à população desmoralizá-la.

Após tantas vacilações, tentativas de concertações – que incluíram ilusões como a capacidade de Lula ministro frear o golpe de Estado, ou, pior ainda, a de que acordo com setores de direita “menos golpistas”, quando das eleições para presidência das Casas do Congresso, seria uma via para a superação do golpe –, não há mais tempo para titubear.

O próprio movimento histórico obrigou o PT a corrigir a sua estratégia.

A Lava Jato, ao condenar Lula, impôs a sua candidatura.

Não lançá-lo, é legitimar a fraude.

Submetê-lo ao crivo popular, é convocar as classes trabalhadoras para a maior polarização desde 1989.

Na pior das conjunturas, chegaríamos a uma segunda eleição com um acúmulo político no seio da sociedade capaz de confrontar-se com o conglomerado das classes proprietárias, mesmo que outro seja o candidato ou candidata.

Se vencer e não conseguir ser empossado, a polarização e politização da sociedade jogarão em favor do campo popular quando da nova disputa, e não o oposto.

Portanto, os trabalhadores e trabalhadoras nada têm a perder, a não ser os seus grilhões.

  • Daniel Araújo Valença professor do curso de Direito da UFERSA e coordenador do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – Gedic.

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1 Comment

1 Comments

  1. Simone

    10/04/18 at 14:27

    Lula vc mora em nossós coracoes e não na historia de um povo incoerente e ingrato sempre será o nosso presidente

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Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

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Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

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#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

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Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

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Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

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Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

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